Fotografia oficial do estado actual da biblioteca da Missão Ramakrishna em Calcuta onde estive muito tempo a trabalhar em 1995. As fotografias da Índia, pessoais... |
Uma ou outra vez, mergulhado no ambiente duma biblioteca, ao consultar uma obra, um estranho fogo impelia-me a parar de ler-anotar e a começar a escrever, tentando contribuir assim com alguma criatividade própria. Afinal de contas, para quê deslocar-me a uma biblioteca, por vezes após uma longa jornada através de tantas dificuldades empreendida, e apenas ler, registar, comentar, traduzir, sem deixar fluir do meu ser e interior alguns sentimentos e pensamentos também luminosos?
Estando uma vez no Oriente Indiano, subitamente, abriu-se uma oval no espaço mental interior, mostrando-me um longínquo horizonte algo enublado. O meu pensamento levou-me para Lisboa, a cidade onde nascera e mais residira, e dei-me conta que se formava um espaço de visão onde livros e manuscritos se amontoavam, o que me sinalizaria uma sabedoria adquirida ou a adquirir mas que, registada no papel das árvores, de nada valia senão assumida por seres vivos capazes de se transformarem, despertarem e interagirem valiosamente.
Por longos anos investigador de certos assuntos e bibliotecas, amigo dos livros e dos seus amigos, senti de repente que tinha de quebrar um círculo algo passivo, para que ele não se tornasse vicioso e antes germinasse em criatividade e profundidade.
Um par de asas queria crescer em mim e a indiferença
ou adversidade de certas pessoas ou meios encontrados nos ambientes e nas viagens, em Portugal e no
estrangeiro, era como um aguilhão a espicaçar-me: - Não pares nem te
deixes abater por barreiras ou setas inimigas. Persiste criativamente.
Outrora os meus desejos e ambições, embora nunca fossem muitos, passavam por uma iluminação gradual e uma acção espiritual no exterior. Para aprender e partilhar esta iluminação viajara e conhecera, praticara e aprendera com mestres e adquirira ou consultara muitos livros, acumulando assim uma sabedoria incalculável, mas uma parte dela indirecta, não íntima, porque proveniente deles.
E contudo a minha voz e escrita deviam ser espontâneas, naturais, um reflexo da sabedoria, força e amor vividos, aspirados ou necessários em cada situação. Deparando-me por vezes com situações em que forças de desilusão, inércia, mentira, inveja, crítica e roubo surgiam, internas ou externos e
desferiam os seus actos, por vezes traiçoeiros e inesperados, ficava abalado, desiludido. Saber medir cada
acto e encontro e os seus prós e contras antes de o realizar ou ao o enfrentar, quão
necessário se tornava para sobreviver, seja na pátria seja nas peregrinações algo aventurosas por terras distantes em busca da
sabedoria, que sabemos ser sobretudo um estado interior psíquico
auto-consciente, sensível, aberto e interpretando correctamente as energias, informações, sinais, seres
do Universo uno...
Sentia dever ser um cavaleiro errante e enamorado da sabedoria e da verdade, capaz de descobrir e cultivar as almas afins e
aliadas, naturais e necessárias em cada estação da vida e ir, adequadamente, dialogando e transmitindo os conhecimentos e discernimentos recebidos para a Verdade, o Bem e a Felicidade da Humanidade e do Cosmos.
Cogitando interiormente, como que olhando para o fundo da abertura num longe enublado, parecia-me descortinar uma cena de livros, pessoas e conferências, sob a luz da Dama da Sabedoria, embora sentisse
isso como menos essencial comparado com a iluminação interior, com a religação espiritual e divina a realizar.
Mas que iluminação deveria obter? Ou como melhor atingir e ser a Luz?
Era verdade que a minha alma por vezes a via ou contemplava, aproximando-se e revelando-se, diminuindo e desaparecendo na visão espiritual, por si mesma, livremente soprando ou agraciando.
Deveria então cada ser conseguir assimilá-la mais profundamente, e
até mais demoradamente? E mais de manhã, ou ao
acordar e meditar na madrugada, ou a meio da noite? Será que é nestas horas que o
verdadeiro culto da aspiração ou quem sabe afinal de
auto-irradiação espiritual interior, se deve praticar, cultivar? Ou é mais o silêncio reinante e a capacidade das ondas do pensamento se aquietarem e deixarem a luz vir ao de cima o que conta?
