domingo, 4 de junho de 2023

Alexander Dugin: O que é hegemonia? What is hegemony? Texto bilingue, português e inglês

 Um recente texto (traduzido do orginal inglês por mim) sobre o conceito de hegemonia e quanto ele deve à análise histórica e filosófica do batalhador e co-fundador do partido Comunista italiano Antonio Gramsci (22.I.1891-27-IV.1937) foi dado à luz por Alexander Dugin (7.I.1962),  e cremos ser importante conhecê-lo dado o seu carácter tão actual face às subtis máscaras com que o capitalismo anglo-americano e ocidental se disfarça, e ao seu excepcionalismo iníquo (seja de impressão infinita de dólares, seja de impunidade judicial face aos seus múltiplos crimes de guerra), oprimindo povos e governos e desgraçando a Humanidade e a Mãe Terra.  Um texto breve e iluminante, para podemos discernir melhor a luta hercúlea da Humanidade com tal Hidra.
                                       O que é Hegemonia?
«Se queremos começar a falar de contra-hegemonia, precisamos primeiro de definir o termo "hegemonia".
A hegemonia não é apenas um Estado, não é apenas um poder. Gramsci entende a "hegemonia" como um fenómeno muito próximo do que Lenine entendia por "imperialismo", ou o que hoje se chama "globalização", o "grande reset" ou a "nova ordem mundial". Ou seja, a hegemonia é um fenómeno histórico, ideológico, militar, geopolítico e estratégico complexo.
O próprio conceito de "hegemonia" não foi inventado por Gramsci, foi inventado há muito tempo: foi utilizado pelo antigo historiador grego Tucídides. O termo grego "hegemon" é uma força política que é dominante num contexto regional ou mais vasto. Os estóicos tomaram o conceito de "hegemonicon" para significar o princípio dominante.
A hegemonia de Gramsci é um uso muito especial do termo "hegemonia" que não decorre directamente da análise histórica do uso do termo. De acordo com Gramsci, a hegemonia é uma força que combina história, ideia, civilização, cultura, o militar, o sócio-económico e o potencial industrial. Os gregos nunca incluíram a ideologia no conceito de "hegemonia": a batalha de Esparta e Atenas era para eles uma luta entre duas hegemonias. Mesmo Roma e Cartago, os romanos e os cartagineses - apesar de Chesterton ter tentado, com razão, associar Roma e Cartago à ideologia, de acordo com o dualismo geopolítico - entenderam a sua inimizade como uma luta pelo controlo político.
Mas a ideia de Gramsci é diferente.
Antonio Gramsci (22.I.1897-27-IV-1937), um mártir da causa libertadora dos proletários e camponeses, e dos cidadãos face à opressão, na Itália de Mussolini.
Diferentemente dos gregos e dos romanos, o sujeito da hegemonia de Antonio Gramsci não é o Estado. E isto muda tudo: do ponto de vista de Gramsci, a hegemonia é uma certa força que pode ser encarnada num Estado, num bloco de Estados ou numa orientação política, mas esta força é mais do que um Estado. Tendências históricas, fundamentais e ontológicas estão incorporadas na hegemonia. Ou seja, a hegemonia é constituída pelo tempo e determinada pela sua direcção. E, portanto, é a rede que é o sujeito da hegemonia.
O conceito de hegemonia de Gramsci é uma tentativa de isolar um sujeito específico que unifica formas históricas de vida. E estas formas de vida históricas suprimem e subjugam tudo: sistemas económicos, padrões culturais, tecnologia, indústria militar. A hegemonia global é um específico ambiente de vida, é um sujeito que extorque, tritura, assimila, transforma tudo o que encontra pela frente.
                                  
Além disso, a hegemonia é também uma ordem económica especial. 
Para Gramsci, a hegemonia é o capitalismo, com o seu inerente ambiente cultural, informativo, económico, mediático, militar, político e educacional. A hegemonia é uma forma de ser do capitalismo como um sujeito específico da história. A hegemonia baseia-se numa simbiose subtil dos seus elementos constitutivos. A descolagem de um bombardeiro da NATO, a chegada de uma missão diplomática para observar o "átomo do Irão", uma actuação de Lady Gaga, a oferta de um grande empréstimo do FMI a um país africano em desenvolvimento, a censura do discurso de um filósofo italiano ou russo - tudo isto são elementos de hegemonia. Acha que estamos a falar de questões completamente diferentes? Num caso é uma questão militar, noutro caso é uma questão económica, num terceiro caso é uma questão política, num quarto caso é uma questão cultural. Mas para Gramsci estão todas directamente relacionadas.
Só há uma hegemonia. Os antigos acreditavam que só existe um império. A classe dominante pode mudar, seja ela assíria, grega ou romana, mas um império permanece. Portanto, há apenas uma hegemonia.
Este entendimento fundamental de Gramsci é, nalguns aspectos das relações internacionais, mais profundo do que a metodologia de Carl Schmitt. Eles funcionam bem juntos: quando Gramsci se desvia para o marxismo vulgar, Carl Schmitt pode ajudar com o seu realismo; quando Carl Schmitt fala de forma demasiado cautelosa ou estreita, Gramsci liberta inesperadamente as suas generalizações selvagens. Por isso, devem ser lidos em conjunto - a "direita" e a "esquerda", um par ideal. Esta é a verdadeira ciência política, e uma análise deste tipo nas relações internacionais é óptima e mais completa.»
Alexandre Dugin e a sua filha Daria Dugina, recentemente assassinada por agentes do regime de Kiev. Uma perda irreparável para o património cultural e espiritual da Humanidade.
                                     What is Hegemony?
«In order to start talking about counter-hegemony, we first need to define the term “hegemony”.
Hegemony is not just a state, not just a power. Gramsci understands “hegemony” as a phenomenon very close to what Lenin understood by “imperialism”, or what is today called “globalization”, the “great reset” or “new world order”. That is, hegemony is a complex historical, ideological, military, geopolitical, and strategic phenomenon.
The very concept of “hegemon” was not invented by Gramsci, it was invented long ago: it was used by the ancient Greek historian Thucydides. The Greek term “hegemon” is a political force that is dominant in a regional or wider context. The Stoics took the concept of “hegemonicon” to mean the ruling principle.
Gramsci’s hegemony is a very special use of the term “hegemony” that does not follow directly from the historical analysis of the term’s use. According to Gramsci, hegemony is a force that combines history, idea, civilization, culture, military, socio-economic and industrial potential. The Greeks never included ideology in the concept of “hegemony”: the battle of Sparta and Athens was for them a struggle between two hegemonies. Even Rome and Carthage, the Romans and the Carthaginians themselves – despite the fact that Chesterton rightly tried to link Rome and Carthage with ideology in keeping with geopolitical dualism – perceived their enmity as a struggle for political control.
But Gramsci’s idea is different.
Unlike with the Greeks and Romans, the subject of Gramsci's hegemony is not the state. And this changes everything: from Gramsci’s viewpoint, hegemony is a certain force that can be embodied in a state, a bloc of states, or in a political orientation, but this force is more than a state. Historical, fundamental, ontological tendencies are embodied in hegemony. That is, hegemony is constituted by time and determined by its direction. And therefore, it is the network that is the subject of hegemony.
Gramsci’s concept of hegemony is an attempt to isolate a specific subject unifying historical forms of life. And these historical life forms suppress and subjugate everything: economic systems, cultural patterns, technology, military industry. Global hegemony is a specific living environment, it is a subject that extorts, grinds, assimilates, transforms everything it comes across.
In addition, hegemony is also a special economic order. For Gramsci, hegemony is capitalism, with its inherent cultural, informational, economic, media, military, political, and educational environment. Hegemony is a form of the being of capitalism as a specific subject of history.
Hegemony is based on a subtle symbiosis of its constituent elements. The takeoff of a NATO bomber, the arrival of a diplomatic mission to observe the “Iranian atom”, a Lady Gaga performance, the offer of a large loan from the IMF to a developing African country, censorship of an Italian or Russian philosopher’s speech – these are all elements of hegemony. Do you think that we are talking about completely different issues? In one case it is a military issue, in another case an economic one, in a third a political one, in a fourth a cultural one. And for Gramsci they are all directly related.
There is only one hegemony. The ancients believed that there is only one empire. The ruling class can change, be it Assyrian, Greek, or Roman, but one empire remains. Therefore, there is only one hegemony.
This fundamental understanding of Gramsci’s is in some aspects of international relations deeper than the methodology of Carl Schmitt. They go well together: when Gramsci strays into vulgar Marxism, Carl Schmitt can help with his realism; when Carl Schmitt speaks too cautiously or too narrowly, Gramsci unexpectedly unleashes his savage generalizations. Therefore, they must be read together – the “right” and the “left”, an ideal couple. This is real political science, and such an analysis in international relations is optimal and most complete.»
 

sábado, 3 de junho de 2023

"Daria Dugina, Filosofia como Destino", por Natalia Melentyeva. A crítica de Daria a Deleuze e à dissolução do ser. Tradução inglesa e portuguesa.

