domingo, 5 de novembro de 2023

António Carvalhal, um poeta espiritual, discípulo de Antero de Quental. A "Esfinge", da Morte e da Imortalidade, com poema psico-biográfico de Antero.

 António Carvalhal é hoje um poeta desconhecido, que terá vivido não certamente entre as datas que a Base Nacional de Dados, a Porbase, lhe atribui, de 1834 a 1890, pois é nas primeiras décadas do século XX que surgem publicadas na Livraria Fernando Machado no Porto, algumas  obras suas de poesia,  bem frescas e com um ar nada póstumo: em 1900, Cantares. Depois dum longo hiato, em 1926, Estrada de Damasco. E logo de seguida em 1927 Esfinge: versos, e por fim em 1928, O Cancioneiro azul. Possuo a Esfinge, e como nela há um poema sobre Antero de Quental, e outros de teor tanto anteriano como espiritual, resolvemos homenageá-lo, trazendo-o à luz do século XXI. 

Da biografia dele, no começo deste artigo em 31-10-2023 quase nada poderei dizer, pois apenas poso deduzir alguns traços anímicos pelo conteúdo do livro dedicada à misteriosa Esfinge, um in-8º de 104 páginas, bem impresso em 1927 na Tipografia Progresso, à rua Sousa Viterbo nº 81, Porto. Contudo, uns dias depois, pude adquirir outro dos seus livros, a Estrada de Damasco, de 1926, com uma dedicatória escrita por alguém em 1943, na qual chama a António Carvalhal  "malogrado poeta". 
Como foi escrito antes da Esfinge, apresento um breve resumo contextualizante: os  cem poemas são de boa qualidade e mostram a sua grande força de amor e domínio dos versos e imaginação. Divididos em cinco livros, os primeiros transmitindo o seu amor por uma mulher que se tornará a companheira, o penúltimo Almas dispersas, desenrolando em versos a sua sensibilidade panteísta,  e no último capítulo, o Caminho, mostrando tanto a sua familiaridade com as várias tradições espirituais poetizando-as a partir da sua leitura ou vivência: Ramayana, Bhagavad Gita, Chah é nameh, e Virgílio e as suas Geórgicas, como ainda as suas profundas realizações de amor e de compreensão.

A epígrafe inicial do livro Esfinge é, certamente, das mais utilizadas, em livros, de Shakespeare: There are more things in heaven and Earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy, e abre-nos portanto à pluridimensionalidade dos seres, dos mundos, da vida. Segue-se um soneto dedicado à Esfinge, valioso, e no qual pensa ter decifrado seu enigma: a vida no inferno é horrorosa e a no Céu bela. Vemos portanto um pensador religioso ou espiritual, e com ideias do Bem e do Mal firmes. Seguem-se depois os vários sonetos, agrupados em três núcleos, Almas Heróicas, Cadáveres e Através do Mistério.

  Almas Heróicas, com 7 sonetos biográficos de S. Francisco de Assis, Camões, Antero, Frei Agostinho da Cruz, Dante, Leopardi, Baudelaire, Verlaine, Rollinat e Espronceda. Por eles vemos os seus mestres ou exemplares literários e logo as suas linhas de força, de afinidade, de aspiração, de ideais. E deles falaremos no fim.

 2º Cadáveres, tem dez sonetos sob a temática da morte, e termina com  os Suicidas onde não os aprovando nem condenando, condói-se por os ver «à beira dos abismos caminhando/ Alucinados, espectrais buscando/ o silêncio da luz libertadora». É muito legível e sensível a influência dos sonetos de Antero de Quental e de algumas das suas ideias, imagens e sentimentos sobre a incognosciblidade ou silêncio de Deus, a morte,   ora vista como má e destruidora, ora como amante e libertadora, e os mortos ora vistos em decomposição, ora como seres espirituais que se libertaram. As duas quadras do soneto os Mortos são muito idealistas e perfeitas, e merecem a transcrição:

Os Mortos jamais voltam desse Álem,
Dessa Índia de sonho e formosura...
Guiados por um sol de luz mais pura
Lá partem, confiados, no seu bem...
 