Aspirantes e companheiros da Luz somos, os mestres, anjos e a Divindade invocamos com devoção ou amor, mas quantos conseguimos manter mesmo as luzes acessas a mostrarem e a impulsionarem-nos nos caminhos justo, dharmicos, por onde devemos avançar, construir, permanecer, persistir?
Diariamente fazemos isto ou aquilo bem
ou luminosamente, mas quanto da realidade espiritual mais profunda vem ao
de cima e banha, tinge-nos, permeia-nos ou atingimos? E o que conseguimos conservar de luminoso por mais tempo na nossa consciência tão envolta no exterior e nas suas vicissitudes, hoje em dia tão oprimidas pelos incessantes meios de comunicação e manipulação?
Não é que queiramos ser só espíritos puros, porque estamos socialmente no corpo físico, e por razões várias, e cada ser o desejou ou mereceu. Mas quem discerne mesmo o objectivo principal de vida e o prossegue com perseverança: ler e dialogar, saber e agir melhor, libertar-nos dos desejos e de ilusões terrestres, ou ainda fazer obra, despertar a luz, fortificar e expandir a consciência e o bem, melhorando até a ligação a Deus?
Como das vibrações das prateleiras do conhecimento histórico e poético, filosófico e espiritual brotam tantas correntes contraditórias torna-se difícil estarmos plenamente seguros do que quer que seja. Tudo é possível. "Mil cabeças, mil e uma cosmovisões e duas mil opiniões". Contudo, para cada ser há um caminho, um pathos, uma maneira de ser e sentir, o dharma das tarefas a cumprir e dos valores a cultivar, e um meditar diário, desafiando-nos constantemente. Por estas obras e formas, leituras, orações e meditações um caminho de luz e religação espiritual vai-se trilhando, com os resultados progressivamente se desvendando.
Não sabemos se estamos a ser meramente optimistas ou realistas, ou mesmo para nos sossegarmos, quando, apoiados no bordão de esperança, sentimo-lo dizer-nos que dia após dia, e culminando na hora de morte, estaremos mais iluminados. Mas que validade tem essa nossa noção de iluminação, uma palavra com tantas conotações, a maior certamente a atribuída a Sidharta Gauthama o Budha, isto é, o iluminado, da palavra sânscrita bodhi e que significa sabedoria?
Tal como a aranha segrega e tece a teia de si própria, o sábio vê do seu interior derramarem-se
ou irradiarem correntes energéticas que no seu melhor são sobretudo de paz, amor e inteligência e que no seu percurso tanto vão vencendo, suplantando ou amenizando as miudezas,
separatividades e animosidades da vida como contribuindo para uma transparência maior da potencialidade luminosa de todos os seres no grande oceano da consciência universal Divina.
Acima dos pensamentos, dos livros, dos autores, eu procurava então erguer-me e ver e sentir a vibração do Sol do espírito e da Verdade, confiante de que depois conseguiria transmiti-la com conta, peso e medida, ou como harmonia subtil mas real.
Ora quando se percorre a Índia dos templos e dos ashrams (centros espirituais), das sastras (escrituras), darshanas (sistemas filosóficos) e dos gurus (mestres), tanta é a diversidade de visões e realizações, sentimentos e adorações, que somos obrigados a aceitar com naturalidade toda a forma de se ver e conceptualizar a Divindade e as suas manifestações pessoais, bem como a riqueza de símbolos e rituais, sentidos e hermenêuticas desses cultos tão diversificados.
Decanta-se assim ao longo das peregrinações e encontros, diálogos e discussões, leituras, anotações e meditações uma necessidade ou vontade de acolher as pessoas com as suas maneiras de ser, pensar e cultuar, na sua diversidade, e não cairmos na critica reactiva e sobretudo a partir de uma posição de nos considerarmos mais próximos ou conhecedores da luz da Verdade.
Tinha era de avançar no
meu caminho, nos trabalhos, estudos e escritos, meditações e diálogos,
cumprir o meu dever ou missão a cada momento, acender a luz da sabedoria e do amor libertador,
despertando consciências mas sem me deixar envolver em querelas e disputas, em que os egos se enredam tão facilmente ao entrarem em contacto uns com os outros com diferentes leituras e perspectivas, experiências e sentidos da vida, e tentando afirmarem-se.
Mas despertarmos e discernirmos bem o que
é a consciência correcta e o que devemos fazer com ela não é fácil, certamente. Por exemplo, onde a
localizamos mais? No cérebro, como quer a ciência moderna materialista, ou como um vasto medium omnipresente universal que se actualiza mais em certos seres?
Numa percepção irradiante da atenção, como uma aura vidente em todo o corpo, e dando assim justificação para a sensação e expressão de "caminhar com mil olhos", que encontrou até expressão iconográfica no budismo tibetano ou no Argus vigilante da tradição grega?
É a consciência mais como uma teia de aranha, segregação de mil filamentos duma energia
que se expande a partir dum centro, o espírito, o eu ou a coordenação dos neurónios, e que não devemos
fixar num ponto, mas entendê-la como capaz de se manifestar através
de subtis coordenações de várias localizações ou centros, ou ela é apenas a base psíquica consciencial e funcional do universo com a qual nós sintonizamos, singramos e unificamos?
Ora quando estava na biblioteca, qual gigantesca consciência, tanto me podia concentrar a energia da atenção numa receptividade pura no todo dela, ora focá-la num ponto central, fosse autor, tema ou livro e, pela intencionalidade receptiva e inteligência criativa, começar a escrever como que estimulado pelas correntes das emanações dos livros e dos autores que a constituíam e que eram afins ou ressoantes da minha aspiração tanto de auto-conhecimento como de conhecimento do universo e dos seus seres e mistérios.
Algumas vezes senti-me como se fosse um vigilante no cimo dum monte a receber de todas as direcções do espaço múltiplas correntes e que sintonizava com as que eram mais inspiradoras para a demanda ou situação em que estava. Nessa biblioteca indiana, de Calcutá, o Preste João, Samarkande, o Cataio, Vasco da Gama, a Índia, o Nirvana, o Amor, a Divindade, Ramakrishna, os yogis, místicos cristãos e sufis e suas metodologias, eram os grandes nomes e ícones a vibrar, legendas douradas que transcrevia para cadernos e se tornavam elos e contas do meu rosário orativo na demanda de clarificar aspectos e subtilezas, numa calma confluência de aspirações e fontes de informações, mantida pela consciência unificada na vontade persistente de atravessar e vencer as dificuldades e mistérios, com a mente e alma aberta ao infinito céu azul divino, essa primeira e última religião universal, sob a qual ou na qual tais buscas e legendas sempre estiveram e ainda hoje as prosseguimos, e, por isso, alguns sábios a denominaram de Religião ou Filosofia perene.
Nesta prática de auto-consciencialização no meio dos livros tornava-me assim mais intensamente consciente dos canais que me ligam ao alto, e dos filamentos dourados que a inteligência cósmica e os seus cultores de todos os tempos e bibliotecas, tecem em nós sempre que estamos o mais plenamente possível no presente e que é também eternidade, na aspiração da melhor iluminação .Ó mestres e desaparecidos, ó frustrações e fraquezas, ó potencialidades e riquezas, para todos vós acorram nestes momentos de maior concentração as setas do amor puro e para vós desfraldemos as bandeiras das Alas dos Namorados e dos Fiéis do Amor e invoquemos as correntes da Amrita ou Ambrósia antiga, as bebidas da imortalidade, essas manifestações conscienciais de que o Amor vence todas as carências, barreiras e separações e aproxima-nos grata e jubilosamente do mistério da origem, do ser, da Divindade.
Para o ponto ou momento, para além do Tempo e do Espaço, para a criatividade Divina primordial, para o destino último de todas as navegações e embarcações, para a Consciência energia cósmica inteligente que nos banha, apontemos as nossas aspirações e invoquemos as suas bênçãos, assimilando-as na grande riqueza dos encontros e dos desencontros, das dores e das alegrias, dos obstáculos e das ajudas, de todas essas transitoriedades que se espalmam ou desvanecem perante a imensidade desse Ser do qual o céu azul é já um impressionante reflexo, para não falarmos da grandeza das galáxias ou da profundidade e infinitude das partículas que as substanciam na prodigiosa mas inarrável Manifestação Divina.
