segunda-feira, 6 de novembro de 2023

"Ao Clero", carta de Tolstoi, em prol dum Cristianismo livre de horrores e patranhas. A excomunhão. A réplica libertadora...

O livro Ao Clero, publicado na livraria Central de Gomes de Carvalho, em 1903, em Lisboa,  segundo a tradução de Mayer Garção, do qual já resumimos os 10 capítulos, das 42 páginas, com algumas transcrições em https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/04/tolstoi-ao-clero-1902-resumo-deste.html, permitia ler na época, com uma distância muita curta da publicação no original russo, a importante carta que Tolstoi (1828-1910) publicara  em 1 de Novembro de 1902, tanto interpelando e criticando  o ensinamento religioso e cristão que se transmitia e nos modos em que se exercia, como reagindo pela 2ª vez à excomunhão lançada a 22 de Fevereiro de 1901 pelo Santo-Sínodo e que tanto agitara os meios universitários e intelectuais mais progressistas de Moscovo, com fortes manifestações e protestos, por vezes violentos, sendo detidas centenas de pessoas.

                            

Eis uma parte do belo texto da excomunhão (traduzida por mim do francês, da época), bastante compreensível então e sobretudo para os mais fiéis aos ensinamentos tidos como verdadeiros da Igreja:
 « (...) Nos nossos dias  pela  permissão de Deus, apareceu um novo falso instrutor, o conde Leão Tolstoi. Escritor de reputação mundial, russo de nascimento, ortodoxo pelo baptismo e pela educação, o conde Tolstoi, perdido pelo seu orgulho, ergueu-se com com audácia  contra Deus, contra Cristo e a sua herança sagrada. Diante de todos renegou a mãe que o alimentou do seu leite e o educou, a Igreja Ortodoxa, e consagrou a sua actividade literária e o talento que Deus lhe deu a propagar entre o povo doutrinas contrárias a Cristo e à Igreja, para destruir no espírito e no coração das pessoas a fé de seus pais, esta fé ortodoxa na qual viveram os nossos antepassados e que foi a fundação e a força da Santa Rússia.
Nas suas obras e nas suas cartas, espalhadas em grande número, por ele e seus discípulos, no mundo inteiro e particularmente dentro dos confins da nossa querida pátria, prega com ardor de fanático a abolição de todos os dogmas da Igreja ortodoxa e da própria essência da fé ortodoxa. Nega a Deus pessoal e vivo [procurando-o de outro modo], glorificado na Trindade Santa, criador e providência do mundo; nega Jesus Cristo, Homem Deus, Redentor e Salvador do mundo que sofreu por nós e pela salvação nossa e ressuscitou dos mortos; nega a imaculada concepção de Nosso Senhor Jesus, incarnando assim como a virgindade antes e depois do parto da puríssima Mãe de Deus e sempre virgem Maria; não reconhece a vida futura nem as penas e castigos que acontecerão depois da morte; nega todos os sacramentos da Igreja e a graça do Espírito Santo agindo neles; e, insultando os artigos mais sagrados da fé do povo ortodoxo, não receia menospreza o maior dos sacramentos, a santa Eucaristia.»
 
Esta resolução ou quase decreto, assinada pelas sete principais autoridades eclesiásticas da Rússia, lamentava ainda chegar-se a tal ponto, pois as tentativas de conciliação não tinham resultado, e orava para que ele se convertesse de novo, tanto mais que familiares e amigos sofriam com isso.
Nos meios europeus, o agigantamento de Tolstoi face à Igreja Ortodoxia.

A forte carta de resposta justificativa de Tolstoi teve um forte impacto, tanto por vir no meio de uma refrega doutrinal (quase de vida e de morte, como era uma excomunhão, e Pico della Mirandola vivenciou-a), o que no começo dela transparece:«Quem quer que vós sejais: papas, cardeais, bispos, pastores de qualquer religião que sejais, abandonai por um momento a certeza que possuis que sois os únicos verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, chamados a propagar a sua única e verdadeira doutrina (...)», como por ser uma época em que o não-violência, pacifismo, simplicidade, amor fraterno e cristianismo puro das mensagens de Tolstoi, já com a sua obra de romancista mundialmente aclamada, cruzavam todas as fronteiras e distâncias, unindo pacifistas, socialistas, idealistas, revolucionários, anarquistas e espirituais, e assim vários dos melhores intelectuais, tolstoianos ou não, discutiam-no ou admiravam-no e divulgavam-no, tal entre nós Antero de Quental, Jaime de Magalhães de Lima, Mayer Garção, Joaquim Leitão, Francisco Barros Lobo, Heliodoro Salgado, Afonso Gayo, Mariana Carvalhaes. Ou mais tarde Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Fernando Namora e Agostinho da Silva...
                           
No artigo já publicado resumimos, do I capítulo da carta Ao Clero,  os doze princípios doutrinários, ou artigos do Símbolo estabelecido no Concílio de Niceia os quais eram tidos como revelação divina para salvação do homem e que eram portanto ensinados pelo clero para o bem dos seres humanos. E depois passámos brevemente pelos aspectos mais importantes dos outros capítulos, seleccionando algumas das suas ideias e frases ora mais críticas ora mais estimulantes.

No II capítulo, após criticar os meios violentos com que tais preceitos ou verdades foram impostos pelas Igrejas a tantos povos e gentes, Tolstoi, sempre cioso defensor da escolha livre e formada dos seres, refere outra metodologia de ensino e missionarização: «Um outro meio é a influência exterior sobre os sentimentos dos homens, pela solenidade das mise-en-scène, pelos quadros, as estátuas, os cantos, a musica, e até mesmo as representações dramáticas e a arte oratória. Com o tempo, esse meio tem-se vindo empregando cada vez menos. Nos países protestantes, em geral, já não se emprega, salvo a arte oratória (a única excepção é o Exército da Salvação que imaginou ainda novos meios de influência exterior sobre os sentimentos).
Mas, em troca,
todas as forças do clero são agora dirigidos sobre o terceiro e mais poderoso meio, que está sempre uso e que o clero conserva com um zelo particular. Esse meio consiste em inculcar aos homens a doutrina da Igreja quando eles são incapazes de formar um juízo sobre aquilo que lhe transmitem. Esses são os homens inteiramente ignorantes, os operários que não têm tempo de reflectir, e principalmente as crianças que aceitam sem apreciar e cuja alma se impregna para sempre daquilo que lhes inculcam».

Após esta críticas fortes a um ensino religioso bastante forçado e nocivo será no III capítulo que Tolstoi, considerando os erros e a irracionalidade de partes de tal ensinamento e fé, vai em breves linhas ironizar as histórias ora inocentes ora imorais do Antigo Testamento e a substituição do ensinamento principal de Jesus, contido no Sermão da Montanha, por concordâncias proféticas, milagres, aparências e mistificações, que acabariam por trair e desfigurar a mensagem de Jesus de simplicidade, humildade, não-violência, amor, e tolerância, esta virtude faltando todavia, por vezes, um pouco, ao peregrino em busca do mestre ou do espírito, Tolstoi.
                                                        

O mestre ou staretz S. Serafim de Sarov, que se Tolstoi tivesse encontrado talvez tivesse realizado mais o Espírito divino e santo.

Esta sua coragem em questionar aspectos controversos ou errados derivava, após uma fase céptica e até niilista, duma demanda sincera, ardente e investigadora sobre Deus, Jesus e as religiões (e ainda que melhor e mais pioneira quanto ao Taoísmo, nas outras com as limitações da época), intensificada desde  1879, quando esteve no mosteiro de Grottes, em Kiev, e no da Trindade S. Sérgio, em Moscovo, em amplas discussões com monges "notáveis e inteligentes" mas que não lhe conseguiram então esclarecer as dúvidas, obrigando-o nas restantes décadas da sua vida a uma constante investigação das religiões e da mensagem de Jesus, deixando-nos algumas obras sobre tal demanda. Merece assim ser lido e reflectido na sua escrita genial e tão revolucionária, pelo que  transcreveremos agora o III capítulo todo.

Número em 1960 da revista Vértice consagrado aos 50 anos da partida de Tolstoi.

III - «De forma que, no nosso tempo, o principal meio de transmitir aos homens a verdade que Deus vos revelou consiste em ensiná-la aos homens e às crianças que não raciocinam e aceitam tudo
Este ensino começa ordinariamente pelo que se chama História sagrada, passagens escolhidas da Bíblia, livros hebraicos do Velho Testamento, que, segundo vossa doutrina, são obra do Espírito Santo, e por consequência não só indiscutivelmente verdadeiras, mas sagradas.
É p
or essa história que o vosso discípulo elabora as suas primeiras concepções do mundo, da vida dos homens sobre a terra, do bem e do mal, de Deus. [No séc. XXI já é muitíssimo menos assim, embora a educação religiosa continue a ser partilhada pelas Igrejas, católicas, protestantes ou evangélicas, em certos casos muito limitada e condicionadoramente.]
Essa história sag
rada começa por contar como Deus eterno há seis mil anos criou o céu e aterra, depois os animas, os peixes, as plantas e por fim o homem. Adão, e de uma das suas costelas, a mulher Explica-se em seguida como Deus, receando que o homem e a mulher comessem o pomo que continha a força mágica de dar a omnipotência, lhes proibiu que comessem esse fruto, e como, apesar dessa proibição, o primeiro canal humano devorou a maça e foi por isso expulso do Paraíso; como, por esse mesmo facto, a sua descendência foi amaldiçoado, bem como  a terra que, daí em diante, produziu ervas daninhas. Em seguida descreve-se a vida dos descendentes de Adão, tão depravados que Deus não só os afogou a todos, mas com eles todos os animais, não deixando vivos senão Noé e a sua família, e os seus animais, encerrados na arca. Conta-se em seguida como entre todos os homens, Deus escolheu Abraão e fez com ele um pacto pelo qual Abraão devia adorar Deus como Deus, e, em sinal de adoração, praticar a circuncisão. Em troca, Deus comprometia-se a dar a Abraão uma grande posterioridade  e a protegê-lo, assim como a todos os seus descendentes: depois conta-se como Deus, que protege  Abraão e os seus descendentes, realiza em seu proveito e dos seus descendentes os actos, contrários à Natureza, denominados milagres, e as piores crueldades. De forma que toda esta história, - à excepção de contos ingénuos (por exemplo: a visita que Deus, acompanhado de dois anjos, faz a Abraão; o casamento de Isaac, e outros), por vezes inocentes e a maior parte das vezes imorais, (como as ladroeiras de Jacob, favorito de Deus, as crueldades de Samsão, as astúcias de José), toda essa história começando pelos flagelos enviados por Moisés aos egípcios e exterminação, pelo Anjo, de todos os recém-nascidos, até ao fogo, que devorou duzentos e cinquenta conspiradores, até Coré, Dathan e Abiron engolidos pela terra, até ao aniquilamento, em alguns minutos, de 14.700 homens, até aos inimigos serrados ao meio e aos pontífices que, não estando de acordo com Elias, foram supliciados por ele, que subiu depois ao céu, até Eliseu, amaldiçoando rapazes que zombavam dele e que por isso foram devorados por duas ursas, toda essa história não é senão uma série de acontecimentos miraculosos e de crimes horríveis cometidos pelo povo hebraico, pelos seus chefes, e pelo próprio Deus.
Mas o
vosso ensino da história que chamais sagrada não se limita a isto. Afora a história do Antigo Testamento ensinais ainda às crianças e aos homens ignorantes a história do Novo Testamento, interpretando-a de tal forma que o essencial, nesse Novo Testamento, não reside já na doutrina moral, no sermão da montanha, mas na concordância dos Evangelhos com o Antigo Testamento, no cumprimento das profecias e dos milagres: a marcha da estrela [para Belém], os cantos celestes [dos anjos], a conversação com Satanás, a transformação da água em vinho, o passeio sobre as águas, as curas, a ressurreição dos homens, enfim a do próprio Cristo e a sua ascensão.
Se todos e
stes disparates do Antigo e do Novo Testamento fossem narrados como contos, não seria ainda assim sem dificuldade que um professor se decidiria a contá-los às crianças ou aos adultos que pretendesse educar, E todavia estes contos transmitem-se a quem não é capaz de raciocinar, como a descrição mais exacta do mundo e das suas leis, como o conhecimento mais seguro da vida dos homens que outrora existiram, do que se deve considerar como sendo o bem e o mal, dos atributos de Deus e dos deveres dos homens.
Fala-se de l
ivros nocivos! Mas no mundo cristão há acaso livro que tenha feito mais mal aos homens e mulheres do que esse livro terrível que se chama a história sagrada do Antigo e do Novo Testamento? E todos os homens e mulheres do mundo cristão, na sua infância, recebem o ensino dessa história sagrada, e essa mesma história é ensinada a todos os homens ignorantes como sendo a ciência fundamental, indispensável, como a verdade única e eterna.»

  Tolstoi continuará nos restantes capítulos a criticar a doutrina do Antigo e em parte do Novo Testamento, «estranha à ciência moderna, ao bom senso e ao sentimento moral,» pois ao não serem obrigatórias as exigências da razão tanto a verdade como a contemplação firme e razoável do mundo já não são retidas, valorizando sempre o desejo de amor recíproco e de fraternidade entre os seres com os meios de se desenvolverem os esforços de aperfeiçoamento, a partir de uma consciência do bem e do mal, e de se vencer o egoísmo, o ódio, a violência, a subserviência a arcaísmos religiosos falsos, tais os horrores do Antigo Testamento, ou o que considerava superstições idolátricas (olvidando a fé) e poderes injustos e iníquos. 
No parágrafo finalizante da sua carta Ao Clero concluirá:  «Eis o que eu vos queria dizer, agora que me encontro à beira do túmulo [verdade literal, pois escrevia a uns metros do bosque de faias que daí uns anos acolherá o corpo] e vejo claramente a origem principal dos males do homem. E queria dizê-lo, não para vos acusar e vos condenar (sei bem por que declive insensível fostes arrastados a essa sedução que vos tornou o que sois) mas para ajudar os homens e mulheres do mal horrível que produz a propaganda da vossa doutrina que oculta a verdade, e ao mesmo tempo, ajudar-vos a acordar desse hipnotismo em que vos encontrais e que vos impede de compreender tudo quanto vosso ministério tem de criminoso.

Que Deus vos auxilie; ele é quem vê os vossos corações.»

 Isnaia Poliana, 1 de Novembro -1902.

O mahasamadhi de Tolstoi no bosque de faias, em Isnaia Poliana

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