Uma paz como aqui sentiu ninguém
Eles a sentem, livres de tortura,
Nessa romagem santa da Ventura
Que um dia havemos de fazer também.»

Tal como do soneto a Morte, onde o magistério anteriano deificante da Morte atinge uma florescência bela e perfeita (sobretudo nas duas quadras, que transcreveremos), mas, claro, altamente idealizada, algo enganadora até no que pode atrair para ela, pois o post-mortem no mundo astral é muito variável, e o do suicída muito espinhoso:

Eis o que a Morte diz aos seus eleitos:
«- Vinde gozar em mim a Eternidade,
Que eu sou a paz e sou a liberdade,
Ó grandes corações insatisfeitos!

Vossos males serão por mim desfeitos;
Em mim encontrareis felicidade...
Inimiga da dor e da Ansiedade,
Sei dar consolação aos vossos peitos!

 O 3º núcleo Através do Mistério, que se inicia com uma citação de  Antero, contém dezanove sonetos sobre aspectos importantes do caminho espiritual da Vida, com títulos bem profundos ou elevados: O Palácio do Mistério, com IV sonetos, O Som,  Sabedoria, Hino à Ideia, Amor sem Palavras, A Alma Inimiga, Noite Espiritual, A Um Teósofo, A hora que passa jamais volta, O presságio, Contemplação, Vida etérea, Elevação, Vida Espiritual, Redenção, Hino ao Sol.

Assim como o 2º núcleo Cadáveres leva como epígrafe a redutora mas apropriada citação de Horácio Pulvis et umbra sumus, e o 1º núcleo, valorizador das Almas heróicas, estava antecedido por uma citação bem romanticamente imortalizante de Alfredo de Vigny: 

"Q'importe oubli, morsure, injustice insensée,
Glaces et tourbillons de notre traversée
Sur la pierre des morts croi l'arbre de grandeur...

o 3º núcleo, Através do Mistério, é antecedido por uma quadra, do soneto Contemplação, de Antero, ao qual já dedicámos um texto: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/03/contemplacao-soneto-de-antero-quental.html, e nele aponta bem para a vida espiritual imortal...

«Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências ,
Entre ideias e espíritos pairando...» 

Há pois uma progressão de realização ao longo dos três núcleos: o 1º apresenta os exemplos de seres ou obras que se imortalizaram, no 2º passa pela descida à morte física e como nela muitos ficam contidos ou se extinguem e é no 3º que se dá a iniciação, o caminhar já nesta vida Através do Mistério, do além, da vida depois da morte, da esfinge espiritual e Divina, em dezasseis poemas bem ricos e profundos. 

Se quiséssemos escrever pequenos ensaios ou mesmo poemas sobre cada um dos títulos, provavelmente apenas em alguns aspectos coincidiríamos com o que António Carvalhal sentiu, realizou, transmitiu. As associações de ideias, que as ideias-forças dos versos nos fazem desencadear só em certos casos serão as mesmas, mas  os títulos de Palácio do Mistério, ou da Ventura, e o Hino à Ideia são dos mais anterianos.  A Sabedoria, como linha de demanda da sua alma,  a Noite Espiritual, apontando à mística espanhola e à súbita ausência da graça divina, o da harmonizadora Vida etérea lembrando um título de Teixeira de Pascoaes, o A Um Teósofo animando-o no seu difícil caminho, pois estará sempre acompanhado, e o último, o Hino ao Sol, bem poderoso no culto ao Sol que tanto pode ser o dos naturistas, o dos egípcios de Akhenaten, o Sol invictus mitraico-romano ou mesmo apenas o Primordial...