Nesta frequentação e quase dança imensa de tantas energias, seres, qualidades, a minha alma ergue-se como uma labareda de mil chispas e sinto claramente que para além deste corpo eu sou uma luz inteligente e consciente, um centro anímico-espiritual incarnado na Terra com o propósito permear os ambientes, seres e coisas, com a luz do espírito que em mim esteja acessa, e com a máxima possível harmonia.
Agora o Sol está pôr-se, a biblioteca do Instituto Cultural da Missão Ramakrishna em Calcuta em breve encerrará e os livros que enchem as várias estantes e prateleiras com todas as suas mensagens, longínquas no seu tempo e no espaço original de autores, datas e tipografias, mas próximas e ao alcance do olhar enquanto livros e conteúdos, perderão essa capacidade de me transmitirem títulos, autores e assuntos, e não são mais do que percursos atapetados donde podem ainda emergir presenças subtis e fugazes, os corpúsculos de luz que as identificavam e que elas emanavam a habitarem a minha memória e a poderem conjurar-se como conhecimentos, imaginações e adivinhações.
Substituindo os raios solares desvanecidos no horizonte, enquanto me ergo, o sol do coração irradia gratidão e aspiração, e sinto-me mais verticalizado como se houvesse um zizague ou escada, canal ou elevador intensificado a ligar-me mais ao alto.
Pela plenificação e abertura do
coração e do cimo da cabeça a consciência alarga-se e respirar por uns momentos as energias das sublimes regiões do Universo consciencial e Divino onde a ignorância e corrupção, a violência e o ódio não existem, mas sim o corpo místico da Humanidade espiritual e o seu amor sabedoria de que tantos dos livros da Biblioteca nos falam e encantam
Sim, no fim das contas, ao fechar das páginas do dia, vestido de branco na aurora e já tingido de tantas cores ao pôr do sol, e do meu caderno indiano de notas bem mais enriquecido, competia-me sobretudo dar graças à Divindade e à sua criatividade manifestada por tantos seres e livros e contribuir para a sua Glória ou Luz, com as transmissões das suas melhores qualidades e virtudes que ressoam, captamos e intuímos.
Oh, se os seres humanos conhecessem os píncaros da compreensão, da paciência e amor, da consciência e energia que potencialmente estão em nós e nos livros, reflexos dos planos superiores e seus seres, reais mas invisíveis aos nossos olhos, quantas meditações e acções mais ardentes e luminosas aconteceriam, quantos grupos coesos e satsangas brilhantes, estariam a melhorar os destinos dos povos e sociedades?
Quem quer fazer parte das alas de namorados, trabalhadores e curadores, prometeus e yogis, cavaleiros e damas que querem ascender a estas alturas e aí replenificar as taças ou graais dos seus corações, e com as suas palavras, mantras, cantos e escritos harmonizar os ambientes e iluminar as almas irmãs ou afins da Terra e seus infinitos seres?
Passadas, passadas estavam as últimas linhas, minutos e passos na tão rica e acolhedora biblioteca e com as correntes da gratidão e da calma plena de aceitação da pura inteligência divina, o grande rio da Divindade, como numa cheia, transbordando do céu e das estantes, enchia o meu ser e fortalecia-me acima de dúvidas, passividades e desânimos horizontais, e estava pronto a avançar pleno de energia sábia e fazendo luz nos almas e caminhos...
Despedia-me com amor muito grato da biblioteca e a minha alma ia em comunhão com o passado, o presente e futuro, calma e luminosamente. Uma meditação solitária no meu quarto servia para dedilhar uns cantos, orações ou mantras de adoração à Divindade e assimilar em coordenações íntimas as palhetas de ouro divino que flutuavam como partículas sob a costa do mar da minha alma e atmosfera, assim mais harmoniosa e feliz após mais uma incursão nas correntes de conhecimento e amor do Oceano da história e sabedoria, dos livros e bibliotecas, humana e divina...
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