Daria Dugina, Filosofia como Destino, traduzido de Daria Dugina, Philosophy as Destiny, escrito por Natalia Melentyeva, mãe de Daria.

                                                            
Discurso na entrega a Daria Dugina do diploma de vencedora do prémio A Face da Nação. Lutadores na frente invisível 2022, em 2 de Fevereiro de 2023. Speech on the occasion of the presentation of a diploma to the winner of the award The Face of the Nation. Fighters of the Invisible Front 2022 to Daria Alexandrovna Dugina, 2 February 2023.
                                               
                                                   15-XII-1992 a 20-VIII-2022...........
Tradução minha, da tradução inglesa por Lorenzo Maria Pacini, e que encontra no fim:
                             A Filosofia como Destino. 

«A vida no mundo actual pressupõe e até exige um enorme esforço da nossa parte não só nas questões mundanas e  movimentos exteriores. Acima de tudo, exige um esforço da mente, do pensamento - um esforço mental, um "fazer mental" como era chamado na tradição monástica dos "santos padres", e esta praxis da mente é necessária não só para fazer uma "distinção", diacrisis,  como diziam os platonistas gregos, para distinguir um do outro - o precioso do não precioso, o bom do mau, o casual do fatal, mas para algo muito maior e mais significativo...
Vivemos num mundo danificado, distorcido, numa civilização quebrada, cuja espinha dorsal está partida, assim como a sua percepção da superioridade vertical e hierárquica. Um esforço inteligente é necessário para restaurar as proporções deste mundo hierárquico inteligente, 
o modelo do qual foi criado [ou intuído...] por Platão, e isso é o Platonismo.

Muita luz e amor para Daria Dugina Platonov, uma mulher extraordinária, barbaramente assassinada à bomba por uma agente dos serviços secretos  ucranianos... 
  

 Daria Dugina escolheu o pseudónimo Platonov e dedicou-se ao estudo do platonismo e dos filósofos platónicos. O americano A. Whitehead disse uma vez que toda a filosofia do mundo não passa de anotações nas  margens de Platão. Ao envolver-nos com o Platonismo - chegamos ao centro do tufão, ao coração do problema da geração do significado, da criação de estruturas de pensamento, da mente, da história, das culturas, das civilizações...
Dasha [Daria]
sabia disso e escolheu deliberadamente esse caminho. O caminho da mente é perigoso. As pessoas temem a mente como o fogo.  Em tempos antigos, as autoridades da cidade de Atenas mandaram executar o pensador mais sábio da Grécia e de toda a humanidade, Sócrates. O povo [cristão fanatizado] de Alexandria assassinou a filósofa neo-platónica Hipatia [qual Daria...] Actualmente, as elites do mundo ocidental odeiam o livre pensamento de uma forma cruel e totalitária. Matam e tencionam matar pensadores, filósofos, sábios, profetas, génios - todos aqueles que não pensam no destino da humanidade em uníssono com o grupo de vilões que se apoderaram do discurso global moderno, que estão prestes a encerrar completamente o Projecto Humano, transformando-o num clone, num computador, numa informação na nuvem. Daria Dugina sabia que este obscurantismo racional tinha de ser combatido, antes de mais, pela Mente: pensamento, ideia, conceito, projecto. Ela escolheu o platonismo como foco desta luta.
                                       
Platão criou um mundo inteligente e coerente de dois andares, no qual as ideias, os modelos, as formas d
as coisas e os acontecimentos do mundo flutuavam no andar de cima, enquanto no andar de baixo habitavam a matéria e as próprias coisas, as quais existiam contemplando as ideias-Logos e imitando-as como seus modelos celestiais. Assim se construiu a hierarquia do Céu e da Terra, uma hierarquia de ideias à cabeça da qual brilhava a ideia do Bem, ou do Um: o inexprimível,  para além de tudo o que podia ou não podia ser pensado. O Platonismo descrevia uma estrutura intelectual e inteligente do mundo, aberta a partir de cima. Colocava o ser humano no centro de uma hierarquia vertical, como uma espécie de mediador entre os mundos. Ao contemplar as ideias, o ser humano assegurava a construção do mundo e que as coisas eram produzidas, ecoando os arquétipos celestes. Este modelo de mundo existe há milénios. As suas estruturas, hierarquias, escalas de ascensão e de descida reflectem-se em todas as religiões do mundo. Nele, o ser humano é um "ser que ascende" (em direcção ao Espírito, ao Bem, à Verdade, à Beleza, à Justiça, ao Um) e, por vezes, retorna (o Mito da Caverna de Platão) e volta a subir a escada de Jacob, a escada da perfeição espiritual. Esta ascensão do homem, a sua perfeição, a sua transubstanciação, é o objectivo da vida.
No entanto, o mundo deteriora-se co
m o tempo, o ser humano torna-se insensato. De uma forma ou de outra, veio a Modernidade e depois a Pós-Modernidade, que é em parte aquilo em que nos encontramos hoje. O pós-modernista francês do século XX Gilles Deleuze falsifica Platão - apenas nas margens dos seus escritos - distorcendo fundamentalmente a imagem platónica do mundo. Deleuze argumenta que o platonismo não falava do dualismo entre ideias e matéria, mas da dualidade da própria matéria: a que acolhe as ideias, isto é, copia, e a que evita completamente a influência das ideias, esconde-se delas, escapa à influência do modelo inteligente, o Logos. No mundo, diz-nos o nosso mais popular filósofo ocidental [Deleuze], há coisas que se escapam, evitando qualquer forma, qualquer definição. E chama a isso "puro devir", "infinito", "sombra da cópia", "cópia sem original" ou "simulacro". Segundo Deleuze, essas coisas e pessoas indefiníveis, que escapam à ideia, ao Logos, não são completamente sem medida, mas essa medida não está acima delas, mas abaixo delas, no subsolo da sua existência. Não permanecem à sombra do Criador Único, dos mais altos significados celestiais, mas sob o feitiço, a hipnose de um elemento louco que vive abaixo daquela ordem que no Universo platónico as coisas recebem do Logos, do mundo da Mente e das ideias.
                                          
           Os dois mundos de Del
euze: cópias e simulacros.
Deleuze estabelece assim dois mundos: um re
gido pela Mente mundana, que recebe modelos e formas das esferas celestes, e este mundo aparece a Deleuze como decrépito, não livre, não dinâmico, totalitário. É o mundo de uma realidade fixa, de uma certeza fixa, e por isso o mundo das "pausas" e das "paragens", com uma linguagem desajeitada para o descrever, para falar dele.
O segundo mundo, novo e belo, vem em auxílio do antigo, trazendo consigo significados fluidos, um elemento de fluxo, leve, e um "devir rebelde" sem pausas e paragens.
Através da imobilidade e da rigidez do velho mundo hierárquico das ideias e das coisas (não é difícil adivinhar que se trata do mundo platónico dos duplos argumentos), o segundo mundo de Deleuze, o mundo do devir paradoxal, surge como um fantasma, onde tudo é fluido ao ponto de os significados de passado e futuro serem idênticos, onde o antes e o depois, o mais e o menos, a causa e o efeito, o excesso e a deficiência, o crime e o castigo se fundem numa inexplicável concórdia e inter-transformação. Entramos num mundo sem limites que são transgredidos - daí o mundo do crime, da ilegalidade. É um mundo de reversibilidade mútua dos acontecimentos, ou seja, um lugar onde a razão é problematizada. Deleuze gosta da ideia de que, a par das coisas e dos seres formalizados, existem acontecimentos indeterminados e que, à sua superfície, se agitam acontecimentos ainda mais pequenos, a que chama "efeitos". Os efeitos são fluidos, leves, não fundamentados, arbitrários, espontâneos.

                        O ser humano como acontecimento
"O que é uma ferida na superfície do corpo?", interroga-se Deleuze. É uma coisa densa com o seu próprio estatuto? Será um efeito, um pequeno acontecimento que "nem sequer existe, mas apenas torna-se, persiste durante algum tempo na sua manifestação", e possui um mínimo de ser.
O que é que nós próprios somos? Não será a vida humana, incluindo o nosso eu, o nosso cume interior, que veneramos como sujeito, o nosso mundo, o nosso sonho, sugere Deleuze, apenas uma agitação cega à superfície de um acontecimento qualquer? Somos apenas um ligeiro ranger na superfície do ser. Um som de papel, uma espécie de névoa que se move nos limites das coisas.
O que é o vermelho do ferro, o vermelho do rosto?, pergunta Deleuze. É uma mistura de vermelhos e verdes. Também nós somos misturas, misturando-nos, para o bem e para o mal, com as coisas.
O "mundo dos efeitos" de Deleuze mistura-se e espalha-se. Nele nos movemos num infinito Aeon de devir.
"Não há nenhum Todo no mundo", argumenta o mestre da retórica francesa, "que ordene e seja responsável pela metamorfose das coisas e de nós próprios.  Não há razão no mundo". O que nos é pedido não é que sejamos, mas que deslizemos [E para isso os meios de informação, alinhados e vendidos, tanto manipulam...]

                                              Caosmos
O mundo de Deleuze é uma viagem em direcção ao "Caosmos", com a perda de nomes e a negação de toda a permanência, incluindo o conhecimento (porque "a permanência precisa de paz e de Deus", como Deleuze observa, "e nós não podemos dar-vos isso"). É um universo sem verticalidade, onde o símbolo da árvore como eixo vertical e hierarquia é substituído pela imagem de um rizoma, um tubérculo como uma batata, que brota acidental e inconscientemente para o lado, para o lado, para baixo, por vezes até para cima. É o mundo do infinito, do apeiron (ἄπειρον) - o que os gregos antigos detestavam particularmente, por oposição ao limite, o peras (πέρας), que completava, fixava a coisa.
O devir deleuziano implica uma fusão da linguagem, onde os substantivos são varridos pelos verbos como entidades mais fluidas, e onde no devir tudo se dissolve e desaparece. O mundo real do devir de Deleuze é o mundo da linguagem que se desintegra e sofre mutações no processo dessa desintegração. Uma vez que o denotativo é abolido ainda antes da filosofia de Deleuze, no estruturalismo de F. de Saussure, do qual Deleuze se distancia, a realidade transforma-se nele numa residualidade puramente linguística, em que o tecido semântico, o campo de significação do ser, se dissolve e desaparece, envolvendo nessa extinção o Homem como proprietário e gestor da linguagem. Adquirida em puro devir, a pós-linguagem transforma-se num urro inexplicável - num clarão de "efeito" à superfície da suavidade fundida da matéria que desaba em profundezas infernais. Daria Dugina dedicou o seu ensaio Black Deleuze a Deleuze e tem-se referido frequentemente a ele e à sua filosofia nos seus discursos, intervenções e conferências.

                      Coisas Predatórias e o Sujeito Vazio Lda
O programa de dissolução do homem, de desestabilização e de dissolução do próprio mundo é hoje elaborado não só nos programas extravagantes e perversos da escola de Deleuze, mas também nos grupos filosóficos pós-deleuzianos de "realistas hiper-materialistas" ou "ontólogos orientados para o objecto" (OOO) ocidentais contemporâneos, como R. Negarestani, N. Land, G. Harman, R. Brassier, C. Meyasu e outros. Estes filósofos explicam que o ser humano, na filosofia ocidental clássica, aparece-nos injustificadamente como demasiado íntegro, autoritário, arrogante e presunçoso. No entanto, comparado com a inteligência artificial, por exemplo, é absolutamente imperfeito e intratável. Por conseguinte, é inútil e perigoso continuar a alimentar no homem a ilusão de ser o administrador do universo e o arquitecto do progresso social. O ser humano está demasiado sobrecarregado pelo Logos. Porque é que estamos tão seguros, perguntam os representantes da OOO, de que o homem é a medida das coisas, o polo principal da correlação? Há o Nada e a sua circularidade, que se chama "devir". A partir de agora, o mundo do ser anteriormente chamado "homem" caracteriza-se pela indeterminação, indefinição, fluidez, "permeabilidade", caoticidade, e isto diz respeito não só aos acontecimentos da sua vida, mas também ao estado do seu  frágil e instável  eu [cuja identidade e género é cada vez mais manipulada, e a origem espiritual e divina é escamoteada.]
Mas o que é verdadeiramente sólido e fiável no mundo são os objectos cósmicos, as coisas simples, a Terra, o seu núcleo, comprimido na prisão de uma crosta gelada. Os objectos, embora fenomenologicamente indemonstráveis, são também praticamente alcançáveis: se apenas extinguirmos o nosso Dasein [vir a ser] humano, revelar-se-ão a nós de uma forma completamente inesperada, muito provavelmente como monstros, de acordo com Graham Harman, do Realismo Estranho (Weird Realism). Enquanto a nossa presença humana ainda persiste, os númenos são inalcançáveis. Eles (os númenos, as coisas em si) vivem de uma forma radicalmente externa (infernal), inacessível para nós, e muito possivelmente bastante predatória, e nós tiramos partido disso, considerando-nos ingenuamente seus senhores e amantes, mas há uma grande rebelião das coisas que está para vir, como disse Bruno Latour. O homem não é nada, com todas as suas reivindicações, capacidades, projectos e ilusões efémeras; os objectos têm de ser libertados do homem, deixados livres para criar, para seguir os seus próprios caminhos e trajectórias cósmicas; o homem tem de ser retirado do caminho do núcleo da Terra, por exemplo, para libertar o demónio nuclear dentro da Terra, para que esta essência solar quente e brilhante se possa unir numa dança cósmica com o Sol - é isto que nos diz o filósofo americano nascido no Irão, Reza Negarestani, fazendo eco do filósofo britânico Nick Land.
Daria Dugina estudou muito cuidadosamente os textos dos ontologistas contemporâneos orientados para os objectos, polemizando com eles em artigos e discursos. Houve também um incidente curioso. Daria participou uma vez numa apresentação on-line do livro de Negarestani em Moscovo. Este incidente tornou-se conhecido porque, durante uma discussão intelectual, um dos admiradores de Dasha pediu-lhe a mão e o coração. Daria prometeu gentilmente considerar essa proposta, mas só depois de o pretendente de ideias conservadoras-tradicionalistas conseguir dominar a filosofia oposta à sua e aprender de cor a Ciclonopédia de R. Negarest
ani.
                                           
                                 Ataque às superfícies.
O tema da insolvê
ncia e da vaidade do homem nos representantes, como mostrámos, está sincronizado com o da dissolução do ser humano em Deleuze, o filósofo subtil, no qual a verdadeira vontade é proclamada não para as coisas e os enormes corpos e objectos cósmicos, mas para os fracos efeitos de superfície de todas estas propriedades. Ao olharmos para o panorama da filosofia Ocidental moderna vemos diante de nós os diferentes flancos de uma frente única que ataca a nossa tradição espiritual - platónica, cristã, tradicional. Nesta invasão da filosofia Ocidental moderna sobre nós, não há verticais, não há hierarquias, nem formas, nem ideias, nem valores, nem objectos, nem essências, não há causas, não há qualidades, não há esquemas, não há objectivos, não há linguagem, não há profundidade, nem altura, nem liberdade, nem espírito, nem Deus [Yuval Hariri, do Fórum Económico Mundial, é outro destes propugnadores da Sombra]. Também não há lugar para o ser humano. É-lhe ordenado que não se aprofunde, que não olhe para o alto e para longe, que não sonhe, que não projecte, que não pense, mas que escorregue e se dissolva, que se agite e que não pense demasiado em si próprio. É-nos ordenado, até mesmo ordenado, que fiquemos à superfície das coisas, que deslizemos ao longo da superfície dos acontecimentos, que sigamos as tendências, que sigamos as agendas. [Tais as da Nova ordem do Fórum Económico Mundial,  as das Cidades de 15 minutos, ou os desequilíbrios de género e identidade].
                                     
                                   Guerra de Inteligências.
Eu disse "somos co
mandados"! Sim, é isso mesmo! Por detrás do suave sussurro do discurso selvagem de Deleuze, nós, tradicionalistas, sentimos o passo pesado do imperativo totalitário. Não significa isto que há alguém no mundo que compreende as regras que nos são oferecidas, e que no mundo não há ordens de coisas em si, mas ordens de interpretações? Sob a capa de um jogo filosófico aparentemente aleatório, são impostas exigências às coisas e a nós próprios, portanto princípios e regras pelos quais alguém nos cola a certos padrões de percepção e de comportamento?  Sim, de facto, este é o caso, e os nossos adversários intelectuais do Ocidente compreendem-no. Tal como a lei cardinal da geopolítica afirma que "quem controla o Heartland (Eurásia) possui o mundo", também aqui a fórmula funciona: "quem controla o discurso, estabelece a meta-linguagem, controla tudo".
Serão os paradigmas - as chaves das visões do mundo, das civilizações e das culturas - conhecidos no Ocidente? Os códigos da história e do futuro da humanidade?  Sim, sem dúvida. Mas eles não têm pressa em partilhar este conhecimento nem sequer com os "seus", quanto mais com aqueles que são obviamente classificados como estando no rebanho epistemológico.
Na Rússia, a resposta a esta questão é dada pelo tradicionalismo Russo. O pai de Daria Dugina dedicou a sua série de vinte e quatro volumes de obras, Noomachia, ao estudo do Logos das civilizações, aos paradigmas da história humana. E Daria cresceu com isso, assimilando desde muito cedo o gosto pela Tradição e pelas ontologias verticais. Daria nasceu e cresceu numa família de filósofos da qual foi e continua a ser uma parte orgânica e integral. É uma eterna estrela em ascensão do pensamento russo. Todas as questões mais agudas levantadas pela modernidade tóxica e pela pós-modernidade do crepúsculo ocidental são respondidas pelos grandes tradicionalistas do século XX: René Guénon, Julius Evola, Mircea Eliade, Ernst Jünger, Lucian Blaga [romeno, 1895-1961], Emile Cioran, Louis Dumont [1911-198], Georges Dumezil, Alain de Benoist [n.1943, na fotografia com Daria] e dezenas de outros pensa
dores refinados.
                                          
Ele [Alexander Dugin] via os tradicionalistas como os pioneiros da Mente na história do século XX
, que tentaram compreender o afundamento do navio da humanidade como uma transição do paradigma espiritual da Tradição (Antiguidade, Idade Média e Renascimento) para o paradigma materialista, individualista e anti-hierárquico da Idade Moderna, e depois para o paradigma em erosão da Idade Moderna que é a Idade Pós-Moderna.
                               
               Natalia Melentyeva (n. 22.IX.1957), com Alexander Dugin, a mãe de Daria.
A minha filha, Daria Platonova Dugina, interessou-se profundamente por todos estes temas. Dedicou-lhes artigos, relatórios, textos, fragmentos da sua dissertação inacabada. Num futuro próximo, espero publicar um livro com os seus textos filosóficos e histórico-filosóficos (relatórios, artigos, excertos).
                                       
Daria seguiu os seus pais tradicionalistas que, por sua vez, dedicaram toda a sua vida a analisar, tradu
zir, expor e ensinar as doutrinas tradicionalistas e a sua interpolação em vários domínios das ciências humanas - filosofia, sociologia, ciência política, história da filosofia, ciência, arte, teoria das relações internacionais, etc. - e ao estudo da história da filosofia. - e ao estudo da história da filosofia.
A minha referência às duas tendências intelectuais da modernidade - o deleuzianismo e as ontologias orientadas para o objecto - não é acidental. Como referi, a nossa condição actual exige um esforço mental sólido: não apenas um acto mental isolado de decifração e actualização da paisagem intelectual da modernidade, mas uma penetração determinada, profunda, diria mesmo iniciática, na essência da luta intelectual contemporânea. É uma luta, um confronto de mentes no mundo contemporâneo, uma verdadeira batalha ou Guerra das Mentes, Noomachia, como lhe chamou Alexander Dugin. O que é mais surpreendente e inesperado para o observador superficial é que esta guerra está cheia de batalhas, confrontos, lutas perdidas e ganhas, travadas com inteligência intelectual, manobras enganadoras, lavagem cerebral e desinformação intelectual. Actualmente, na retórica oficial da ciência política, fala-se de guerras mentais, ou seja, a mesma guerra da mente, a guerra do espírito [ou das mentes de almas-espíritos em confronto].                                

                                              
Assim, os nossos ini
migos nesta guerra mental sabem muito bem o preço de um pensamento, o preço de uma ideia, o preço de um projecto. Mesmo Arthur Rimbaud, que dizia que "a batalha espiritual é tão feroz como as batalhas de um exército", sabia-o bem.
Nós, os filósofos da Tradição, os filósofos tradicionalistas, que soubemos discernir a estratégia do mundo moderno e reconhecer os paradigmas do Moderno e do Pós-Moderno que nos são estranhos, participamos nesta batalha feroz. Eles são-nos impostos pela civilização Ocidental moderna, com os seus percursos históricos particulares, os seus princípios e valores: liberalismo, individualismo, anti-hierarquia, materialismo. Estes princípios não são inofensivos. Em última análise, são desumanos e, de uma forma ou de outra, conduzem à destruição do homem e ao apagamento da humanidade do Livro da Vida.
Daria Dugina estava na vanguarda da guerra das inteligências, na "fronteira" intelectual, como gostava de dizer, no espaço das batalhas dos paradigmas, das ideias, das civilizações; era um verdadeiro cavaleiro da frente intelectual, um verdadeiro "filósofo-guardião", como Platão chamava aos filósofos, porque guardavam o que o ser humano tem de mais elevado: a sua dignidade intelectual, o seu direito à liberdade, ao pensamento, à protecção dos mais altos valores humanos, ao acesso, subindo a escada da contemplação dos mais altos princípios,
 e que no seu todo no Platonismo se chama Verdade, Bem, Justiça, Beleza, Bondade.» Que brilhem mais em nós!
                                         
                                              LUX-AMOR!
                                               ********
Philosophy as Destiny, by the mother of Daria, Natalia Melentyeva. Translation from russian by Lorenzo Maria Pacini.
«Life in today's world presupposes and even requires an enormous effort on our part, not on
ly in worldly matters and outward movements. Above all, it requires an effort of the mind, of thought - a mental effort, a "mental doing" as it was called in the monastic tradition of the "holy fathers", with this praxis of the Mind is necessary not only to make a "distinction", diacrisis, as the Greek Platonists used to say, to distinguish one from the other - the precious from the non-precious, the good from the bad, the casual from the fatal, but for something much greater and more significant... We live in a damaged, twisted world, in a broken civilisation whose backbone is broken, as is its perception of vertical and hierarchical superiority. An intelligent effort is needed to restore the proportions of this intelligent hierarchical world, the model for which was created by Plato, and that is Platonism.
Daria D
ugina chose the pseudonym Platonov and devoted herself to the study of Platonism and Platonic philosophers. The american A. Whitehead once said that the entire world's philosophy is nothing but Plato's margin notes. By engaging with Platonism - we get to the centre of the typhoon, to the heart of the problem of meaning generation, of the creation of thought structures, of the mind, of history, of cultures, of civilisations... Dasha knew this and deliberately chose this path. The way of the mind is dangerous. People fear the mind like fire.  Once, the city authorities of Athens had the wisest thinker of Greece and of all humanity, Socrates, executed; the people of Alexandria murdered the Neo-Platonic philosopher Hypatia. Today, the elites of the Western world hate free thinking in a vicious and totalitarian manner. They kill and intend to kill thinkers, philosophers, sages, prophets, geniuses - all those who do not think about the fate of mankind in unison with the group of villains who have taken over the modern global discourse, who are about to shut down the Human Project altogether, turning it into a clone, a computer, information in the cloud. Daria Dugina knew that this reasoned obscurantism had to be countered first and foremost by Mind: thought, idea, concept, design. She chose Platonism as the focus of this struggle.
Plato create
d an intelligent and coherent two-storey world, in which the ideas, models, forms of things and events of the world floated in the upper storey, while in the lower storey dwelt matter and things themselves, which existed by contemplating the ideas-Logos and imitating them as their celestial models. Thus was constructed the hierarchy of Heaven and Earth, a hierarchy of ideas at the head of which shone the idea of the Good, or the One: the inexpressible, the inexpressible, beyond all that could or could not be thought. Platonism described an intellectual and intelligent structure of the world, open from above. It placed man at the centre of a vertical hierarchy as a kind of mediator between worlds. By contemplating ideas, man ensured that the world was constructed and things were produced, echoing the celestial archetypes. This model of the world has existed for millennia. Its structures, hierarchies, scales of ascent and descent are reflected in all the world's religions. Man in it is a 'being who ascends' (towards Spirit, Goodness, Truth, Beauty, Justice, the One), and sometimes returns (Plato's Myth of the Cave) and climbs back up Jacob's ladder, the ladder of spiritual perfection. This ascent of man, his perfection, his transubstantiation, is the goal of life.

 Becoming and the dark side of freedom

However, the world deteriorates over time, man becomes foolish. In one way or another came the Modern and then the Postmodern, which is partly what we find ourselves in today. The 20th century French postmodernist Gilles Deleuze falsifies Plato - only in the margins of his writings - fundamentally distorting the Platonic image of the world. Deleuze argues that Platonism was not talking about the dualism between ideas and matter, but about the duality of matter itself: that which welcomes ideas, that is, copies, and that which avoids the influence of ideas altogether, hides from them, escapes the influence of the intelligent model, the Logos. In the world, our most popular Western philosopher tells us, there are things that slip away, avoiding any form, any definition. He calls this 'pure becoming', 'infinite', 'shadow of the copy', 'copy without the original' or 'simulacrum'. According to Deleuze, such indefinable things and persons, who elude the idea, the Logos, are not completely without measure, but this measure is not above them, but below them, in the subsoil of their existence. They do not remain in the shadow of the One Creator, of the highest heavenly meanings, but under the spell, the hypnosis of a mad element that lives below that order which in the Platonic universe things receive from the Logos, the world of Mind and ideas.
                                              
                  D
eleuze's two worlds: copies and simulacra.

Thus Deleuze establishes two worlds: one governed by the mundane Mind, which receives models and forms from the celestial spheres, and this world appears to Deleuze as decrepit, not free, not dynamic, totalitarian. It is the world of a fixed reality, of a fixed certainty, and therefore the world of 'pauses' and 'stops', with a clumsy language to describe it, to speak of it.
The second world, new and beautiful, comes to the aid of the old, bringing with it flowing meanings, a flowing, light element of flux, and a 'rebellious becoming' without pauses and stops.
Through th
e immobility and rigidity of the old hierarchical world of ideas and things (it is not difficult to guess that this is the Platonic world of double arguments), Deleuze's second world, the world of paradoxical becoming, appears like a ghost, where everything is fluid to the point that the meanings of past and future are identical, where before and after, plus and minus, cause and effect, excess and deficiency, crime and punishment merge in an inexplicable concord and inter-transformation. We enter a world without limits that are transgressed - hence the world of crime, of lawlessness. It is a world of mutual reversibility of events, i.e. a place where reason is problematised. Deleuze likes the idea that alongside formalised things and beings there are indeterminate events and that on their surface even smaller events, which he calls 'effects', are stirring. Effects are fluid, light, ungrounded, arbitrary, spontaneous.

 Man as event

"What is a wound on the surface of the body?", Deleuze asks himself. Is it a dense thing with its own status? Is it an effect, a small event that 'does not even exist, but only persists for a while in its manifestation', becomes, possesses a minimum of being.
What are we ourselves? Isn't human life, including our self, our inner summit, which we revere as subject, our world, our dream, Deleuze suggests, just a blind churning on the surface of some event? We are only a slight creaking on the surface of being. A rustling of paper, a kind of mist that moves at the edges of things.
What is the redness of iron, the redness of the face?, asks Deleuze. It is a mixture of reds and greens. We too are mixtures, mingling, for better or worse, with things.
Deleuze's 'world of effects' mixes and spreads. In it we move in an
infinite Aeon of becoming.
There is
no All in the world,' argues the master of French rhetoric, 'that orders and is responsible for the metamorphosis of things and ourselves.  There is no reason in the world. What is required of us is not to be, but to slip.
                                          
                                          Chaosmos.
Deleuze's world is a journey towards Chaosmos, with the loss of names and the negatio
n of all permanence, including knowledge (because 'permanence needs peace and God', as Deleuze notes, 'and we cannot give you that'). It is a universe without verticality, where the symbol of the tree as a vertical axis and hierarchy is replaced by the image of a rhizome, a tuber like a potato, which sprouts casually and unconsciously to the side, to the side, down, sometimes even up. This is the world of the infinite, the apeiron (ἄπειρον) - what the ancient Greeks particularly hated, as opposed to the limit, the peras (πέρας), which completed, fixed the thing.
Deleuzian becoming impli
es a fusion of language, where nouns are swept away by verbs as more fluid entities, and where in becoming everything dissolves and disappears. Deleuze's actual world of becoming is the world of language that disintegrates and mutates in the process of this disintegration. Since the denotative is abolished even before Deleuze's philosophy, in the structuralism of F. de Saussure, from which Deleuze distances himself, reality is transformed in him into a purely linguistic residuality, in which the semantic fabric, the field of meaning of being, dissolves and disappears, involving Man as the owner and manager of language in this extinction. Acquired in pure becoming, post-language is transformed into an inexplicable bellow - into a flash of 'effect' on the surface of the molten smoothness of matter that collapses into infernal depths. Daria Dugina dedicated her essay Black Deleuze to Deleuze and has often referred to him and his philosophy in her speeches, interventions and lectures.
                                                        

             Predatory Things and the Empty Subject Ltd.
The programm
e of man's dissolution, destabilisation and dissolution of the world itself is today being elaborated not only in the extravagant and perverse programmes of the Deleuze school, but also in the post-Deleuzian philosophical groups of contemporary Western 'hyper-materialist realists' or 'object-oriented ontologists' (OOO), such as R. Negarestani, N. Land, G. Harman, R. Brassier, C. Meyasu and others. These philosophers explain that man, in classical Western philosophy, unjustifiably appears to us as too upright, authoritarian, arrogant and self-righteous. However, compared to artificial intelligence, for example, it is absolutely imperfect and unmanageable. It is therefore pointless and dangerous to continue to indulge man in his illusion of being the administrator of the universe and the architect of social progress. Man is too burdened by the Logos. Why are we so sure, ask the OOO representatives, that man is the measure of things, the main pole of correlation? There is Nothingness and its circularity, which is called 'becoming'. Henceforth, the world of the being formerly called 'man' is characterised by indeterminacy, blurriness, fluidity, 'permeability', chaoticity, and this concerns not only the events of his life, but also 
the state of his fragile and unstable self.
But wha
t is truly solid and reliable in the world are cosmic objects, simple things, the Earth, its core, compressed in the prison of an icy crust. Objects, though phenomenologically indemonstrable, are also practically attainable: if only we extinguish our human Dasein, they will reveal themselves to us in a completely unexpected way, most likely as monsters, according to Graham Harman, of Weird Realism. While our human presence is still persistent, the noomen are unreachable. They (the noomen, the things) live in a radically external (hellish) way, inaccessible to us, and quite possibly quite predatory, and we take advantage of this, naively considering ourselves their masters and mistresses, but there is a great rebellion of things to come, as Bruno Latour said. Man is nothing, with all his ephemeral claims, capacities, projects and illusions; objects must be freed from man, left free to create, to follow their own cosmic paths and trajectories; man must be removed from the path of the Earth's core, for example, to free the nuclear demon within the Earth, so that this hot, glowing solar essence can unite in a cosmic dance with the Sun - this is what the Iranian-born American philosopher Reza Negarestani tells us, echoing the British philosopher Nick Land.
Daria D
ugina has studied the texts of contemporary object-oriented ontologists very carefully, polemising with them in articles and speeches. There was also a curious incident. Daria once participated in an on-line presentation of Negarestani's book in Moscow. This incident became well known because in the middle of an intellectual discussion, one of Dasha's admirers asked for her hand and heart. Daria kindly promises to consider this proposal, but only after the suitor of conservative-traditionalist ideas manages to master the philosophy opposite hers and learns R. Negarestani's Cyclonopedia by heart.

                              

                                        Attack on surfaces.
The theme of the insolv
ency and vanity of man in the representatives, as we have shown, is synchronised with that of the dissolution of man in Deleuze, the subtle philosopher, in which the true will is proclaimed not for things and huge cosmic bodies and objects, but for the weak surface effects of all these properties. Taking in the panorama of modern Western philosophy, we see before us the different flanks of a single front attacking our spiritual tradition - Platonic, Christian, traditional. In this invasion of modern Western philosophy upon us, there are no verticals, no hierarchies, no forms, no ideas, no values, no objects, no essences, no causes, no qualities, no schemes, no goals, no language, no depth, no height, no freedom, no spirit, no God. There is no place for man either. He is commanded not to go deep, not to look high and far, not to dream, not to project, not to think, but to slip and dissolve, to rustle and not to think too much of himself. We are commanded, even ordered, to stay on the surface of things, to glide along the surface of events, to follow trends, to follow agendas.
                                                             
                                              War of wits.
I said "we are commanded"! Yes, th
at's right! Behind the soft rustle of Deleuze's wild speech, we traditionalists feel the heavy tread of the totalitarian imperative. Does this not mean that there is someone in the world who understands what rules are offered to us, and that in the world there are not orders of things per se, but orders of interpretations? Under the guise of a seemingly random philosophical game, are requirements imposed on things and ourselves, hence principles and rules by which someone glues us to certain standards of perception and behaviour?  Yes, this is indeed the case, and our intellectual adversaries in the West understand this. Just as the cardinal law of geopolitics states that 'He who controls the Heartland (Eurasia) owns the world', so here the formula works: 'He who controls the discourse, establishes the meta-language, rules over everything'.
Are the paradigms - the keys to worldviews, civilisations and cultures - known in the West? The codes of humanity's history and future? Yes, without a doubt. But they are in no hurry to share this knowledge even with 'their own', let alone those who are obviously classified among the epistemological herd.
In Russia, the answer to this question is offered by Russian traditionalism. Daria Dugina's father dedicated his 24-volume series of works, Noomachia, to the study of the Logos of civilisations, the paradigms of human history. And Daria grew up with it, assimilating from an early age a taste for Tradition and vertical ontologies. Daria was born and raised in a family of philosophers of which she was and still is an organic and integral part. She is an eternal rising star of Russian thought. All the sharpest questions thrown up by toxic modernity and the post-modernity of the western twilight are answered by the great traditionalists of the 20th century: René Guénon, Julius Evola, Mircea Eliade, Ernst Jünger, Lucian Blaga, Emile Cioran, Louis Dumont, Georges Dumezil, Alain de Benoit and dozens of other refined thinkers.

                                            
He saw the traditionalists as those pioneers of Mind in 20th century history, who tried to understand the sinking of the ship of humanity as a transition from the spiritual paradigm of Tradition (Antiquity, the Middle Ages and the Renaissance) to the materialistic, individualistic and anti-hierarchical paradigm of the Modern Age, and then to the eroding paradigm of the Modern Age that is the Postmodern Age.
My daughter
, Daria Platonova Dugina, was deeply interested in all these topics.  She dedicated articles, reports, texts, fragments of her unfinished dissertation to them. In the near future, I hope to publish a book with her philosophical and historical-philosophical texts (reports, articles, excerpts).
                                    

Daria followed her traditionalist parents who, in turn, devoted their entire lives to analysing, translating, expounding, and teaching traditionalist doctrines and their interpolation into various fields of the human sciences - philosophy, sociology, political science, history of philosophy, science, art, theory of international relations, etc. - and to the study of the history of philosophy.
My reference to the two intellectu
al trends of modernity - Deleuzianism and object-oriented ontologies - is not accidental. As mentioned, our current condition requires a solid mental effort: not just a detached mental act of deciphering and actualising the intellectual landscape of modernity, but a determined, deep, I would say initiatory, penetration into the essence of the contemporary intellectual struggle. It is a struggle, a confrontation of minds in the contemporary world, a real battle or War of the Minds, Noomachia, as Alexander Dugin called it. What is most surprising and unexpected to the superficial observer is that this war is full of battles, clashes, battles lost and won, delivered with intellectual intelligence, deceptive manoeuvres, brainwashing and intellectual disinformation. Today, in the official rhetoric of political science, we speak of 'mental wars', i.e. the same 'war of the mind', the war of the spirit.
                                                                      
Thus, our enemies in this war of the mind know very well the price of a thought, the price of an idea, the price of a project. Even Arthur Rimbaud, who said that 'the spiritual battle is as fierce as the battles of an army', knows this well.
We, the
philosophers of tradition, traditionalist philosophers, who have been able to discern the strategy of the modern world and recognise the paradigms of the Modern and Postmodern that are alien to us, participate in this fierce battle. They are imposed on us by modern Western civilisation, with its particular historical paths, its principles and values: liberalism, individualism, anti-hierarchy, materialism. These principles are not harmless. Ultimately, they are inhuman and, in one way or another, lead to the destruction of man
and the erasure of humanity from the The Book of Life.
Daria
Dugina was in the vanguard of the war of wits, on the intellectual 'frontier', as she liked to say, in the space of the battles of paradigms, ideas, civilisations; she was a true knight of the intellectual front, a true philosopher-guardian, as Plato called philosophers, because they guarded the highest thing man has: his intellectual dignity, his right to freedom, to thought, to the protection of the highest human values, to access, by climbing the ladder of contemplation of the highest principles, the entire volume of what in Platonism is called Truth, Good, Justice, Beauty, Goodness.

                                                  

quinta-feira, 1 de junho de 2023

O soneto "Inconsciente", de Antero de Quental, as afinidades com von Hartmann, o pessimismo, o espiritismo e o panpsiquismo e unidade da Consciência.

                                                              
               Antero de Quental, sofrido mas destemido, e contemplando para além das aparências e à Verdade aspirando. Então, agora e sempre, na eternidade...

O soneto Inconsciente, de Antero de Quental, tal como outros, na sua linguagem simbólica e metafórica   e nas suas fontes e pluridimensionalidade  que, em certos níveis mais subtis e universais, podem mesmo ter escapado ao seu pensamento consciente, pois o poeta é movido pelo génio sempre maior do que ele tem consciencializado ou racionalizado, é bem desafiante. 
Talvez por isso mesmo, nas poucas menções que lhe faz, numa carta a um dos amigos chama-lhe "abstruso", e noutra deseja que o poema dispense comentários, no fundo que se deixe compreender por si mesmo no sortilégio das palavras, imagens e ritmos. Mas, como estudantes ou amigos da sabedoria e na demanda da verdade, ousemos uma hermenêutica de algumas das linhas de força e causalidade, ou energias psíquicas, ideias, filosofias e intuições que estarão subjacentes ou contidas em tal soneto.
Foi já aos 32 anos, algures entre os finais d
o ano de 1874 e o decorrer  de 1875, que o escreveu e enviou por carta para o amigo João Lobo de Moura, saindo à luz publicamente  só em 1876, no nº 6 da revista bracarense Harpa e em 1881, na edição da Renascença, por Joaquim de Araújo, dos vinte e um Sonetos e,  por fim, na edição definitiva dos Sonetos Completos, de 1886.

O INCONSCIENTE

 O espectro familiar que anda comigo,
Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,
Que umas vezes encaro com desgosto
E outras muitas ansioso espreito e sigo,

É um espectro mudo, grave, antigo,
Que parece a conversas mal disposto...
Ante esse vulto ascético e composto
Mil vezes abro a boca... e nada digo.

Só uma vez ousei interrogá-lo:
— «Quem és (lhe perguntei com grande abalo),
Fantasma a quem odeio e a quem amo?

— Teus irmãos (respondeu), os vãos humanos,
Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos...
Mas eu por mi
m não sei como me chamo!»

Constatamos Antero de Quental sentir ou idear Deus como um espectro, um fantasma, e quando usa o termo familiar sugere que lhe é tanto presença habitual como é de família, vindo-lhe assim de uma tradição familiar, genética, educativa e ambiental (visível e invisivelmente) católica. É uma figura ora atemorizadora ora aconselhadora, ora negativa ora positiva, ora que odeia (provavelmente por revolta contra aspectos seus históricos do Antigo Testamento ou por má consciência), ora que ama (ou está grato e adora pelo bem e amor que sinta). 

Poderíamos admitir nesta descrição duma imaginária visão ou do pressentimento de presença subtil ou espectral, espiritual ou divina uma certa relação com as ideias do Guardião do Umbral, do Anjo da Guarda ou mesmo do Deus pessoal e íntimo que alguns místicos alcançaram, em especial os indianos, nos quais o culto da ishta devata, a manifestação pessoal que a Divindade faz no interior das suas almas, está muito patente em práticas, poesias e doutrinas. Contudo, no poema, tal presença subtil é sobretudo uma espectrização do conceito de Deus judaico-cristão, um seu duplo, de voz quase muda, figura do Ser com a particularidade de ser Inconsciente.

 Diz-nos então que muitas vezes, emocionado, a tentou sondar e interrogar, mas só numa conseguiu pronunciar as palavras interrogantes que fariam a verdade aparecer, e pode haver aqui uma ressonância do que acontece em certos contos de encantar e nas versões da demanda do Graal: é preciso intuir bem como e quando se pode lançar a pergunta que gerará a resposta ou a visão iluminadora ou libertadora. E assim teria acontecido, quando o espectro finalmente deixa a mudez e lhe responde: os humanos chamam-lhe Deus mas ele próprio não sabe quem é.
Por detrás
deste desenlace, que até pode parecer uma brincadeira para quem crê na omnisciência divina, devemos observar  uma motivação crítica à fé e doutrina católica, pois nela haveria limitações, defeitos, e também a adopção da visão filosófica que vê o Absoluto ou Deus como Inconsciente,  algo que existia na Ideia de Hegel, na Vontade de Schopenhauer e no Divino inconsciente na matéria e consciente no espírito de Schelling, autores que Antero lera e conhecia. Mas a síntese influenciadora de que o Divino, o Todo-Uno ou o Absoluto não possui consciência em si mas só nos seres que estão nele, atingirá o seu zénite com  Eduard von Hartmann (23.2.1842 a 5.6.1906), nascido no mesmo ano que Antero de Quental mas que este na altura conhecia apenas indirectamente, já que um ano depois de escrito o poema confessa a um amigo que  começara a ler  e a entusiasmar-se com Hartmann.
A contextualização do soneto é a
judada pelo que o nosso querido Antero diz na carta de  Outubro de 1875  ao seu íntimo amigo António de Azevedo Castelo Branco, a anteceder o envio do soneto, e que seguiu na companhia de mais três, todos  ligados ao mistério da Divindade ou, como Antero  sentia e intuía nessa época, Deus, e que são expressões poético-ideológicas do choque que a sua educação familiar e cosmovisão católica recebera no impacto das ideias modernas e filosóficas hauridas na Coimbra estudantil (tal como ele descreverá anos depois, em 14 de Maio de 1887, na famosa carta autobiográfica a Wilhelm Stork), e eram eles: Logos, Quia Aeternus e Disputa em Falia.
                                               
Diz então na apresentação do
s quatro sonetos (e duma fotografia) enviados em 1875 a António de Azevedo Castelo Branco:«Envio-te a minha efígie, que me parece um pouco hirta e pasmada: mas o aspecto hirto e pasmado é próprio dos filósofos, gente que tempera com assombros o pão que come. Vão também os sonetos em que te falei. Sobre eles podia dizer muito mais: mas ai deles, se não podem ser lidos sem comentário! Deus, dizia-se há perto de 2.000 anos é o Alfa e o Ómega: depois de muitos trabalhos e meditações, durante esse longo curso de anos, somos levados hoje a dizer que Deus é o Ómega e o Alfa... Creio ser isto tudo quando adiantámos e tal é o pensamento ou sentimento que inspira estes versinhos. Ei-los aí vão.»

Observamos,  num registo algo divertido ou irónico, Antero expor  a motivação dos versinhos: pôr em causa o estado de conhecimento de Deus por parte da humanidade, e portanto da religião, pese o trabalho de séculos de pensadores, teólogos e padres: só se saberia que [Ele] é o princípio e o fim de tudo.
Os três outros sonetos envia
dos timbram  pela mesma nota vibratória, em especial o que intitulou Logos,  este demonstrando  como Antero estava longe ainda de conhecer e vivenciar, ou meramente admitir, o Logos Divino, Verbo, Palavra ou Buddhi, que é Amor Inteligência, conforme o apóstolo João proclamara no seu Evangelho, aquele que mais se alimentara  da sabedoria grega e neo-platónica nas quais o Logos, como Inteligência, Intelecto e Razão Divina, era primordial e fundamental, ainda que sem a dimensão humanizada que o Cristianismo lhe atribuiu ao considerar Jesus como um seu avatar, ou mais precisamente, dum modo mais exclusivista que o indiano, a sua incarnação única, o Filho único de Deus, exclusividade que parece por alguns passos do Evangelhos que Jesus nem sequer aceitava.
No soneto
 Quia eternus  o espectro faz uma nova aparição e ele é claramente uma ideia fantasmática e  atemorizadora de Deus, em grande parte vinda da Tora do Judaísmo, e da sua adopção no Cristianismo como Antigo Testamento, com a sua concepção de Deus exclusivista e vingativa, o Jeová. Mas, acrescenta Antero de Quental, ainda assim, mesmo os que agora pensam que a Razão é Deus, ou que não há Deus, tal é a força dessa egrégora ou forma de pensamento antiga que ainda o temem.
No último soneto,
Disputa em Família, mostra a humanidade avançando no conhecimento da verdade e querendo libertar-se desse Deus imaginado, criticando-o de um modo muito original, nomeadamente  a ideia comum de que Jesus fora enviado pelo Espectro para ser um redentor sacrificial, descrevendo «o velho tirano solitário, de coração austero e endurecido, que um dia, de enjoado ou distraído, deixou matar seu filho no Calvário». Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa serão outros dois poetas mais conhecidos que questionarão as ideias feitas sobre Deus, nomeadamente acerca do Pai de Jesus.
Mas, no verso fina
l da Disputa em Família, o Deus antigo, o Jehova, parece triunfar pois afirma saber desde o princípio do mundo que viria tal fase contestatária da humanidade, pois fora o criador dela do mero barro. Ressalve-se neste último soneto ser menor a inconsciência de Deus pois, ainda que podendo não estar consciente de quem é, como é imaginado no soneto Inconsciente, sabe que foi o criador do ser humano. Muito provavelmente Antero não teria uma teoria completa ou sem contradições quanto à hipotética Inconsciência divina.
Sabemos po
r carta de Antero a Oliveira Martins, em 13-V-1876 que  Antero só por essa altura acabara de ler pela pela 1ª vez um livro de Eduard von Hartmann (certamente L'Avenir de la Religion), sentindo fortes afinidades, embora discernindo-lhe limitações, e descrevendo-o  peculiarmente e entusiasticamente:«Li o livro do Hartmann, mas proponho relê-lo, porque é um bom tema para cogitações. Ainda que o ache conciso e deficiente em certos pontos, agradou-me todavia muito: de tudo quanto tenho lido sobre o assunto é o que entra mais no meu modo de ver. Vou percebendo que o pessimismo de Hartmann se parece singularmente com o meu optimismo e estou morto por ler alguma coisa mais extensa deste simpático filósofo. Talvez que eu tenha inventado a Filosofia do Inconsciente sem o saber!.»
E uns vinte dias depois, escrevendo d
a Ponta Delgada natal,   confirma que «abundo no modo de ver do Hartmann, enquanto ao futuro da religião», nomeadamente nas críticas ao "lado fraco do cristianismo" :  - a falta de conhecimento (científico) da Natureza -   mas aponta falhas por aceitar o aspecto maravilhoso ou imaginoso, e por preferir um monismo panteísta ao cristianismo,  afirmando por fim com grande discernimento e mestria clarividente ou profética: «Creio que a obra destes séculos mais próximos será, não destruir o Cristianismo  (quero dizer, o espírito cristão, o ponto de vista da transcendência metafísica moral) mas completá-lo com a ciência da realidade. A religião do futuro, de que nos fala Hartmann, não pode ser outra, e não julgo necessário ir procurar o Budismo, quando o que  nele de melhor se encontra no Cristianismo, e com uma forma sentimental mais pura, mais humana. Estabelecer em que termos normais se deve ser místico, dentro da realidade, de acordo com ela e considerando-a como um meio, um instrumento adequado para essa ascensão espiritual, tal é, meu querido amigo, a grande coisa, a obra da nova redenção. Fora disto só vejo um novo paganismo, uma nova e monstruosa superstição, culto do Grande Todo, culto da Humanidade, e outros cultos [tais modernamente os da Nova Ordem Mundial,  do transhumanismo e transgendrismo,  da ciência e  da inteligência artificial], que, sob  forma refinada, reflectida, civilizada, são uma volta à bestialidade primitiva donde partiu a nossa espécie.»
                                             
O livro base da doutrinação de Eduard von Hartmann, a Filosofia do Inconsciente, saír
a à luz em alemão em 1869, seguindo-se várias edições, com grande sucesso,  e em 1877 a primeira tradução francesa surgia (que Antero possuirá), embora desde 1876 já circulasse La Religion de l'Avenir, da qual tenho um exemplar anotado com o ex-libris do 2º Visconde de Pindela (1853-1922), licenciado em Direito por Coimbra e diplomata, num sinal da presença precoce de Hartmann entre nós.  Poderemos concluir desta correspondência que Antero de Quental quando escreveu os poemas, nomeadamente o Inconsciente, não conhecia directamente a obra de Eduard von Hartmann e daí que pudesse admitir, meio a brincar: «Talvez que eu tenha inventado a «Filosofia do Inconsciente» sem o saber».
Já com
 este artigo quase concluído demos conta que o professor Joaquim de Carvalho, na sua Antheriana (hoje em dia, online) tem dois valiosos textos sobre as relações de Antero e Hartmann e aponta no primeiro para ser já  de 1872 (mas é de 1873), o conhecimento das teorias de Hartmann através de dois bons artigos de  Léon Dumont, na Revue Scientifique de la France et de l'Étranger, no nº de Julho a Dezembro de 1872, e que foram as fontes iniciais do conhecimento do Inconsciente e do pessimismo de Hartmann e que Antero terá absorvido, quem sabe se algo fatalmente.
Joaquim de
 Carvalho nomeia os cinco livros de Hartmann lidos ou possuídos, embora só quatro estejam na sua biblioteca em Ponta Delgada e mostra que também tinha e lera  duas obras importantes sobre o pessimismo, de Taubert e de Moritz Venetianer, referidas no prefácio do tradutor francês Nolen à edição Philosophie de l'Inconscient, certamente compradas por causa disso. Mas analisando vários dos poemas pessimistas de Antero, tais o Elogio da Morte, Os Vencidos (do qual só se conhecem partes, pois foi destruído por ser demasiado pessimista), O Inconsciente, Homo, reconhece pelas suas datações que foram escritos antes de conhecer directamente Hartmann, em 1876, embora de facto já  estejam nesses sonetos sinais das teorias principais de Hartmann, recebidas ao ler e cogitar os artigos de Léon Dumont na Revue Scientifique, e a saber: a ausência de consciência em Deus (para não o culpabilizar de crueldade face ao mal e sofrimento da vida) e as três formas de ilusão de felicidade ou ventura, tal como o poema Os Vencidos  se poetiza: a do presente, a do além e a da Humanidade em si e na sua evolução.
Em cart
as de Junho de 1877 Antero defende o pessimismo Hartmann  enquanto  «protesto da razão e até do senso moral contra o optimismo naturalista do século XIX, mas que não o será, creio, do séc. XX», e na realidade os séculos XX e XXI tem-lhe dado razão premonitória. Anote-se que pessimismo ou a desvalorização da vida ou do significado dela em Edward von Hartmann, e noutros pessimistas que desse modo criticavam o catolicismo e o protestantismo, como anota o judicioso e provavelmente católico tradutor de La Religion de l' Avenir,  era  diferente do que Antero gerara em si, pese o culto da morte e do não-Ser que este assumiu, pois como  afirmou mais de uma vez era uma base de partida e transformação para um optimismo ético e dinâmico e onde uma certa mística de realização espiritual se encontra também.

                                       
           
A casa de Antero Quental em Vila de Conde. Que tempos fabulosos nela!
Já nos últimos anos de vida, em Setembro de 1886, Antero de Quental, com uma evolução interior grande, vai valorizar Hartmann sob outro ângulo, afirmando numa c
arta enviada da recatada Vila do Conde ao poeta e seu tradutor Tommaso Cannizaro, agradecendo o envio de dois livros sobre S. Francisco de Assis: «Considero-o como o primeiro dos precursores do espírito moderno como representado por [Giordano] Bruno, Schelling e Hartmann, do Panteísmo espiritualista», e destacando depois no santo de Assis «a sua concepção do mundo e da vida, toda ela dum optimismo poético e panteísta, e a trágica e sombria concepção pessimista da Igreja, de um mundo radicalmente mau e condenado por Deus...», no fundo criticando até o pessimismo e lugubridade que Schopenhauer, Hartmann e ele próprio tanto tinham desenvolvido.
Na sequência dos poemas
nos Sonetos Completos de 1886, o Inconsciente é o quarto dos vinte e um gerados entre 1874 e 1880, sendo com os dois primeiros, Homo e Disputa em Família, e o oitavo, Divina Comédia, intensamente questionadores da origem e identidade do ser humano e dos deuses ou Deus, nomeadamente  enquanto frágeis imaginações, ou então intuições e  visões mais ou menos acertadas, numa linha que vinha já desde 1865 com as Odes Modernas, poemas onde os ataques à Igreja, aos padres e às suas concepções e doutrinas foram bem fortes, mantendo-se na 2ª edição refundida de 1875, embora nesta tenham sido mitigados os entusiasmos revolucionários políticos, provavelmente por influência de Oliveira Martins, pois desaparece a dedicatória inicial a Germano Meireles, suplantado por assim dizer por Oliveira Martins, e a poderosa nota revolucionária final da 1ª edição e que já transcrevemos neste blogue.
Talvez por isso seja bem significativa outra menção a  Eduard von Hartmann conservada no epistolário das glórias e calvários de santo Antero, quando como "mestre" responde ao seu jovem amigo e dinâmico estudioso Carlos Cirilo Machado (também já dialogado neste blogue) que o interrogava por carta nesse mesmo ano de 1886, sobre o Magnetismo e as Ciências ocultas:

Carlos Cirilo Machado, Visconde de S. Tirso, já celebrado neste blogue
«O magnetismo parece estabelecer uma unidade de consciência entre várias pessoas, ainda que separadas por grandes distâncias, de sorte que o que uma sabe, sabem-no as outras logo. Pelo menos, em todos os casos de lucidez a que assisti nunca vi a sonâmbula adivinhar alguma coisa ignorada por todos os que se achavam em relação magnética com ela, mas só coisas que ela ignorava, mas que pelo menos um dos assistentes conhecia.
A tal
unidade de consciência é coisa que não repugna à razão filosófica. Se ler  [Eduard von] Hartmann, na Filosofia do Inconsciente  verá que essa é uma das pedras angulares do sistema daquele engenhoso e profundo alemão [E em 1887 escreverá dele, na Filosofia da Natureza dos Naturalistas: «O representante nosso contemporâneo da alta especulação»]. Segundo ele, essa unidade, expressão da unidade fundamental das coisas [donde o monismo panteísta], existe latente ordinariamente, e só se manifesta obscuramente nos factos do instinto. O magnetismo será, segundo esta ordem de ideias, o momento em que essa unidade de consciência de latente se torna patente».
Observamos assim Antero reconhecendo a unidade panpsíquica, que denomina também o espírito, o inconsciente imortal e universal, a unidade da consciência que permeia tudo e todos e que embora inconsciente ou latente se pode tornar pelos instintos e pelas inspirações e intuições patente, coalescida, presente, vivenciável, tal como ele viu e sentiu, discernindo e acrescentando mesmo uma nota individualizadora catalizadora do acesso num grupo a tal conhecimento, supra-consciente diremos nós até, em vez de usarmos o limitador termo "inconsciente", que teria depois uma outra avatarização mais pessoal e problemática com Freud, pois o que tal termo de inconsciente significa é que a nossa ego consciência limitada ou condicionada não capta ainda tal informação e nível do ser pluridimensional que somos num mundo de múltiplas dimensões.

Eduard von Hartman tentou especular até sobre o ocultismo e espiritismo, então em grande efervescência, escrevendo mesmo um livro sobre ele e com esse título, mas negou a existência de espíritos nos fenómenos (confessando contudo que nunca assistira a uma sessão) e considerando ser apenas magnetismo ou intuições no vasto campo do Inconsciente universal.
                                              
Já Antero de Quental, cremos que partiu da Terra crente na existência de uma vida post-mortem individualizada e mesmo em alguns sonetos (e como sabemos nos últimos cinco anos de vida terrena não os escreveu, mais dedicado à prosa filosófica) celebrara tal corpo místico ou dimensão subtil da humanidade, nomeadamente nos sonetos Com os Mortos e a Comunhão.
A sua demanda da verdade foi intensa e está bem comprovada na última menção a Hartmann, inserida na fa
mosa carta autobiográfica a Wilhelm Storck, de 14.V.1887, onde depois de referir a sua doença nervosa que lhe sobreveio em 1874, e as insuficiência do naturalismo (mesmo de Hegel e de Goethe) e da  teoria egoísta da strugle for life, afirma que lutara durante seis anos para vencer o arrastamento para "o pessimismo vácuo e para o desespero", e que «a reação das forças morais e um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciência moral não pode ser a única voz sem significação no meio das vozes inúmeras do Universo, refundindo a minha educação filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer na história, a confirmação deste ponto de vista. Voltei a ler muito os filósofos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo às origens do pensamento alemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais os moralistas e místicos antigos e modernos, entre todos a Teologia Germânicaos livros budistas.

Achei que o misticismo, sendo a última palavra do desenvolvimento psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana uma extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das coisas».
                                               
Pena foi que não tivesse consegu
ido ter mais unificação psico-somática, e vivências com os seus sentidos espirituais, nomeadamente possibilitando-lhe um alargamento da consciência psico-espiritual. Mas onde quer que estejam os dois, Eduard e Antero, muita luz e amor neles. E até sintonizando-os por versos dos já mencionados sonetos, primeiro do Comunhão, mais passivo, e o 2º Com os Mortos, mais meditativo e certeiro:

I
«(...)
Seguirei meu caminho confiado,

Entre esses vultos mudos, mas amigos,
Na humilde fé de obscuras gerações,
Na comunhão dos nossos pais antigos.»
 II
«(...) 
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.» 
 
 Aum, Amen... Lux, Amor para eles!