Destes valiosos 16 poemas, com 19 sonetos  transcrevamos então em resumo os melhores ensinamentos que António Carvalhal intuiu ou realizou: No 1º poema, o Palácio do Mistério, glosa e redime Antero no seu Palácio da Ventura, pois consegue entrar nela, e pela porta da Palavra, e na sua luz avança para o Bem, o Amor, o Ideal.

                         

Nos restantes três sonetos do Palácio do Mistério aborda a porta da Linha recta do ritmo e pensamento  próprio por onde ascende "para o Amor, para a Luz, a Bondade, para o princípio e fim donde viemos...",  e por fim a porta do Número, onde vê,  descidas do Único Ser Supremo, as almas sete vezes desunidas (provavelmente pelos seus sete corpos-princípios), com uma íntima referência nos tercetos finais que pode ser a de um numerologista ou então a de uma súbita intuição do número regente ou dominante no caminho das almas:

"Feliz da alma sincera, a que encontrou
O seu número bem distraída
E todo o seu mistério penetrou.
 
Mais formoso será o seu caminho,
Flores o juncarão, e a própria vida
Já para ele terá maior carinho..."

No 2º poema, o Som, mostra-nos que ele sabia do mistério e poder do Som, nomeadamente interno, e quase não podia ser melhor o que transmite. É, ou parece ser, um ser espiritual bafejado pela audição do som divino. 
Reproduzimos na fotografia as duas quadras e transcrevemos os tercetos finais: «Deus fala sempre às almas em segredo: No fulgor duma estrela, ou trono erguido, No perfume que passa ou no rochedo. /E tudo o adora, e tudo lhe obedece... E o Som oculto uma só vez ouvido, Nunca se apaga, nunca mais esquece!»
No 3º, a Sabedoria, mais do que hino à personificação dela, à santa Sabedoria, ou duma ponderada meditação sobre as forças da inteligência e de afecto unidas para agirem harmoniosamente, encontramos, sob uma epígrafe de Emerson, Crê em ti próprio,  um elogio grato à sua persistente vontade que o ergueu de verme ao cimo da montanha. A primeira quadra mereceria ser quase transcrita pois nela afirma que o amor deu-lhe sabedoria para do abismo do seu ser inconsciente se erguer à luz que o ilumina, à calma do saber, pelo seu perseverante querer. 

O 4º poema, Hino à Ideia vale a pena ser meditado, pois no séc XXI o culto das ideias e ideais, valores e causas, parece ter sido trocado pelo das imagens, dos likes, da desinformação, do consentimento do mal, e por isso ei-lo:

Nada embelece tanto e me seduz,
E sabe dar, também, tanta harmonia,
Como a ideia que anima a forma fria
E pelo mundo espalha a sua luz.

Para o bem, para a glória mais conduz
Quanta mais alta for a fantasia
E nada iguala a indómita energia
Com que o sonho ela doma, ela traduz.

Livre, divina, clara e pura ideia!
A minha alma te adora, e já se alteia
Para o teu esplendor e formosura...

Que um dos teus raios até ela desça,
E a inunde toda, quando desfaleça,
Para maior glória, maior ventura!

Nos outros poemas há visíveis ou claras influências do magistério de Antero de Quental, mas também do platonismo e de espiritualidades que António Carvalhal soube incorporar ou assimilar na sua alma poética e aspirante espiritual, tal a chama de puro amor dos olhos, a alma perversa que o bem odeia e nunca se comove,  o regressar dos mundos espirituais, a voz da "consciência que dentro em mim protesta", o mergulho no oceano em busca da pérola, o viver plenamente a Hora presente, o saber ouvir ou intuir os sinais e advertências, o caminho para o Bem, a Verdade e o Amor, e que surgem bem expressos. Por exemplo, no Contemplação, de novo ouvimos Antero bem exponenciado, seja na 1ª quadra, "Nem só para este mundo é que vivemos, Nem nesta vida, aqui, tudo termina; Outro mundo de luz, pura e divina, Nos chama e espera, e não o conhecemos." Seja no terceto final: " Muito acima das coisas perecíveis, Das paixões e dos ódios invencíveis, Paira a Vida infinita e espiritual!" Os últimos sonetos estão bem cheios de valiosos ensinamentos espirituais, tal no Elevação, a 1ª quadra:«Todos para a Beleza caminhamos Mais crentes e fiéis os corações, Sem já olhar a gozos e ambições, Mas ao puro ideal que alevantamos." E o 1º terceto: "Para a Luz, para o Bem, para a Verdade, Seja a nossa divisa e o nosso canto Por terra e céus, por toda a imensidade..."


