sábado, 11 de novembro de 2023

Ensinamentos comungados do Outono e das árvores. Tradições ou superstições, espíritos da Natureza e a missão de cada um.

Fotografias tiradas por mim no Gerês transmontano na terceira década do séc. XXI. Mas deveria ter posto também da serra da Estrela e do Marão.

Outono, Outono, Outubro, Novembro e Dezembro, noites com ruídos, gemidos e orações nas almas e casas, nos  campos e florestas, por entre chuvadas recorrentes ou inesperadas e as abençoadas abertas ou calmarias.
  Com as colheitas realizadas, após as nogueiras e avelãzeiras, a última árvore, e ainda de cultura biológica, o castanheiro, entrega os seus frutos, deixando-os cair, para bichos e homens, cobertos duma couraça de porco espinho. No S. Martinho, com a amiga lareira, serão consumidos com o sangue vinícola em memória da abnegação fraterna, e lembram-nos como devemos ser protectores da Natureza, da vida humana, animal e vegetal e como a vida é árdua e há que labutar e cooperar para se alcançarem os frutos valiosos e se quebrarem os revestimentos que os ocultam ou aprisionam.
As  nortadas ou as brisas do sudoeste vêm húmidas, frias e vão juntando as folhas e os detritos do ano em montões que os remoinhos, essas formações tão especiais dos ventos, se entretêm em fazer dançar em espirais ascendentes e descendentes, provocando em nós ora pressentimentos de presença de espíritos brincalhões, ora vagos desejos de partirmos, dançarmos, elevar-nos nesses subtis sopros invisíveis...
Os povos agradecem o fim merecido dum ciclo anual, o que receberam das colheitas, ou o dinheiro e, olhando à volta constatam a lenta interiorização do Inverno a começar e que em parte devem seguir...

Nas noites mais longas, posto o Sol, quem tem de, ou se atreve, a cruzar  os campos e montes, ouve por vezes estranhos crepitares ou sons que lhe podem parecer passos,  vozes, gemidos, lamentos. Bichitos, javalis ou raposas, árvores que estão para morrer, espíritos folgazões das colheitas a desaparecer, almas do outro mundo a lamentar-se dos males que por cá fizeram ou se fazem, ou que vêm rondar os que em breve se soltarão da Terra, quem saberá discernir ou intuir a proveniência de tais sons?
Conta-se, contudo, em alguns povoados nos meandros das serras, menos influenciados pela comunicação  moderna, que assim como certos animais hibernam, tais as cobras, assim certos espíritos da natureza, ao terem de perder as formas pujantes que a primavera e o verão lhes intensificaram, para se entranharem mais na terra e nas raízes das árvores que sustentarão agora na invernia, lamentam-se e são audíveis por alguns mais sensitivos. Estar-se-ão a queixar de não poderem ver, sem ser através da barreira da terra que os envolve, tanto os campos e o céu, como os seres humanos ou mesmo os celestiais devas?
Diz-se ainda das árvores cortadas no Natal para se fazer fogo comunal ou se venderem nas cidades, que tal sacrifício serve para libertar alguns elementais da Natureza que poderão  ascender a estágios mais elevados da sua evolução, crendo mesmo alguns que podem suas almas incorporar-se na de animais ou mesmo na humana mas, perguntados como sabem isso, o que não é unânime, os aldeões ou pastores que tal ecoam respondem que é da sabedoria dos antigos, que certamente pressentiam muito mais que hoje o interior ou a alma da Natureza nas suas múltiplas formas e seres...

” Então acham que as árvores e os bichos têm alma como os homens?”, perguntava-lhes.  "- Sem dúvida", respondiam-me em uníssono. E vai um de contar como viu o boizinho antes de entrar no matadouro a chorar, ou as lágrimas da seiva que as árvores deixam cair para o solo quando as cortam, sobretudo sem as avisar e agradecer antes de as matarem, ou o sofrimento de alguns animais quando os seus donos estão mal. E falam-me de lenhadores que morreram por não respeitarem árvores centenárias, essas que têm seguramente um espírito da natureza próprio.

Depois, eu partia pela serra acima, a sós, para comungar com as árvores, ora transmitindo-lhes o meu amor, ora encostando a testa e pedindo que ma limpassem, ora abraçando-as pela frente ou pelas costas, ora sintonizando pelas mãos as forças poderosas que elas entre o céu e terra canalizam, ora sorvendo os aromas dos musgos. Falo-lhes mesmo por vezes, dirigindo-me ao espírito de natureza que nela habita profunda e subtilmente e eles parecem-me felizes por a maioria das pessoas  estar inconsciente deles e não os perturbar premeditadamente.

                                
Contemplo algumas árvores mais demoradamente e observo as rotações e espirais geradas ao longo dos anos, as formas subtis dos espíritos da Natureza que se foram revelando e admiro-lhes a perseverança com que lançam raízes nos terrenos mais rochosos e se erguem como verdadeiras colunas e eixos entre a Terra e o Céu, aceitando equânimes ou indiferentes todas as dificuldade naturais, ou ainda as conversas e vibrações desarmoniosas dos humanos que passam junto a elas, cegos à beleza e força delas.

  Mas realmente algumas há que são verdadeiras mestras, tal a sua imponência, beleza ou sugestibilidade,  verdadeiramente impressionantes, seja vistas de longe, ao aproximar-nos ou ao tocarmos-lhes e nos encostarmos.
Junto a essas tenho procurado sentar-me e interrogá-las meditando. O mais importante do que tenho sentido, compreendido ou intuído talvez seja ainda ainda a energia poderosa de Gaia, da Terra que irrompe verde com elas,  a riqueza inspiradora das suas copas, a geometria da suas folhas e ramos, e a exemplaridade da posição vertical, solitária e firme delas, batidas pelos ventos e neblinas. E embora encerradas nos seus eremitérios das alturas serranas, clamando ao mundo: 

                                       

“- Oh homens e mulheres de fracas vontades, quando aprendereis a perseverar mais na ligação entre a Terra e o Céu,  o mundo natural e o mundo divino,  a vossa personalidade e a centelha espiritual? Não nos vedes aqui de dia e de noite a ligar os mundos distantes e as profundezas terrestres, resistentes às tempestades e adversidades? E vós, qualquer vento ou frio, pesadelo ou desilusão vos derruba do vosso amor criativo, e já não sabeis da vossas raízes, essência e frutos que devereis gerar?”

Uma das lições mais elevadas que as árvores no dão assim é a de discernirmos as sementes que contemos e deveremos frutificar. Para isto, há que regá-las e fortificá-las, e não nos deixarmos distrair, alienar ou desanimar das  tarefas, deveres ou missões que competem a cada ser humano  incarnado na crosta terrestre e que se baseiam no auto-conhecimento espiritual (somos espírito, com alma e corpo) e no uso justo das capacidades ou dons úteis ao Bem Comum e à Verdade, não para o  ego, prazer, competição ou vaidade mas para o bem, a  beleza e a harmonia da Humanidade, da Terra Mãe e da Divindade.
Estimulam-nos assim a adivinharmos ou descobrirmos  as sementes, troncos e rebentos contidos potencialmente em nós e nos que no rodeiam, e quais se podem tornar flores e frutos úteis, ou que querem mesmo e suspiram que nós realizemos tais impulsos e potencialidades...
Para isto há que madrugar, sachar, regar, alimentar, fortificar, e não nos deixarmos distrair, alienar, desanimar perante os trabalhos simples ou complicados, banais ou extraordinários  que nos competem na nossa singularidade de seres espirituais incarnados na crosta terrestre a fim de que de todos esses trabalhos, sofrimentos e amores possa ir desabrochando ou abrindo as suas pétalas a flor frutífera em que o Espírito Divino brota de si mesmo e harmoniza e fortifica, inspira, alegra e nos impulsiona para a Luz e a Fonte...

Saibamos merecer em comunhão com a Natureza e as suas árvores as melhores realizações de amor e beleza, paz e vida espiritual...

Pintura do mestre alemão Bô Yin Râ.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

A luz dos livros e bibliotecas na consciência. Um conto espiritual, em Calcutá, na biblioteca no Instituto de Cultura da Missão Ramakrisna.

Fotografia oficial do estado actual da biblioteca da Missão Ramakrishna em Calcuta onde estive muito tempo a trabalhar em 1995. As fotografias da Índia, pessoais...

Uma ou outra vez, mergulhado no ambiente duma biblioteca, ao consultar uma obra, um estranho fogo impelia-me a parar de ler-anotar e a começar a escrever, tentando contribuir assim com alguma criatividade própria. Afinal de contas, para quê deslocar-me a uma biblioteca, por vezes após uma longa jornada através de tantas dificuldades empreendida, e apenas ler, registar, comentar, traduzir, sem deixar fluir do meu ser e interior alguns sentimentos e pensamentos também luminosos?

Estando uma vez no Oriente Indiano, subitamente, abriu-se uma oval no espaço mental interior, mostrando-me um longínquo horizonte algo enublado. O meu pensamento levou-me para Lisboa, a cidade onde nascera e mais residira, e dei-me conta que se formava um espaço de visão onde livros e manuscritos se amontoavam, o que me sinalizaria uma  sabedoria adquirida ou a adquirir mas que, registada no papel das árvores, de nada valia senão assumida por seres vivos capazes de se transformarem, despertarem e interagirem valiosamente.

Por longos anos  investigador de certos assuntos e bibliotecas, amigo dos livros e dos seus amigos, senti de repente que tinha de quebrar um círculo algo passivo, para que ele não se tornasse vicioso e antes germinasse em criatividade e profundidade.

Um par de asas queria crescer em mim e a indiferença ou adversidade de certas pessoas ou meios encontrados nos ambientes e nas viagens, em Portugal e no estrangeiro, era como um aguilhão a espicaçar-me: - Não pares nem te deixes abater por barreiras ou setas inimigas. Persiste criativamente.

Outrora os meus desejos e ambições, embora nunca fossem muitos, passavam por uma iluminação gradual e uma acção espiritual no exterior. Para aprender e partilhar esta iluminação viajara e  conhecera, praticara e aprendera com mestres e adquirira ou consultara muitos livros, acumulando assim uma sabedoria incalculável, mas uma parte dela indirecta, não íntima, porque proveniente deles. 

E contudo a minha voz e escrita deviam ser  espontâneas, naturais, um reflexo da sabedoria, força e amor vividos, aspirados ou necessários em cada situação. Deparando-me por vezes com situações em que forças de desilusão, inércia, mentira, inveja, crítica e roubo surgiam, internas ou externos e desferiam os seus actos, por vezes traiçoeiros e inesperados, ficava abalado, desiludido. Saber medir cada acto e encontro e os seus prós e contras antes de o realizar ou ao o enfrentar, quão necessário se tornava para sobreviver, seja na pátria seja nas peregrinações algo aventurosas por terras distantes em busca da sabedoria, que sabemos ser sobretudo um estado interior psíquico auto-consciente, sensível, aberto e interpretando correctamente as energias, informações, sinais, seres do Universo uno...

Sentia dever ser um  cavaleiro errante e enamorado da sabedoria e da verdade, capaz de descobrir e cultivar as almas afins e aliadas, naturais e necessárias em cada estação da vida e ir, adequadamente, dialogando e transmitindo os conhecimentos e discernimentos recebidos para a Verdade, o Bem e a Felicidade da Humanidade e do Cosmos.

Cogitando interiormente, como que olhando para o fundo da abertura num longe enublado, parecia-me descortinar uma cena de livros, pessoas e conferências, sob a luz da Dama da Sabedoria, embora sentisse isso  como menos essencial comparado com a iluminação interior, com a religação espiritual e divina a realizar.

Mas que iluminação deveria obter? Ou como melhor atingir e ser a Luz?

Era verdade que a minha alma por vezes a via ou contemplava, aproximando-se e revelando-se, diminuindo e desaparecendo na visão espiritual, por si mesma, livremente soprando ou agraciando.

Deveria então cada ser conseguir assimilá-la mais profundamente, e até mais demoradamente? E mais de manhã, ou  ao acordar e meditar na madrugada, ou a meio da noite? Será que é nestas horas que o verdadeiro culto da aspiração ou quem sabe afinal de auto-irradiação espiritual interior, se deve praticar, cultivar? Ou é mais o silêncio reinante e a capacidade das ondas do pensamento se aquietarem e deixarem a luz vir ao de cima o que conta?

Aspirantes e companheiros da Luz somos, os mestres, anjos e a Divindade invocamos com devoção ou amor, mas quantos conseguimos manter mesmo as luzes acessas a mostrarem e a impulsionarem-nos nos caminhos justo, dharmicos, por onde devemos avançar, construir, permanecer,  persistir?

Diariamente fazemos isto ou aquilo bem ou luminosamente, mas quanto da realidade espiritual mais profunda vem ao de cima e banha, tinge-nos, permeia-nos ou atingimos? E o que conseguimos conservar de luminoso por mais tempo na nossa consciência tão envolta no exterior e nas suas vicissitudes, hoje em dia tão oprimidas pelos incessantes meios de comunicação e manipulação?

Não é que queiramos ser só espíritos puros, porque estamos socialmente no corpo físico, e por razões várias, e cada ser o desejou ou mereceu. Mas quem discerne mesmo o objectivo principal de vida e o prossegue com perseverança: ler e  dialogar, saber e agir melhor, libertar-nos dos desejos e de ilusões terrestres, ou ainda fazer obra, despertar a luz, fortificar e expandir a consciência e o bem, melhorando até a ligação a Deus?

Como das vibrações das prateleiras do conhecimento histórico e poético, filosófico e espiritual brotam tantas correntes contraditórias torna-se difícil estarmos plenamente seguros do que quer que seja. Tudo é possível. "Mil cabeças, mil e uma cosmovisões e duas mil opiniões". Contudo, para cada ser há um caminho, um pathos, uma maneira de ser e sentir, o dharma das tarefas a cumprir e dos valores a cultivar, e um meditar diário, desafiando-nos constantemente. Por estas obras e formas, leituras, orações e meditações um caminho de luz e religação espiritual vai-se trilhando, com os resultados progressivamente se desvendando. 

Não sabemos se estamos a ser meramente optimistas ou realistas, ou mesmo para nos sossegarmos, quando, apoiados no bordão de esperança, sentimo-lo dizer-nos que  dia após dia, e culminando na hora de morte,  estaremos mais iluminados. Mas que validade tem essa nossa noção de iluminação, uma palavra com tantas conotações, a maior certamente a atribuída a Sidharta Gauthama o Budha, isto é, o iluminado, da palavra sânscrita bodhi e que significa sabedoria? 


A iluminação pode significar para cada um de nós a consciencialização da irradiação maior ou menor da presença luminosa espiritual, e em cada momento e acto de vida, por mais adversas que sejam as situações. 

Tal como a aranha segrega e tece a teia de si própria, o sábio vê do seu interior derramarem-se ou irradiarem correntes energéticas que no seu melhor são sobretudo de paz, amor e inteligência e que no seu percurso  tanto vão vencendo, suplantando ou amenizando as miudezas, separatividades e animosidades da vida  como contribuindo para uma transparência maior da potencialidade luminosa de todos os seres no grande oceano da consciência universal Divina.

Acima dos pensamentos, dos livros, dos autores, eu procurava então erguer-me e ver e sentir a vibração do Sol do espírito e da Verdade, confiante de que depois conseguiria transmiti-la com conta, peso e medida, ou como harmonia subtil mas real.

Ora quando se percorre a Índia dos templos e dos ashrams (centros espirituais), das sastras (escrituras), darshanas (sistemas filosóficos) e dos gurus (mestres), tanta é a diversidade de visões e realizações, sentimentos e adorações, que somos obrigados a aceitar com naturalidade toda a forma de se ver e conceptualizar a Divindade e as suas manifestações pessoais,  bem como a riqueza de símbolos e rituais, sentidos e hermenêuticas desses cultos tão diversificados. 

Decanta-se assim ao longo das peregrinações e encontros, diálogos e discussões, leituras, anotações e meditações uma necessidade ou vontade de acolher as pessoas com as suas maneiras de ser, pensar e cultuar, na sua diversidade, e não cairmos na  critica reactiva e sobretudo a partir de uma posição de nos considerarmos mais próximos ou conhecedores da luz da Verdade.

Tinha era de avançar no meu caminho, nos trabalhos, estudos e escritos, meditações e diálogos, cumprir o meu dever ou missão a cada momento, acender  a luz da sabedoria e do amor libertador, despertando consciências mas sem me deixar envolver em querelas e disputas, em que os egos se enredam tão facilmente ao entrarem em contacto uns com os outros com diferentes leituras e perspectivas, experiências e sentidos da vida,  e tentando afirmarem-se.

Mas despertarmos e discernirmos bem o que é a consciência correcta e o que devemos fazer com ela não é fácil, certamente. Por exemplo, onde a localizamos mais? No cérebro, como quer a ciência moderna materialista, ou como um vasto medium omnipresente universal que se actualiza mais em certos seres?

Numa percepção irradiante da atenção, como  uma aura vidente em todo o corpo, e dando assim justificação para a sensação e expressão de "caminhar com mil olhos", que encontrou até expressão iconográfica  no budismo tibetano ou no Argus vigilante da tradição grega? 

É a consciência mais como uma teia de aranha, segregação de mil filamentos duma energia que se expande a partir dum centro, o espírito, o eu ou a coordenação dos neurónios, e que não devemos fixar num ponto, mas entendê-la como capaz de se manifestar através de subtis coordenações de várias localizações ou centros, ou ela é apenas a base psíquica consciencial e funcional do universo com a qual nós sintonizamos, singramos e unificamos?

Ora quando estava na biblioteca, qual gigantesca consciência, tanto me podia concentrar a energia da atenção numa receptividade pura no todo dela, ora focá-la num ponto central, fosse autor, tema ou livro e, pela intencionalidade receptiva e inteligência criativa,  começar a escrever como que estimulado pelas correntes das emanações dos livros e dos autores que a constituíam e que eram afins ou ressoantes da minha aspiração tanto de auto-conhecimento como de conhecimento do universo e dos seus seres e mistérios.


Oh, e maravilha das maravilhas, por vezes sentia no peito uma intensificação da energia do amor e gratidão e tornava-me uma taça ardente do fogo, onde as emanações do coração e do amor palpitante davam asas a sentimentos e pensamentos valiosos, possibilitando a expansão da aura e consciência e assim vencendo limitações e ignorâncias e intuíndo mais expansões de conhecimento e comunhões.

Algumas vezes senti-me como se fosse um vigilante no cimo dum monte a receber de todas as direcções do espaço múltiplas correntes e que sintonizava com as que eram mais inspiradoras para a demanda ou situação em que estava. Nessa biblioteca indiana, de Calcutá, o Preste João, Samarkande, o Cataio, Vasco da Gama, a Índia, o Nirvana, o Amor, a Divindade, Ramakrishna, os yogis, místicos cristãos e sufis e suas metodologias, eram os grandes nomes e ícones a vibrar, legendas douradas que transcrevia para cadernos e se tornavam elos e contas do meu rosário orativo na demanda de clarificar aspectos e subtilezas, numa calma confluência de aspirações e fontes de informações, mantida pela consciência unificada na vontade persistente de atravessar e vencer as dificuldades e mistérios, com a mente e alma aberta ao infinito céu azul divino, essa primeira e última religião universal, sob a qual ou na qual tais buscas e legendas sempre estiveram e ainda hoje as prosseguimos, e, por isso, alguns sábios a denominaram de Religião ou Filosofia perene.

Nesta prática de auto-consciencialização no meio dos livros tornava-me assim mais intensamente consciente dos canais que me ligam ao alto, e dos filamentos dourados que a inteligência cósmica e os seus cultores de todos os tempos e bibliotecas, tecem em nós sempre que estamos o mais plenamente possível no presente e que é também eternidade, na aspiração da melhor iluminação .

Ó mestres e desaparecidos, ó frustrações e fraquezas, ó potencialidades e riquezas, para todos vós acorram nestes momentos de maior concentração as setas do amor puro e para vós desfraldemos as bandeiras das Alas dos Namorados e dos Fiéis do Amor e invoquemos as correntes da Amrita ou Ambrósia antiga, as bebidas da imortalidade, essas manifestações conscienciais de que o Amor vence todas as carências, barreiras e separações e aproxima-nos grata e jubilosamente do mistério da origem, do ser, da Divindade.

Para o ponto ou momento, para além do Tempo e do Espaço, para a criatividade Divina primordial, para o destino último de todas as navegações e embarcações, para a Consciência energia cósmica inteligente que nos banha, apontemos as nossas aspirações e invoquemos as suas bênçãos, assimilando-as na grande riqueza dos encontros e dos desencontros, das dores e das alegrias, dos obstáculos e das ajudas, de todas essas transitoriedades que se espalmam ou desvanecem perante a imensidade desse Ser do qual o céu azul é já um impressionante reflexo, para não falarmos da grandeza das galáxias ou da profundidade e infinitude das partículas que as substanciam  na prodigiosa mas inarrável Manifestação Divina.

Nesta frequentação e quase dança imensa de tantas energias, seres, qualidades, a minha alma ergue-se como uma labareda de mil chispas e sinto claramente que para além deste corpo eu sou uma luz inteligente e consciente, um centro anímico-espiritual  incarnado na Terra com o propósito permear os ambientes, seres e coisas, com  a luz do espírito que em mim esteja acessa, e com a máxima possível harmonia.

Agora o Sol está pôr-se, a biblioteca do Instituto Cultural da Missão  Ramakrishna em Calcuta em breve encerrará e os livros que enchem as várias estantes e prateleiras com todas as suas mensagens, longínquas no seu tempo e no espaço original de autores, datas e tipografias, mas  próximas e ao alcance do olhar enquanto livros e conteúdos, perderão essa capacidade de me transmitirem títulos, autores e assuntos, e não são mais do que percursos atapetados donde podem ainda emergir presenças subtis e fugazes, os corpúsculos de luz que as identificavam e que elas emanavam a habitarem a minha memória e a poderem conjurar-se como conhecimentos, imaginações e adivinhações.

Substituindo os raios solares desvanecidos no horizonte, enquanto me ergo, o sol do coração  irradia gratidão e aspiração, e sinto-me mais verticalizado como se houvesse um zizague ou escada,  canal ou elevador intensificado a ligar-me mais ao alto. 

Pela plenificação e abertura do coração e do cimo da cabeça  a consciência alarga-se e respirar por uns momentos as energias das sublimes regiões do Universo consciencial e Divino onde a ignorância e corrupção, a violência e o ódio não existem, mas sim o corpo místico da Humanidade espiritual e o seu amor sabedoria de que tantos dos livros da Biblioteca nos falam e encantam

Sim, no fim das contas, ao fechar das páginas do dia,   vestido de branco na aurora e já tingido de tantas cores ao pôr do sol, e do meu caderno indiano de notas bem mais enriquecido, competia-me sobretudo dar graças à Divindade e à sua criatividade manifestada por tantos seres e livros e contribuir para a sua Glória ou Luz, com as transmissões das suas melhores qualidades e virtudes que ressoam, captamos e intuímos.

Oh, se os seres humanos conhecessem os píncaros da compreensão, da paciência e amor, da consciência e  energia que potencialmente estão em nós e nos livros, reflexos dos planos superiores e seus seres, reais mas invisíveis aos nossos olhos, quantas meditações e acções mais ardentes e luminosas aconteceriam, quantos grupos coesos e satsangas brilhantes,  estariam a melhorar os destinos dos povos e sociedades? 

Quem quer fazer parte das alas de namorados, trabalhadores e curadores, prometeus e yogis, cavaleiros e damas que querem ascender a estas alturas e aí replenificar as taças ou graais dos seus corações, e com as suas palavras, mantras, cantos e escritos harmonizar os ambientes e iluminar as almas  irmãs ou afins da Terra e seus infinitos seres?

Passadas, passadas estavam as últimas linhas,  minutos e passos na tão rica e acolhedora biblioteca e com as correntes da gratidão e da calma plena de aceitação da pura inteligência divina, o grande rio da Divindade, como numa cheia, transbordando do céu e das estantes, enchia o meu ser e fortalecia-me acima de dúvidas,  passividades e desânimos horizontais, e estava pronto a avançar pleno de energia sábia e fazendo luz nos almas e caminhos...

Despedia-me com amor muito grato da biblioteca e a minha alma ia em comunhão com o passado, o presente e futuro, calma e luminosamente. Uma meditação solitária no meu quarto servia para dedilhar uns cantos, orações ou mantras de adoração à Divindade e assimilar em coordenações íntimas as palhetas de ouro divino que flutuavam como partículas  sob a costa do mar da minha alma e atmosfera, assim mais harmoniosa e feliz após mais uma incursão nas correntes de conhecimento e amor do Oceano da história e sabedoria, dos livros e  bibliotecas, humana e divina...

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

"Ao Clero", carta de Tolstoi, em prol dum Cristianismo livre de horrores e patranhas. A excomunhão. A réplica libertadora...

O livro Ao Clero, publicado na livraria Central de Gomes de Carvalho, em 1903, em Lisboa,  segundo a tradução de Mayer Garção, do qual já resumimos os 10 capítulos, das 42 páginas, com algumas transcrições em https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/04/tolstoi-ao-clero-1902-resumo-deste.html, permitia ler na época, com uma distância muita curta da publicação no original russo, a importante carta que Tolstoi (1828-1910) publicara  em 1 de Novembro de 1902, tanto interpelando e criticando  o ensinamento religioso e cristão que se transmitia e nos modos em que se exercia, como reagindo pela 2ª vez à excomunhão lançada a 22 de Fevereiro de 1901 pelo Santo-Sínodo e que tanto agitara os meios universitários e intelectuais mais progressistas de Moscovo, com fortes manifestações e protestos, por vezes violentos, sendo detidas centenas de pessoas.

                            

Eis uma parte do belo texto da excomunhão (traduzida por mim do francês, da época), bastante compreensível então e sobretudo para os mais fiéis aos ensinamentos tidos como verdadeiros da Igreja:
 « (...) Nos nossos dias  pela  permissão de Deus, apareceu um novo falso instrutor, o conde Leão Tolstoi. Escritor de reputação mundial, russo de nascimento, ortodoxo pelo baptismo e pela educação, o conde Tolstoi, perdido pelo seu orgulho, ergueu-se com com audácia  contra Deus, contra Cristo e a sua herança sagrada. Diante de todos renegou a mãe que o alimentou do seu leite e o educou, a Igreja Ortodoxa, e consagrou a sua actividade literária e o talento que Deus lhe deu a propagar entre o povo doutrinas contrárias a Cristo e à Igreja, para destruir no espírito e no coração das pessoas a fé de seus pais, esta fé ortodoxa na qual viveram os nossos antepassados e que foi a fundação e a força da Santa Rússia.
Nas suas obras e nas suas cartas, espalhadas em grande número, por ele e seus discípulos, no mundo inteiro e particularmente dentro dos confins da nossa querida pátria, prega com ardor de fanático a abolição de todos os dogmas da Igreja ortodoxa e da própria essência da fé ortodoxa. Nega a Deus pessoal e vivo [procurando-o de outro modo], glorificado na Trindade Santa, criador e providência do mundo; nega Jesus Cristo, Homem Deus, Redentor e Salvador do mundo que sofreu por nós e pela salvação nossa e ressuscitou dos mortos; nega a imaculada concepção de Nosso Senhor Jesus, incarnando assim como a virgindade antes e depois do parto da puríssima Mãe de Deus e sempre virgem Maria; não reconhece a vida futura nem as penas e castigos que acontecerão depois da morte; nega todos os sacramentos da Igreja e a graça do Espírito Santo agindo neles; e, insultando os artigos mais sagrados da fé do povo ortodoxo, não receia menospreza o maior dos sacramentos, a santa Eucaristia.»
 
Esta resolução ou quase decreto, assinada pelas sete principais autoridades eclesiásticas da Rússia, lamentava ainda chegar-se a tal ponto, pois as tentativas de conciliação não tinham resultado, e orava para que ele se convertesse de novo, tanto mais que familiares e amigos sofriam com isso.
Nos meios europeus, o agigantamento de Tolstoi face à Igreja Ortodoxia.

A forte carta de resposta justificativa de Tolstoi teve um forte impacto, tanto por vir no meio de uma refrega doutrinal (quase de vida e de morte, como era uma excomunhão, e Pico della Mirandola vivenciou-a), o que no começo dela transparece:«Quem quer que vós sejais: papas, cardeais, bispos, pastores de qualquer religião que sejais, abandonai por um momento a certeza que possuis que sois os únicos verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, chamados a propagar a sua única e verdadeira doutrina (...)», como por ser uma época em que o não-violência, pacifismo, simplicidade, amor fraterno e cristianismo puro das mensagens de Tolstoi, já com a sua obra de romancista mundialmente aclamada, cruzavam todas as fronteiras e distâncias, unindo pacifistas, socialistas, idealistas, revolucionários, anarquistas e espirituais, e assim vários dos melhores intelectuais, tolstoianos ou não, discutiam-no ou admiravam-no e divulgavam-no, tal entre nós Antero de Quental, Jaime de Magalhães de Lima, Mayer Garção, Joaquim Leitão, Francisco Barros Lobo, Heliodoro Salgado, Afonso Gayo, Mariana Carvalhaes. Ou mais tarde Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Fernando Namora e Agostinho da Silva...
                           
No artigo já publicado resumimos, do I capítulo da carta Ao Clero,  os doze princípios doutrinários, ou artigos do Símbolo estabelecido no Concílio de Niceia os quais eram tidos como revelação divina para salvação do homem e que eram portanto ensinados pelo clero para o bem dos seres humanos. E depois passámos brevemente pelos aspectos mais importantes dos outros capítulos, seleccionando algumas das suas ideias e frases ora mais críticas ora mais estimulantes.

No II capítulo, após criticar os meios violentos com que tais preceitos ou verdades foram impostos pelas Igrejas a tantos povos e gentes, Tolstoi, sempre cioso defensor da escolha livre e formada dos seres, refere outra metodologia de ensino e missionarização: «Um outro meio é a influência exterior sobre os sentimentos dos homens, pela solenidade das mise-en-scène, pelos quadros, as estátuas, os cantos, a musica, e até mesmo as representações dramáticas e a arte oratória. Com o tempo, esse meio tem-se vindo empregando cada vez menos. Nos países protestantes, em geral, já não se emprega, salvo a arte oratória (a única excepção é o Exército da Salvação que imaginou ainda novos meios de influência exterior sobre os sentimentos).
Mas, em troca,
todas as forças do clero são agora dirigidos sobre o terceiro e mais poderoso meio, que está sempre uso e que o clero conserva com um zelo particular. Esse meio consiste em inculcar aos homens a doutrina da Igreja quando eles são incapazes de formar um juízo sobre aquilo que lhe transmitem. Esses são os homens inteiramente ignorantes, os operários que não têm tempo de reflectir, e principalmente as crianças que aceitam sem apreciar e cuja alma se impregna para sempre daquilo que lhes inculcam».

Após esta críticas fortes a um ensino religioso bastante forçado e nocivo será no III capítulo que Tolstoi, considerando os erros e a irracionalidade de partes de tal ensinamento e fé, vai em breves linhas ironizar as histórias ora inocentes ora imorais do Antigo Testamento e a substituição do ensinamento principal de Jesus, contido no Sermão da Montanha, por concordâncias proféticas, milagres, aparências e mistificações, que acabariam por trair e desfigurar a mensagem de Jesus de simplicidade, humildade, não-violência, amor, e tolerância, esta virtude faltando todavia, por vezes, um pouco, ao peregrino em busca do mestre ou do espírito, Tolstoi.
                                                        

O mestre ou staretz S. Serafim de Sarov, que se Tolstoi tivesse encontrado talvez tivesse realizado mais o Espírito divino e santo.

Esta sua coragem em questionar aspectos controversos ou errados derivava, após uma fase céptica e até niilista, duma demanda sincera, ardente e investigadora sobre Deus, Jesus e as religiões (e ainda que melhor e mais pioneira quanto ao Taoísmo, nas outras com as limitações da época), intensificada desde  1879, quando esteve no mosteiro de Grottes, em Kiev, e no da Trindade S. Sérgio, em Moscovo, em amplas discussões com monges "notáveis e inteligentes" mas que não lhe conseguiram então esclarecer as dúvidas, obrigando-o nas restantes décadas da sua vida a uma constante investigação das religiões e da mensagem de Jesus, deixando-nos algumas obras sobre tal demanda. Merece assim ser lido e reflectido na sua escrita genial e tão revolucionária, pelo que  transcreveremos agora o III capítulo todo.

Número em 1960 da revista Vértice consagrado aos 50 anos da partida de Tolstoi.

III - «De forma que, no nosso tempo, o principal meio de transmitir aos homens a verdade que Deus vos revelou consiste em ensiná-la aos homens e às crianças que não raciocinam e aceitam tudo
Este ensino começa ordinariamente pelo que se chama História sagrada, passagens escolhidas da Bíblia, livros hebraicos do Velho Testamento, que, segundo vossa doutrina, são obra do Espírito Santo, e por consequência não só indiscutivelmente verdadeiras, mas sagradas.
É p
or essa história que o vosso discípulo elabora as suas primeiras concepções do mundo, da vida dos homens sobre a terra, do bem e do mal, de Deus. [No séc. XXI já é muitíssimo menos assim, embora a educação religiosa continue a ser partilhada pelas Igrejas, católicas, protestantes ou evangélicas, em certos casos muito limitada e condicionadoramente.]
Essa história sag
rada começa por contar como Deus eterno há seis mil anos criou o céu e aterra, depois os animas, os peixes, as plantas e por fim o homem. Adão, e de uma das suas costelas, a mulher Explica-se em seguida como Deus, receando que o homem e a mulher comessem o pomo que continha a força mágica de dar a omnipotência, lhes proibiu que comessem esse fruto, e como, apesar dessa proibição, o primeiro canal humano devorou a maça e foi por isso expulso do Paraíso; como, por esse mesmo facto, a sua descendência foi amaldiçoado, bem como  a terra que, daí em diante, produziu ervas daninhas. Em seguida descreve-se a vida dos descendentes de Adão, tão depravados que Deus não só os afogou a todos, mas com eles todos os animais, não deixando vivos senão Noé e a sua família, e os seus animais, encerrados na arca. Conta-se em seguida como entre todos os homens, Deus escolheu Abraão e fez com ele um pacto pelo qual Abraão devia adorar Deus como Deus, e, em sinal de adoração, praticar a circuncisão. Em troca, Deus comprometia-se a dar a Abraão uma grande posterioridade  e a protegê-lo, assim como a todos os seus descendentes: depois conta-se como Deus, que protege  Abraão e os seus descendentes, realiza em seu proveito e dos seus descendentes os actos, contrários à Natureza, denominados milagres, e as piores crueldades. De forma que toda esta história, - à excepção de contos ingénuos (por exemplo: a visita que Deus, acompanhado de dois anjos, faz a Abraão; o casamento de Isaac, e outros), por vezes inocentes e a maior parte das vezes imorais, (como as ladroeiras de Jacob, favorito de Deus, as crueldades de Samsão, as astúcias de José), toda essa história começando pelos flagelos enviados por Moisés aos egípcios e exterminação, pelo Anjo, de todos os recém-nascidos, até ao fogo, que devorou duzentos e cinquenta conspiradores, até Coré, Dathan e Abiron engolidos pela terra, até ao aniquilamento, em alguns minutos, de 14.700 homens, até aos inimigos serrados ao meio e aos pontífices que, não estando de acordo com Elias, foram supliciados por ele, que subiu depois ao céu, até Eliseu, amaldiçoando rapazes que zombavam dele e que por isso foram devorados por duas ursas, toda essa história não é senão uma série de acontecimentos miraculosos e de crimes horríveis cometidos pelo povo hebraico, pelos seus chefes, e pelo próprio Deus.
Mas o
vosso ensino da história que chamais sagrada não se limita a isto. Afora a história do Antigo Testamento ensinais ainda às crianças e aos homens ignorantes a história do Novo Testamento, interpretando-a de tal forma que o essencial, nesse Novo Testamento, não reside já na doutrina moral, no sermão da montanha, mas na concordância dos Evangelhos com o Antigo Testamento, no cumprimento das profecias e dos milagres: a marcha da estrela [para Belém], os cantos celestes [dos anjos], a conversação com Satanás, a transformação da água em vinho, o passeio sobre as águas, as curas, a ressurreição dos homens, enfim a do próprio Cristo e a sua ascensão.
Se todos e
stes disparates do Antigo e do Novo Testamento fossem narrados como contos, não seria ainda assim sem dificuldade que um professor se decidiria a contá-los às crianças ou aos adultos que pretendesse educar, E todavia estes contos transmitem-se a quem não é capaz de raciocinar, como a descrição mais exacta do mundo e das suas leis, como o conhecimento mais seguro da vida dos homens que outrora existiram, do que se deve considerar como sendo o bem e o mal, dos atributos de Deus e dos deveres dos homens.
Fala-se de l
ivros nocivos! Mas no mundo cristão há acaso livro que tenha feito mais mal aos homens e mulheres do que esse livro terrível que se chama a história sagrada do Antigo e do Novo Testamento? E todos os homens e mulheres do mundo cristão, na sua infância, recebem o ensino dessa história sagrada, e essa mesma história é ensinada a todos os homens ignorantes como sendo a ciência fundamental, indispensável, como a verdade única e eterna.»

  Tolstoi continuará nos restantes capítulos a criticar a doutrina do Antigo e em parte do Novo Testamento, «estranha à ciência moderna, ao bom senso e ao sentimento moral,» pois ao não serem obrigatórias as exigências da razão tanto a verdade como a contemplação firme e razoável do mundo já não são retidas, valorizando sempre o desejo de amor recíproco e de fraternidade entre os seres com os meios de se desenvolverem os esforços de aperfeiçoamento, a partir de uma consciência do bem e do mal, e de se vencer o egoísmo, o ódio, a violência, a subserviência a arcaísmos religiosos falsos, tais os horrores do Antigo Testamento, ou o que considerava superstições idolátricas (olvidando a fé) e poderes injustos e iníquos. 
No parágrafo finalizante da sua carta Ao Clero concluirá:  «Eis o que eu vos queria dizer, agora que me encontro à beira do túmulo [verdade literal, pois escrevia a uns metros do bosque de faias que daí uns anos acolherá o corpo] e vejo claramente a origem principal dos males do homem. E queria dizê-lo, não para vos acusar e vos condenar (sei bem por que declive insensível fostes arrastados a essa sedução que vos tornou o que sois) mas para ajudar os homens e mulheres do mal horrível que produz a propaganda da vossa doutrina que oculta a verdade, e ao mesmo tempo, ajudar-vos a acordar desse hipnotismo em que vos encontrais e que vos impede de compreender tudo quanto vosso ministério tem de criminoso.

Que Deus vos auxilie; ele é quem vê os vossos corações.»

 Isnaia Poliana, 1 de Novembro -1902.

O mahasamadhi de Tolstoi no bosque de faias, em Isnaia Poliana

domingo, 5 de novembro de 2023

António Carvalhal, um poeta espiritual, discípulo de Antero de Quental. A "Esfinge", da Morte e da Imortalidade, com poema psico-biográfico de Antero.

 António Carvalhal é hoje um poeta desconhecido, que terá vivido não certamente entre as datas que a Base Nacional de Dados, a Porbase, lhe atribui, de 1834 a 1890, pois é nas primeiras décadas do século XX que surgem publicadas na Livraria Fernando Machado no Porto, algumas  obras suas de poesia,  bem frescas e com um ar nada póstumo: em 1900, Cantares. Depois dum longo hiato, em 1926, Estrada de Damasco. E logo de seguida em 1927 Esfinge: versos, e por fim em 1928, O Cancioneiro azul. Possuo a Esfinge, e como nela há um poema sobre Antero de Quental, e outros de teor tanto anteriano como espiritual, resolvemos homenageá-lo, trazendo-o à luz do século XXI. 

Da sua biografia dele, no começo deste artigo em 31-10-2023, quase nada poderei dizer, pois  posso deduzir apenasalguns traços anímicos pelo conteúdo do livro dedicada à misteriosa Esfinge, um in-8º de 104 páginas, bem impresso em 1927 na Tipografia Progresso, à rua Sousa Viterbo nº 81, Porto. Contudo, uns dias depois, pude encontrar outro dos seus livros, a Estrada de Damasco, de 1926, com uma dedicatória escrita por alguém em 1943, na qual chama a António Carvalhal  "malogrado poeta". 
Como foi escrito antes da Esfinge, apresento um breve resumo contextualizante: os  cem poemas são de boa qualidade e mostram a sua grande força de amor e domínio dos versos e imaginação. Divididos em cinco livros, os primeiros transmitindo o seu amor por uma mulher que se tornará a companheira, o penúltimo Almas dispersas, desenrolando em versos a sua sensibilidade panteísta,  e no último capítulo, o Caminho, mostrando tanto a sua familiaridade com as várias tradições espirituais poetizando-as a partir da sua leitura ou vivência: Ramayana, Bhagavad Gita, Chah é nameh, e Virgílio e as suas Geórgicas, como ainda as suas profundas realizações de amor e de compreensão.

A epígrafe inicial do livro Esfinge é, certamente, das mais utilizadas em livros, de Shakespeare: There are more things in heaven and Earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy, e abre-nos portanto à pluridimensionalidade dos seres, dos mundos, da vida. Segue-se um soneto dedicado à Esfinge, valioso, e no qual pensa ter decifrado seu enigma: a vida no inferno é horrorosa e a no Céu bela. Vemos portanto um pensador religioso ou espiritual, e com ideias do Bem e do Mal firmes. Seguem-se depois os vários sonetos, agrupados em três núcleos, Almas Heróicas, Cadáveres e Através do Mistério.

  Almas Heróicas, com sete sonetos biográficos de S. Francisco de Assis, Camões, Antero, Frei Agostinho da Cruz, Dante, Leopardi, Baudelaire, Verlaine, Rollinat e Espronceda. Por eles vemos os seus mestres ou exemplares literários e logo as suas linhas de força, de afinidade, de aspiração, de ideais. E deles falaremos no fim.

 2º Cadáveres, tem dez sonetos sob a temática da morte, e termina com  os Suicidas onde não os aprovando nem condenando, condói-se por os ver «à beira dos abismos caminhando/ Alucinados, espectrais buscando/ o silêncio da luz libertadora». É muito legível e sensível a influência dos sonetos de Antero de Quental e de algumas das suas ideias, imagens e sentimentos sobre a incognosciblidade ou silêncio de Deus, e a morte,   ora vista como má e destruidora, ora como amante e libertadora, e os mortos ora vistos em decomposição, ora como seres espirituais que se libertaram. As duas quadras do soneto os Mortos são muito idealistas e perfeitas, e merecem a transcrição:

Os Mortos jamais voltam desse Além,
Dessa Índia de sonho e formosura...
Guiados por um sol de luz mais pura
Lá partem, confiados, no seu bem...
 
Uma paz como aqui sentiu ninguém
Eles a sentem, livres de tortura,
Nessa romagem santa da Ventura
Que um dia havemos de fazer também.»

Tal como do soneto a Morte, onde o magistério anteriano deificante da Morte atinge uma florescência bela e perfeita (sobretudo nas duas quadras, que transcreveremos), mas, claro, altamente idealizada, algo enganadora até no que pode atrair para ela, pois o post-mortem no mundo astral é muito variável, e o do suicida muito espinhoso:

Eis o que a Morte diz aos seus eleitos:
"- Vinde gozar em mim a Eternidade,
Que eu sou a paz e sou a liberdade,
Ó grandes corações insatisfeitos!

Vossos males serão por mim desfeitos;
Em mim encontrareis felicidade...
Inimiga da dor e da Ansiedade,
Sei dar consolação aos vossos peitos!"

 O 3º núcleo Através do Mistério, que se inicia com uma citação de  Antero de Quental, contém dezanove sonetos sobre aspectos importantes do caminho espiritual da Vida, com títulos bem profundos ou elevados: O Palácio do Mistério, com quatro sonetos, O Som,  Sabedoria, Hino à Ideia, Amor sem Palavras, A Alma Inimiga, Noite Espiritual, A um Teósofo, A hora que passa jamais volta, O presságio, Contemplação, Vida etérea, Elevação, Vida Espiritual, Redenção, Hino ao Sol.

Assim como o 2º núcleo,, Cadáveres leva como epígrafe a redutora mas apropriada citação das Odes de Horácio Pulvis et umbra sumus, Pó e sombra somos, e o 1º núcleo, valorizador das Almas heróicas, estava antecedido pela citação, bem romanticamente imortalizadora (já que depois de mortos quase todos são enaltecidos), de Alfredo de Vigny: 

"Qu'importe oubli, morsure, injustice insensée,
Glaces et tourbillons de notre traversée?
Sur la pierre des morts croit l'arbre de grandeur..."
“Que importa o esquecimento, mordidela, injustiça sem sentido,
Gelos e redemoinhos de nossa travessia?
Sobre a pedra dos mortos cresce a árvore da grandeza...
"

o 3º núcleo, Através do Mistério, é antecedido por uma quadra, do soneto Contemplação, de Antero, ao qual já dedicámos um texto: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/03/contemplacao-soneto-de-antero-quental.html, e aponta  para a vida espiritual imortal...

«Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando...» 

Há pois uma progressão de realização ao longo dos três núcleos: o 1º apresenta os exemplos de seres ou obras que se imortalizaram, no 2º passa pela descida à morte física e como nela muitos ficam contidos ou se extinguem e é no 3º que se dá a iniciação, o caminhar já nesta vida Através do Mistério, do além, da vida depois da morte, da esfinge espiritual e Divina, em dezasseis poemas bem ricos e profundos. 

Se quiséssemos escrever pequenos ensaios ou mesmo poemas sobre cada um dos títulos, provavelmente apenas em alguns aspectos coincidiríamos com o que António Carvalhal sentiu, realizou, transmitiu. As associações de ideias, que as ideias-forças dos versos nos fazem desencadear, só em certos casos serão as mesmas que as suas, mas  os títulos de Palácio do Mistério, ou da Ventura, e o Hino à Ideia são dos mais anterianos.  A Sabedoria, como linha de demanda da sua alma,  a Noite Espiritual, apontando à mística espanhola e à súbita ausência da graça divina, o da harmonizadora Vida etérea lembrando um título de Teixeira de Pascoaes, o A Um Teósofo, animando-o no seu difícil caminho, pois estará sempre acompanhado, e o último, o Hino ao Sol, bem poderoso no culto ao Sol que tanto pode ser o dos naturistas, o dos egípcios de Akhenaten, o Sol invictus mitraico-romano ou mesmo apenas o Primordial...


Destes valiosos dezasseis poemas, com dezanove sonetos  transcrevamos então em resumo os melhores ensinamentos que António Carvalhal intuiu ou realizou: No 1º poema, o Palácio do Mistério, glosa e redime Antero no seu Palácio da Ventura, pois consegue entrar nele, pela porta da Palavra, e na sua luz avança para o Bem, o Amor, o Ideal.

                         

Nos restantes três sonetos do Palácio do Mistério aborda a porta da Linha recta do ritmo e pensamento  próprio por onde ascende "para o Amor, para a Luz, a Bondade, para o princípio e fim donde viemos...";  e por fim a porta do Número, onde vê,  descidas do Único Ser Supremo, as almas sete vezes desunidas (provavelmente pelos seus sete corpos-princípios), com uma íntima referência nos tercetos finais que pode ser a de um numerologista ou então a de uma súbita intuição do número regente ou dominante no caminho das almas:

"Feliz da alma sincera, a que encontrou
O seu número bem distraída
E todo o seu mistério penetrou.
 
Mais formoso será o seu caminho,
Flores o juncarão, e a própria vida
Já para ele terá maior carinho..."

No 2º poema, o Som, mostra-nos conhecer o mistério e poder do Som, nomeadamente interno, e quase não podia ser melhor o que transmite. É António Carvalhal, ou parece ser, um ser espiritual bafejado pela audição do subtil som divino. 
Reproduzimos na fotografia as duas quadras e transcrevemos os tercetos finais: «Deus fala sempre às almas em segredo: No fulgor duma estrela, ou trono erguido, No perfume que passa ou no rochedo. /E tudo o adora, e tudo lhe obedece... E o Som oculto uma só vez ouvido, Nunca se apaga, nunca mais esquece!» Realcemos o não consumístico mas iniciático, uma só vez ouvido...
No 3º poema, a Sabedoria, mais do que hino à personificação dela, à santa Sabedoria, ou duma ponderada meditação sobre as forças da inteligência e de afecto unidas para agirem harmoniosamente, encontramos, sob uma epígrafe de Emerson, Crê em ti próprio,  um elogio grato à "sua" persistente vontade que o ergueu de verme ao cimo da montanha. A primeira quadra mereceria ser quase transcrita pois nela afirma que o amor deu-lhe sabedoria para do abismo do seu ser inconsciente se erguer à luz que o ilumina, à calma do saber, pelo seu perseverante querer. 

O 4º poema, Hino à Ideia vale a pena ser meditado, pois no séc. XXI o culto das ideias e ideais, valores e causas, parece ter sido trocado pelo das imagens, dos likes, da desinformação, do consentimento do mal:

"Nada embelece tanto e me seduz,
E sabe dar, também, tanta harmonia,
Como a ideia que anima a forma fria
E pelo mundo espalha a sua luz.

Para o bem, para a glória mais conduz
Quanta mais alta for a fantasia
E nada iguala a indómita energia
Com que o sonho ela doma, ela traduz.

Livre, divina, clara e pura ideia!
A minha alma te adora, e já se alteia
Para o teu esplendor e formosura...

Que um dos teus raios até ela desça,
E a inunde toda, quando desfaleça,
Para maior glória, maior ventura!"

Nos outros poemas há visíveis ou claras influências do magistério de Antero de Quental, mas também do platonismo e de espiritualidades que António Carvalhal soube incorporar ou assimilar na sua alma poética e de aspirante espiritual, tal a chama de puro amor dos olhos, a alma perversa que o bem odeia e nunca se comove,  o regressar dos mundos espirituais, a anteriana voz da "consciência que dentro em mim protesta", o mergulho no oceano em busca da pérola, o viver plenamente a Hora presente, o saber ouvir ou intuir os sinais e advertências, o caminho para o Bem, a Verdade e o Amor, e que surgem bem expressos. Por exemplo, no Contemplação, de novo ouvimos Antero bem exponenciado, seja na 1ª quadra, "Nem só para este mundo é que vivemos, Nem nesta vida, aqui, tudo termina; Outro mundo de luz, pura e divina, Nos chama e espera, e não o conhecemos.", seja no terceto final: " Muito acima das coisas perecíveis, Das paixões e dos ódios invencíveis, Paira a Vida infinita e espiritual!" Os últimos sonetos estão bem cheios de valiosos ensinamentos espirituais, tal no Elevação, a 1ª quadra:«Todos para a Beleza caminhamos Mais crentes e fiéis os corações, Sem já olhar a gozos e ambições, Mas ao puro ideal que alevantamos." E o 1º terceto: "Para a Luz, para o Bem, para a Verdade, Seja a nossa divisa e o nosso canto por terra e céus, por toda a imensidade..."


Voltando agora ao 1º núcleo do livro, ou conjunto inicial de sonetos dedicados às  Almas heróicas, para o bem ou o mal, felizes ou sofredoras, realizadas ou desesperados, crentes ou desiludidas, podemos demarcar claramente dois seres bem compreendidos e descritos na sua luminosidade e são os poemas mais felizes ou perfeitos, dedicados a Antero de Quental e a Frei Agostinho da Cruz. Em seguida há-os a dois seres perfeitos, mas que teriam destroçado o coração, S. Francisco de Assis e  Luís de Camões, e depois os com luz e sombra, mas mais esta do que aquela, e seriam, Dante (1265-1321), algo misteriosamente em tal caracterização, Leopardi (1798-1837), e depois, mais evidentes no seu envolvimento com as sombras, Baudelaire (1821-1867), Verlaine (1844-1896), Rollinat (1846-1903) e Espronceda (1808-1842), mostrando em todos um bom conhecimento biográfico e anímico para os poetizar resumidamente tão bem. 

Talvez os dois sonetos que transmitem mais luz e perfeição sejam os de Frei Agostinho da Cruz, retratado no seu regresso à serra mãe, a Arrábida, na pobreza e simplicidade, todo dedicado ao Amor divino e da Natureza ("Longe dos homens, longe do ódio seu, Entre feras achaste só bondade... No doce amor divino e na humidade, Teu puro coração não mais sofreu./ No sereno refúgio duma cela, Ou no seio da inculta natureza, Tua vida era simples e era bela..."), e o do Antero de Quental, este certamente o mais conseguido, pois sentem-se nas ideias e ideais de António Carvalhal o sopro do magistério anímico do ardente peregrino e cavaleiro que foi Antero de Quental. 


No soneto,  a figura anímica de Antero de Quental é esculpida como um forte lutador contra o mal e dualidade, e a sua ascensão da Terra aos espaços siderais psico-espirituais é magnífica pois abstrai ou ignora os seus desalentos e pessimismos, doenças e morte, realçando antes a voz elevante de Antero de Quental, e quem a saberá ouvir ou melhor intuir nos nossos dias? 

Talvez alguma alma devota que o consiga vê-lo no seu silêncio esfíngico, ou que o saiba ler e logo ouvir profundamente. E, comovida, confesse a felicidade de sentir-interpretar o coração do vate e seu guia para as alturas, e o Bem e o Amor que sente:

                                          ANTHERO

Quando leio os Sonetos imortais
Domados por teu pulso de gigante,
E sigo a tua Ideia fulgurante
Por ignotos caminhos triunfais;
 
Quantos os Males cruéis, universais,
Traduzis em teu canto retumbante,
E vais crente, profético, radiante,
do lodo vil a mundos siderais;
 
Quando em fim, toda em hinos de oiro e luz,
Tua voz ressoando nas alturas
A um outro céu mais puro me conduz;
 
Minha alma treme e chora de emoção,
E sonha e goza inéditas venturas
Ao interpretar teu grande coração.»
 
Parafraseemos interrogadoramente: E o nosso coração e alma, como estão? Vencendo doenças e tristezas, desilusões, desânimos e tragédias? Brilhantes e irradiantes, capazes de acolher a Divindade e emanar claridade e bondade? 
Saudemos com muita luz e amor Antero de Quental e António Carvalhal (e que possamos vir a saber mais  sobre), e comunguemos  criativa, amorosa e sabiamente no corpo místico da Humanidade e da Divindade!