Voltando agora ao 1º núcleo, ou conjunto inicial de sonetos dedicados às  Almas heróicas, para o bem ou o mal, felizes ou sofredoras, realizadas ou desesperados, crentes ou desiludidas, podemos demarcar claramente dois seres bem compreendidos e descritos na sua luminosidade e são os poemas mais felizes ou perfeitos, dedicados a Antero de Quental e Agostinho da Cruz. Em seguida há-os a dois seres perfeitos, mas que teriam destroçado o coração, S. Francisco de Assis e  Camões, e depois os com luz e sombra, mas mais esta do que aquela, e seriam, Dante (1265-1321), algo misteriosamente em tal caracterização, e Leopardi (1798-1837), e depois, mais evidentes no seu envolvimento com as sombras, Baudelaire (1821-1867), Verlaine (1844-1896), Rollinat (1846-1903) e Espronceda (1808-1842), mostrando em todos um bom conhecimento biográfico e anímico para os poetizar resumidamente tão bem. 

Talvez os dois sonetos que transmitem mais luz e perfeição sejam os de Frei Agostinho da Cruz, retratado no seu regresso à serra mãe, a Arrábida, na pobreza e simplicidade, todo dedicado ao Amor divino e da Natureza ("Longe dos homens, longe do ódio seu, Entre feras achaste só bondade... No doce amor divino e na humidade, Teu puro coração não mais sofreu./ No sereno refúgio duma cela, Ou no seio da inculta natureza, Tua vida era simples e era bela..."), e o do Antero de Quental, este certamente o mais conseguido, pois sentem-se nas ideias e ideais de António Carvalhal o sopro do magistério anímico do ardente peregrino e cavaleiro que foi Antero de Quental. 


No soneto,  a figura anímica de Antero de Quental é esculpida como um forte lutador contra o mal e dualidade, e a sua ascensão da terra aos espaços siderais psico-espirituais é magnífica pois abstrai ou ignora os seus desalentos, pessimismos, doença e morte, realçando antes a voz elevante de Antero de Quental, e quem a saberá ouvir ou melhor intuir nos nossos dias? 

Talvez alguma alma devota que o consiga vê-lo no seu silêncio esfíngico ou que o saiba ler e logo ouvir profundamente. E, comovida, confesse a felicidade de sentir-interpretar o coração do vate e seu guia para as alturas, e o Bem e o Amor que sente.

                                          ANTHERO

Quando leio os Sonetos imortais
Domados por teu pulso de gigante,
E sigo a tua Ideia fulgurante
Por ignotos caminhos triunfais;
 
Quantos os Males cruéis, universais,
Traduzis em teu canto retumbante,
E vais crente, profético, radiante,
do lodo vil a mundos siderais;
 
Quando em fim, toda em hinos de oiro e luz,
Tua voz ressoando nas alturas
A um outro céu mais puro me conduz;
 
Minha alma treme e chora de emoção,
E sonha e goza inéditas venturas
Ao interpretar teu grande coração.»
 
E o nosso coração e alma, como estão? Vencendo doenças e tristezas, desilusões, desânimos e tragédias? Brilhantes, irradiantes, capazes de acolher a Divindade e irradiar claridade e bondade? 
Saudemos com muita luz e amor Antero de Quental e António Carvalhal (e que saibamos mais dele), e comunguemos mais criativa, amorosa e sabiamente no corpo místico da Humanidade e da Divindade!

Sem comentários: