sexta-feira, 18 de novembro de 2022

O Atman, o espírito, o eu, em algumas das Upanishads.

                         Desenho da estrela do espírito pelo notável mestre alemão Bô Yin Râ.

     A palavra sânscrita Ātman,  da raiz, an-, respirar, sopro, recebeu ao longo dos séculos como significados o eu pessoal, o eu sou, o si próprio, o ser em si, a mente,  a alma, o Espírito, o Espírito Divino, e o conhecimento desta multidimensional realidade íntima e em certos níveis última foi e é um dos principais fins ou objectivos dos sábios e videntes da tradição indiana ou dos que a estimam e trabalham. 

Os filósofos, yogis e místicos não-dualistas considerma que há só um Espírito, Divino, chamado tanto Ātman como Paramātman,  Brahman, Purua, e os eus individualizados (jīvātman) não passam de identificações transitórias e logo mais ou menos ilusórias, sobretudo se não corporizando o espírito. As escolas ou visões tradicionais dwaitas aceita  a dualidade(com diferença, ou com e sem diferença) entre o Espírito absoluto e o Espírito individual pois há uma infinidade de Espíritos, atman, ou jivatman, centelhas imortais e eternas. 

A realização deste conhecimento libertador deste Ātman, seja transpessoal seja pessoal, é o sumum bonum, o sumo bem, dos darśanas, as escolas ou sistemas filosóficos espirituais e teístas, sendo denominado Ātmajñāna ou Ātmavidyā, o conhecimento de Ātman, ou ainda Mokṣa, a libertação.

A sua conceptualização ao longo de uma evolução milenar, complexa de se rastrear pelo muito tempo de mera transmissão oral e pela não datação dos textos mais antigos, vai desde as significações primárias, expostas nos mais antigos textos sagrados, os Vedas (cerca de 1.500 a. C.), de respiração ou sopro vital, ou um eu corporal, passando depois para significar a alma individual e, por fim, o Espírito imortal, tanto individual como universal.

 Este desenvolvimento é mais patente nas Upanisad, ou Upaniṣhadas, textos cujo título significa "aprendido junto ao  mestre", ou "instrução do aluno pelo mestre" provindas  em geral  de membros da casta guerreira que ensinaram este conhecimento do Espírito, do Eu em si, aos sacerdotes, que eram mais sacrificadores aos deuses védicos do que yogis e místicos pesquisadores da psique humana. Encontramos então nas 108 Upanishadas conhecidas muitas especulações e intuições valiosas e subtis, embora nem sempre concordantes.  Este primeiro texto  vai basear-se em algumas de tais afirmações  das Upanishadas, boas portanto para reflexão e meditação.

Por exemplo, a Kauṣītaki Upaniṣad, IV. 20, descreve o princípio experimentador puro, Ātman, dum modo muito prático e experimental, que deveríamos praticar, sentir, realizar : «este Ser consciência-inteligência (prajñātman) está no corpo, como Eu, dos cabelos até à ponta das unhas, assim como a lâmina está na bainha, ou o fogo na lareira».

Na Katha Upaniṣad, II. 20, afirma-se: «Ātman, o mais subtil dos subtis, o maior dos maiores, está assente ou oculto  no coração (ou gruta interior) dos seres.» E podemos assim de certo modo distinguir, em analogia com a física moderna, a 1ª descrição do Espírito como onda desta 2ª como partícula

Não é fácil contudo as pessoas estabilizarem-se no Atman e por isso mesmo a  Katha, afirma em seguida II, 23 a ideia da Graça, da gratuitidade, do Amor divino: «Este Atman não pode ser alcançado pela reflexão sobre os ensinamento védico, nem pela meditação, nem pela audição dos textos sagrados. Quem quer que este Espírito ou Atman escolhe, por esse só ele é atingido. A tal pessoa o Atman revela a sua própria forma.» Claro que com isto não se recomenda que não se medite, mas apenas que não há causalidades automáticas e que o Espírito, e os seus elos, sabem quando o peregrino ou peregrina deve ser abençoado.

No início da Aitareya Up. I. 1,  há uma visão grandiosa dos primórdios: «Atman só era tudo o que havia no começo. Nada mais havia. Então ele decidiu: Vou emanar ou criar os mundos (Sa ikshata lokannu stiji ita).» E logo se caracterizará o Atman como prajnana, como consciência, cabendo à consciência humana do Atman individual alcançar tal Consciência suprema pelo seu trabalho e graça. 

Na Brihadarankaya Upanisad, recentemente bem traduzida entre nós pelo António Barahona da Fonseca, há um passo de metodologia da gnose átmica ou monádica valiosa (II, 4.5): «O Eu, sem dúvida, deve ser visto, deve-se ouvir falar  dele (sravana), deve-se reflectir sobre ele (manana, até se estar convicto) e deve-se meditá-lo (nididhyasana). E o Atman torna-se conhecido (vijnana) pelo ver, ouvir, reflectir e meditar  sobre ele». 

Este conhecimento vijnana nasce portanto de um esforço prolongado por compreender o atman até que, pela consciência mais sensibilizada e pela meditação com amor se consegue percepcioná-lo interiormente, o que certamente dependerá ainda, como já foi referido, da graça de Ele próprio, Atman kripa, Ele seja o espírito interior seja a própria Divindade Espírito por toda uma subtil infinidade de transmissões e raios, acerca da qual ao longo dos séculos muitas visões e teorias se ergueram realçando a existência de uma hierarquia, mantendo-se a possibilidade da Graça directa, ainda que o discernimento sobre estes difíceis seja por raríssimos alcançada.

  Bem famoso e mais subtil do que parece é outro passo da Brihadarankaya Upanishad (IV. 5, 6): «O marido é sem dúvida querido, não por causa de se desejar do marido, mas por causa de  se desejar o Atman... Nenhum objecto é querido por causa de ser desejado, mas por causa do desejo do Atman». 

A questão que surge é na maioria das pessoas deseja-se mais as aparências mas que são sensiveis e palpávéis do que as essências bem mais subtis. O famoso filósofo místico vaishnava Ramanuja, o fundador do Visistadvaita, Não dualismo modificado, discernirá e bem que é o desejo ou vontade do Atman supremo, sobretudo se temos para com ele devoção-amor, que empresta a capacidade de atração que os objectos que nós gostamos têm sobre nós, em proporção não do nosso amor pelos objectos ou seres mas pelo que temos ao Espírito supremo, de tal modo que por tal entrega ao Divino também o mundo e os seus seres e coisas se nos apresentarão ou oferecerão mais em beleza e harmonia. 

É uma ideia valiosa de ser trabalhada e que está presente naqueles que sentem e realçam muito a gratidão. Mas se  todos nós conseguíssemos olhar para o que nos rodeia ou temos e vermos em tudo isso o Espírito divino brilhando, e de um modo ou doutro, estaríamos muito mais despertos e intensificados espiritualmente. Abra os olhos e sinta na vela que arde, no sol que nasce ou se põe ou no objecto que gosta:  o que da Divindade pode intuir ou chegar até si...

 Nestes tempos de tantas manipulações e opressões, votos de boas reflexões ou cogitações e em seguida mais interiorizadas e sentidas meditações no seu atman ou espírito, com aspiração e amor-devoção, bhakti prema, pelo Atman primordial, a  Divindade, por qualquer nome que a conheça, invoque, cultue ou ame..

Mostra, demonstra e alegra o Caminho...

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Será que a Alemanha ainda não perdoou ter perdido a 2ª grande Guerra com a Rússia? Querem desforra na 3ª, desta vez ao lado da USA, UK e demais coligados?

 17 de Novembro, de 2022... Moscovo protesta contra a recusa do governo alemão de emitir vistos de entrada para os russos antes da reunião do Comité Paralímpico Internacional...

Será que a Alemanha, através dos seus actuais dirigentes neoconservadores ainda não perdoou, e nem dissemos aceitou, ter perdido a 2ª grande Guerra com a Rússia?  

Será porque estão semi-escravizados pelos norte-americanos, como se viu face a explosão terrorista inglesa e norte-americana do oleoduto Nord Stream que levava a energia russa para a Alemanha, e que gerou um silêncio de avestruz e hipócrita da quase totalidade dos dirigentes da União Europeia, após uma vergonhosa comissão de inquérito que se fechou em copas ao fim de uns dias, sem permitir sequer aos russos participarem?


Será que é ainda a inveja entre grandes Estados Europeus e as suas situações, lutas proezas políticas, económicas ou mesmo desportivas, e que  tendo perdido na segunda a Alemanha quer ganhar na terceira?

A Assembleia geral extraordinária do IPC foi organizada em 17 de novembro na capital alemã de Berlim e, de acordo com reportagens anteriores dos meios de informação, a Alemanha negou vistos de entrada aos delegados que representavam o Comitê Paraolímpico Russo.

MOSCOW, November 17. /TASS/. Moscow is outraged by Germany’s decision to deny visas to the Russian Paralympic Committee (RPC) delegation at the International Paralympic Committee (IPC) extraordinary session in Berlin this week, Ivan Nechayev, Deputy Director of the Russian Foreign Ministry's Information and Press Department, told a briefing on Thursday.

"We resent the fact that Germany refused to issue entry visas to our delegates representing the Russian Paralympic Committee, who had been invited by the International Olympic Committee [IPC] to attend the extraordinary session of the organization’s General Assembly in Berlin on November 16," the diplomat said.

"We consider the denial of the Russian Paralympic Committee’s representatives to attend the General Assembly to be a manifestation of a prejudiced and biased competition," he said.

On Wednesday, at an extraordinary general assembly, the International Paralympic Committee (IPC) suspended the Russian Paralympic Committee’s (RPC) membership in the organization. Under the IPC’s decision, the RPC forfeits all rights in the organization, except for the right to appeal. If the appeal is turned down, the suspension can only be overturned by the IPC General Assembly. The IPC is expected to hold its next General Assembly in the fourth quarter of 2023.

The extraordinary IPC general assembly was organized on November 17 in the German capital of Berlin and, according to previous media reports, Germany denied entry visas to delegates representing the Russian Paralympic Committee.

RPC ongoing spat with IPC

On August 7, 2016, the International Paralympic committee (the IPC) decided to bar the entire Russian team from taking part in the 2016 Summer Paralympics in Brazil’s Rio de Janeiro.

The Court of Arbitration for Sport (CAS) on August 23, 2016 upheld the IPC’s ruling that came on the heels of a report delivered a month earlier by the WADA Independent Commission, chaired by Canadian sports law professor Richard McLaren.

Besides collectively punishing the Russian national team by banning it from the Rio Games, the IPC also decided to suspend the RPC’s membership in the international organization.

However, the team of Russian athletes, led by Rozhkov, was allowed to participate in the Summer Olympics in Tokyo, where it finished in 4th place in the overall medals standings among the rest of the national participants.

Para athletes from Russia also participated in the 2018 Paralympic Winter Games in South Korea’s PyeongChang on a neutral status, dubbed as the Neutral Paralympic Athletes (NPA), as the RPC’s membership with the IPC (the International Paralympic Committee) was suspended at that time.

Russia’s so-called ‘neutral’ team of Para athletes brought home a total of 24 medals in PyeongChang, including eight gold, 10 silver and six bronze, ranking second in the overall medal count at the 2018 PyeongChang Paralympics, after the national team of the United States.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Beatriz Delgado, poetisa, jornalista, quiromante e sacerdotisa, e o seu "Ritual do Amor", dado à luz no Portugal republicano livre de 1923, antes do Estado Novo.

 Beatriz Delgado, no seu Ritual do Amor, dado à luz, em  Lisboa, na Portugália Editora em 1923, a sua segunda obra, a primeira  tendo sido a Amorosa, partilhou trinta sonetos do seu caminho anímico e  coroa a capa da obra com um belo desenho de Martins Barata: um homem ajoelhado e evolando-se da concha da sua mão, à altura do seu coração, uma figura feminina, nua, perfeita, qual arcano XXI, o Mundo, no Tarot, sugerindo certamente o artista e a poetisa comendatária que o homem ao amar a mulher deve adorar o Divino Feminino nela, ou ainda fazer emergir o espírito nela, ou seja, o seu corpo espiritual, e assim expandirem as suas consciências e identidades e tentarem sentir a Unidade nos seus níveis mais elevados. 

                                       

A poetisa era bastante ousada para o meio conservador e burguês da época, que mesmo assim desabrochava numa grande libertação desde 1910 com a proclamação da República e que iria terminar com o advento do Salazarismo, e assim o seu sucesso foi muito grande com a sua primeira obra, a Amorosa, rapidamente esgotando edições.

Extraído do http://mulheresilustres.blogspot.com/2013/02/beatriz-delgado.html

 Mas ao publicar o Ritual do Amor recebe uma  crítica forte do médico e publicista, algo patriarcalista, Augusto Esaguy, que a considerou uma boneca superficial, fingindo e apenas desejosa de brilhar. Não era invulgar tal atitude crítica e algo amargurada dele, pois já em 1919 no seu livro Torturados lançava aceradas críticas, justificadas ou não, aos que tinham tido sucesso nas letras, nomeadamente a Baudelaire ("Esse Charles Baudelaire, cadavérico e pútrido, que passou a vida a fumar ópio, vertendo fel pelo mundo fora, foi um cínico, um nevrótico, um doido que usava coletes às riscas para aliviar o tédio (...) Com o coração endurecido e a alma esfarrapada pelo vício, Charlie Baudelaire, fez da sua vida uma tragédia sinistra", Júlio Dantas e a Albino Forjaz Sampaio, consagrando um capítulo a cada um. E no capítulo O Culto dos Grandes, partilha ainda certa visão lúgubre: «Ser consagrado, ter um nome feito pelos jornais e pela família, andar nas ruas como Afonso Lopes Vieira, olhar o céu como Júlio Dantas, usar capa e polainas como o Forjaz Sampaio ou farda como um senhor que corrói os ossos de Camilo, é ser grande, é o suficiente para se tornar notável nesta pequena Lisboa, sempre triste, montão de pedra e cal onde as almas pouco a pouco, se enegrecem.» Talvez por isso, ou contudo, o sucesso das sucessivas edições mostrava que havia muitas pessoas, sobretudo mulheres e jovens, que se identificavam com a energia fresca, amorosa e libertadora de Beatriz Delgado, e com efeito houve várias críticas elogiadoras da sua obra, embora com traços de alguma superioridade sobre os artifícios femininos, caso de Luís de Oliveira Guimarães, seja mais francamente apreciadoras, tal um A. D., ou ainda de Afonso Zuzarte Mendonça. 

Mais tardiamente, em 1935, um elogio bem valioso veio do membro da Academia das Ciências, o escritor Albino Forjaz de Sampaio   que na sua antologia As melhores páginas da literatura feminina, selecciona a Beatriz Delgado, enumera a sua bibliografia: Amorosa. 1921. Ritual do Amor, 1923, Sinfonia Pagã, 1925. Setas de Ponta de Ouro, 1925 e Meus Vícios, 1926, consagra-lhe quatro páginas com três dos seus poemas,  e apresenta-a assim: «Azougada, irrequieta, cheia de talento e de vida, assistimos à sua estreia e previmos o seu futuro. A cada livro seu, cada escândalo literário e cada êxito editorial. Poetisa de musa poliatenta à vida, também de mil maneiras sabe exteriorizar as suas impressões. E assim é poetisa, prosadora, escreve nos jornais crónicas leves e maliciosas, e faz conferências onde acha de bom tom fazer ouvir o encanto da sua voz. Ganhou notoriedade em Portugal, continuando-a no Brasil onde hoje vive.» 

                       

  Na revista ABC encontramos a confirmação das palavras de Forjaz Sampaio, por exemplo no anos de 1925 e 1926, nas colaborações argutas, bem ilustradas, divertidas, libertadoras de preconceitos e restrições machistas, tal esta ilustrada por Boixe, no número de 22 de Abril, em que se desvenda bastante vidente ou adivinhadora...

Bela, com voz melodiosa e atraente estreou-se como actriz no Politeama numa farsa de Lupino, O Homem do Papagaio, com grande sucesso, e depois  foi contratada para a revista (o que não foi muito bem visto). Veio a casar com o poeta Júlio Trindade e partiu para o Brasil onde, cremos, nunca mais publicou poesia, satisfeita no amor. Deixou a Terra já em 1993, com 93 anos. Na apresentação da Sinfonia Pagã, em 1925, já advertira audaciosamente da força de tal chama: «Depois da Amorosa e do Ritual do Amor, onde o amor é a fogueira que aquece todas as páginas, porque não cantar o amor das coisas e dos outros que é, também, o meu amor?
Sinfonia Pagã...
está bem o título! Pagão é todo o livro, pagã sou eu também. E se me faltam os bosques enfeitados de mirtos e as coroas de rosas para adornar os meus cabelos negros, tenho em compensação, na alma, um fauno mais belo do que todos os faunos mitológicos: o Amor!»

 Beatriz Delgado concluiu o seu Ritual do Amor, então com toda a  força dos 23 anos, que transparece na assinatura da dedicatória ao ilustre jornalista Avelino d'Almeida (de quem cataloguei a biblioteca para leilão...),  com uma justificação da sua poética,  intitulando-a Confidência: «Nos trinta sonetos que compõem este volume, procurei, ao sabor da emoção da hora que passou, - emoção algumas vezes intima e outras vezes assimilada por concepção - fixar, cantando, todas as tonalidades, todas as gamas, dos sentimentos que o Amor faz despertar nas almas dos que sentem...
E, assim, deixei esboçado u
m Ritual do Amor, do que sou impenitente sacerdotisa, apesar de não ser a protagonista de todos estes sonetos, que, por isso, não deixaram de ser igualmente sentidos e vividos...» 

Extraído do http://mulheresilustres.blogspot.com/2013/02/beatriz-delgado.html

Ora o primeiro dos trinta sonetos introduz-nos logo na sua intimidade anímica, nas suas mãos e olhos de alma intuitiva que, segurando na mão de alguém e, no caso de quem mais se ama, consegue sentir e antecipar auspiciosamente o futuro, uma boa ventura, buena-dicha...

Entremos então no Ritual de Amor de uma jovem Beatrice portuguesa, e oiçamos três dos seus mais luminosos ou mais intensos sonetos:

Buena Dicha

«Vejo na tua mão, nervosa e fina,
que existe uma mulher apaixonada,
que luta para ser a tua amada
com toda a astúcia feminina...»

Falei desta maneira ao ler-te a sina,
naquela tarde linda e perfumada
em que quiseste ver justificada
a sorte que o futuro te destina.

Podes acreditar no que te disse:
é tudo uma verdade o que predisse,
existe essa mulher que te ama assim.

Ouve agora, baixinho o meu dizer:
essa mulher ... sou eu, que quero ter
o teu amor inteiro para mim. »

Eis um soneto  que podemos senti-lo como se fosse connosco, ou junto a nós, pois mãos nas mãos, olhando a alma através da palma, discernindo as linhas energéticas delas,   o Amor inteiro, pleno e verdadeiro entre dois seres quer brotar, esse que alguns seres conseguem realizar e por ele se tornam cavaleiros e cavaleiras do Amor.

Oriental

Há sombras debruçando-se a meu lado,
como rastos subtis do mundo astral,
que formam, pouco a pouco, uma espiral
por onde sobe o pensamento alado.
 
Deitada, sobre um manto de brocado,
provoco, então, um sonho oriental,
sentindo a mirra a arder em ritual
e o litúrgico incenso a ser queimado.
 
E sonho, e vejo, todo o antigo Oriente
nessa expressão sagrada e indolente,
donde brotou Jesus e Madalena.
 
Porém, acordo sempre no meu Tempo
porque a visão se evola num momento
quando eu aspiro um pouco de Verbena.» 
 
Eis uma boa manifestação da ampla consciência da Beatriz Delgado que abrange na sua imaginação, amor e magia, o Oriente, o Médio Oriente e o Ocidente, trazendo à luz os rituais, os incensos, os perfumes, os amores, Jesus e Madalena mesmo, esta  indolente, e não impenitente amorosa, como Beatriz se afirmou na Confidência, tudo terminado e reintegrado com as energias da Verbena, uma planta com longa tradição sacra e mágica, desde Grécia e Roma (onde se espargiam os altares ou aras de Júpiter, Deus óptimo, com maceração dela) e até aos nossos dias. Uma planta que serve para poções de amor (pois era uma herbis veneris, venusiana), para a cura de feridas, para o esgotamento nervoso, dores de cabeça, garganta e pele. No contexto, Beatriz recomenda-a para estimular o funcionamento metabólico no plano físico, fazendo dissiparem-se sonhos e visões. 
Destaquemos finalmente a quadra inicial, com uma sensibilidade às energias e psico-morfismos dos mundos subtis que de sombras e rastos se transformam em espirais por onde a sua consciência com asas pode ascender a um plano subtil mágico, sagrado, de ampla visibilidade do que imagina ou aspira. Assim possamos estar nós mais conscientes das energias que emanamos e que nos envolvem ou dos movimentos espirálicos por onde nos podemos melhor elevar. 
Se ela apenas imaginava ou se conhecia e realizava mesmo a quiromancia, já que na época brilhava ao Chiado a transmontana Madame Brouillard (que mesmo Fernando Pessoa num diário de 1913 assinalava o desejo e tarefa de a consultar), ou se tinha era uma forte sensibilidade intuitiva do mundo astral, é certamente difícil de afirmarmos por hora... 
No soneto seguinte reintroduz-nos no amplo estuário do sonho e da realidade, profundo santuário do sentir e do "saber amar":
 
ANOITECER
Quem é que vem à noite, ao meu deitar,
cobrir-me de açucenas e de rosas?
Quem é que me segreda as amorosas
palavras de quem sente e sabe amar? 
 
Quem é que beija as minhas mãos nervosas
e os meus olhos cansados de chorar?
Quem vem a minha noite iluminar
com as visões de amor mais caprichosas?
 
Mas eu já sei quem é que me aparece
e que tem a doçura duma prece
quando vem afastar a minha dor.
 
É a visão mais bela que conheço...
és tu, meu bem, que sabes que padeço
e vens iluminar o meu amor.»
 
A magia da palavra que cura, que ora, que dissipa dores e trevas, a presença cheia de uma alma plena de amor e sensibilidade, capaz de irradiar e de cobrir quem ama com as mais belas e perfumadas flores, sabendo amar luminosamente o bem, o seu polo complementar, é neste soneto bem realçado pelas mãos inquietas  e os olhos sofridos.
Também a inquietação e aspiração amorosa pelo peregrino distante, o soneto seguinte nos transmite, quase que em mantras ou jaculatórias de voz baixinha mas fremente: 
 
Carta ao meu bem
Ó meu amor, ó meu amor ausente,
não te deixes ficar pelo caminho...
A minha boca diz, devagarinho,
as frases de quem ama e de quem sente.
 
Não as deixes perder... Dá-me o carinho
que o meu coração triste e sempre ardente
implora à tua alma, docemente,
como se fosse um triste pobresinho...
 
Eu não te quero, vê, somente amar;
quero que tudo seja em nós divino,
que o nosso amor atinja a eternidade!

Termino, ó meu amor, a soluçar
- e receando ser no teu destino
a flor que se desfolha sem piedade...»

Eis um soneto de grande humildade, de dádiva profunda ao ser amado, para que ele não se perca ou desvie e a abandone. Após as palavras mágicas de oração e invocação, o mais valioso é certamente o fogo ardente de plenitude de entrega recíproca total, aquela que torna momentos da vida manifestação ou espelho da unidade Divina e que robustece o enlace amoroso para uma durabilidade  quase infinita. Algo, nos dias de hoje, raro de ser sentido, desejado e vivido plenamente a não ser pelas raras sacerdotisas e cavaleiros do amor.
É de facto o receio final que mais se verifica: os seres não tem paciência anímica nem perseverança de aceitação amorosa e acabam por deixar partir um ou outro, mais ou menos ferido, mais ou menos entristecido. Mas o apelo e lema do mais alto objectivo do encontro entre dois seres foi bem lançado por Beatriz Delgado:

«Eu não te quero, vê, somente amar;
quero que tudo seja em nós divino,
que o nosso amor atinja a eternidade!»
 
Pintura dos mundos espirituais, eternos, plenos de amor, de Bô Yin Râ.

domingo, 13 de novembro de 2022

"Alma minha gentil..., de Camões, e de Maria da Silva Vieira, nas "Violetas Dispersas", de Esposende. In Memoriam.

O soneto Alma minha gentil, de Camões, é dos mais valorizados e glosados embora haja muitos outros poemas  tão belos e até mais agraciados  pelo conhecimento e o amor.   Observamos nele uma aceitação da fatalidade da morte que separa os amantes, suplantada contudo pela certeza da continuidade da vida individualizada nos mundos etéreos e portanto pela existência de eflúvios, laços ou canais comunicativos entre as duas almas amantes afastadas fisicamente, e que pedem à Divindade para serem de novo reunidas.

«Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
 
[Comentário: Partida, elevou-se a alma, triste da separação, na terra sofre um coração. Tua gentileza esteja activa, e a mim me inspire, para te alegrar e continuar.]

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
[Se raios de amor cruzam mundos, se a memória se conserva, lembra-te do nosso amor, que ele nos una no seu fogo e luz.]

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
[
O sangue que escapa do coração ferido, como mezinha luminosa, fará o Amor aumentar?]

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.»
[Que a vontade divina nos una no etéreo mundo espiritual, doce campo das almas afins.]

Após a transcrição do poema e dum breve comentário meu, saltando quatrocentos séculos de leitores, comentadores e poetizadores do soneto, alguns bem famosos, vamos deter o voo da história no final da segunda década do século XX, em Esposende.

                                     

Entre  quem poetizou, e viveu mesmo tal drama duplamente, está uma jovem poetisa, hoje quase ignorada, Maria da Silva Vieira,  à qual podemos ter acesso apenas graças a seu pai, José da Silva Vieira, ter em 1929 dado à luz na Tipografia Espozendense os seus versos (vários já publicados em jornais regionais) sob o título Violetas Dispersas, e do qual recebi um exemplar assinado, creio, pela irmã.

                                      

Contém um sentido e tocante prefácio, intitulado mesmo In Memoriam, pelo professor e escritor Manuel Cardoso Marta (1882-1958), pois o pai e organizador da edição um dia viera visitá-lo e «me apresentava a filha que sobre tudo amava, trazendo na mão incerta um ramalhete de rimas - avesinha a ensaiar  os primeiros voos e primeiros gorgeios./ Li os versos. Através das incorrecções da principiante - erros de técnica, ingenuidade pueris, redacção não raro descuidosa - rastreei um fiozinho de sentimento muito feminino, uma simplicidade, uma delicadeza espiritual que me encantaram. Ali não havia literatura. Era o perfume da mulher que sai da meninice e sente, exuberante da seiva, abrir-se-lhe a vida diante dos olhos - o que se desprendia daqueles versos, por vezes sem metro nem harmonia».

E assim começara a cartear-se com a jovem poetisa, aconselhando-a na arte poética que ela balbuciava com os seus 16 anos e que, face à fotografia que ela lhe oferecera, embora nunca tivesse encontrado, escreve para esta memória: «Descubro-lhe no olhar, que tem a claridade da adolescência e a limpidez de uma alma bela, um não sei quê de vaga tristeza e de angústia»... Uma alma de intensa sensibilidade e de imenso amor, tragicamente desiludida, diremos, Lux, Amor, Aum!

Eis então o poema da gentil alma da Maria da Silva Vieira, por desilusões amorosas e algumas mortes, tão cedo atraída e levada para as etéreas dimensões:

«ALMA MINHA GENTIL,
QUE TE PARTISTE...»

                                                     À memória de meu querido irmão Daniel da Silva Vieira.

«Num pequeno caixão, de flores recamado,
Adormeceu p'ra sempre um ente estremecido
Cravo que feneceu, mal que fora nascido
E que nasceu p'ra ser do nosso amor cercado.
 
Chamava-se Daniel o meu irmão querido,
Que a morte me levou e Deus tem ao seu lado.
O que serias tu? Um poeta? ou um soldado?
Tudo podias ser, se acaso tens vivido.
 
Confrange-se-me agora o pobre coração
Lembrando-me que um dia, exausta de viver,
Deus me há-de marcar a hora da partida.
 
E então irei a ti, ó meu saudoso Irmão,
Pondo termo na terra à dor do meu sofrer
Para viver contigo a glória doutra vida.»
1913.

Os poemas da Maria Vieira contidos na antologia cantam o fluir da vida na aldeia, nos trabalhos do campo, no mar, no coração, na escola, na sociedade na 1ª grande Guerra e mostram-nos uma alma de sensibilidade imensa, quase que predestinada para a desilusão, o sofrimento e a morte, sentindo muito facilmente as dores desde mundo transitório, por vezes tão enganador. O seu irmão morrera em criança, uma grande amiga suicidou-se e em seguida aconteceu a trágica desilusão do seu amor e assim, desejosa de reunir-se ao irmão e à amiga, partiu voluntariamente.  

Não podemos deixar de relacioná-la, além de Luís de Camões ao glosá-lo, com Soares dos Passos e Antero de Quental, tanto pela repulsão e atração pela morte, a desilusão da vida e do amor, embora sentindo este fortemente, e o abandonar precoce e voluntariamente a vida terrena. Os poemas Morte Súplica mostram o anseio forte que a morte venha libertá-la do sofrimento e devolvê-la ao mundo espiritual, à sua ligação com Deus. Que substractos anímicos lhe permitiriam assim tão cedo desprender-se da vida corporal terrena? Os exemplos de Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco e de Antero de Quental, em 1889, 1890 e 1891, terão contribuído? Mistérios, que hoje repousarão mais serenos na sua intimidade pura e imensa sensibilidade...


Valiosas são as sensações e interrogações, ousadas numa jovem de dezassete anos, sobre a morte, o suicídio, o julgamento de Deus e a vida no além que irrompem no poema Saudades, "à grata memória da minha amiga Maria da Cunha Torres", e que se passa junto à campa dela, onde foi depôr «um gracioso bouquet de lindas rosas, (...) rescendendo perfumes, odorosas». E chorando, «murmurei ardentes preces. E ao Senhor roguei clemência se a tua alma está penando.

Mas que ideia! Como é que pode estar
sofrendo a punição na mão de Deus,
se foste sempre um anjo modelar,
amor sabendo apenas inspirar
a todos os estranhos e aos teus?»

Também no soneto Dormir... Sonhar ecoa algo da beleza, tristeza e sonho de descanso eterno na mão de Deus cultivado por Antero de Quental, e eis o soneto completo, uma quase oração a Morfeu, ou à Noite imensa e seu manto estrelado e sossegador: 

Se a cabeça pousamos, abatida
Desta luta e insanas convulsões
No colo de Morfeu, lindas visões
Nos povoam a mente adormecida.

Voámos a sonhar, às vastidões
Do Além, que desconheces, minha vida,
Um louco sonho, a quem demos guarida -
Tantas vezes desfeito em ilusões!
 

A cabeça, Morfeu, vou reclinar
No colo teu. Os olhos vou fechar,
Teu manto sobre mim vem estender.

E depois, não me acordes de repente!
Deixa, deixa dormir eternamente
Este corpo cansado de sofrer!»
Desejemos e oremos que estas almas gentis que já partiram para os etéreos assentos, ou dimensões subtis, possam nelas viver luminosamente, talvez mesmo já como espíritos celestiais individuados e bem despertos, e estabeleçam connosco alguma relação, unindo extremidades da vida, sob as bênçãos divinas, as quais invocamos muito em especial sobre Luís de Camões, Antero de Quental, Cardoso Marta e em especial na Maria Vieira e sua família e amigas!... Lux, Amor!

sábado, 12 de novembro de 2022

12 capas belas de livros de Poesia, para inspirarem-nos nos dias 12, de Novembro ou qual seja...

Sul, de Martinho de Brederode, 1905. Foi-me oferecido por um familiar do autor. A contracapa é também bela.  *-*-  Está sol, é Sábado, vem caminhar pelos campos e comungar o Amor que perpassa em tudo que a ele se abre...

Evocações, de A. C. Pires de Lima, 1920. Desenho de António Lima. Com dedicatória ao etnógrafo Castillo de Lucas. *-*- Ao fundo da floresta do teu inconsciente encontrarás a capela do Amor em ti. Persevera na demanda e adora nela!

Na Torre de Ilusão, de Alfredo Pimenta. 1912. Com dedicatória a António de Menezes. *-*- Renasce constantemente, harmoniza-te com a música e a Natureza e esplendece espiritualmente...

Livro de Horas, de Felix Horta, 1938. Com dedicatória a Vasco da Cunha. -   Félix Horta, que dedicou nesta tão bela impressão tipográfica um profundo poema a Antero de Quental, que já cingi neste blogue, tinha como seu ex-libris, Vola et Ama. Esforça-te, eleva-te e desperta mais o fogo do Amor divino.

Poesias, de João Vasconcellos e Sá. 1959. *-*-  Paisagem do Alentejo, sob a terra seca as nuvens derramam esperanças nas almas sequiosas da água da misericórdia, da fecundidade do Amor.

A Morte da Águia, de Eduardo Salgueiro. 1924. Com dedicatória ao dr. Adriano Pimenta. *-*- Não deixes cortarem as asas da águia em ti. Ousa quereres sair das medianias e narrativas oficiais, não te alienes nos noticiários e comentadores televisivos, e comunga antes com a Natureza, os grandes, seres, o amor, a Divindade

Rosas desta Manhã, de Augusto Gil. 1936. Obra póstuma, bem ilustrada, com paráfrases de poetas romanos e um In-Memoriam em que colaboraram 16 escritores, dos quais destacaremos Fausto Guedes Teixeira, Guedes de Oliveira, João de Barros, João Paulo Freire, Júlio Dantas, Norberto de Araújo, Nuno de Montemor, Rocha Martins.... *-*- Rosas e cristais perfumem e iluminem sempre as nossas almas e suas uniões e adorações.

Os Cinco Sentidos de Lisboa, de Dórdio Guimarães, o companheiro de Natália Correia. 1971. Desenho de Gui. *-*-Felizes dos que sabem sentir e ver, nem que seja em sonhos, as outras dimensões de Lisboa, e das suas ruas e pessoas, jardins e aurífero Tejo, ou mesmo receberem as visitações dos Anjos que a sobrevoam ou habitam..

Versos, de Augusto Gil. 6ª edição, de 1956, da Portugália. Muito suaves e belos desenhos de Maria Franco, intensificam a profundidade e plenitude da Natureza, da Humanidade e da Vida sob a Luz e o Amor divinos, que o notável poeta da Guarda tanto sentiu, intuiu e tão bem descreveu ou cantou...

Roteiro das Saudades, de Carlos Lobo de Oliveira, um companheiro de Fernando Pessoa e António Sardinha,  de 1926, impresso no seu exílio no Rio de Janeiro. *-*- Preservarmos no amor por Portugal, mesmo com tanta gente desequilibrada, ignorada e vendida a dirigir ou a representar o país é obra fundamental, alquímica e rosicruciana, como o pelicano indica, pois do próprio peito se extrai o alimento para os seres mais afins ou ressoantes, ou para os lusitanos do futuro

Férias Grandes, de Salema Vaz, de versos para crianças com belos desenhos de Arcindo, que colaborou também com Augusto de Santa Rita, de 1937, com dedicatória «ao amigo e confrade ilustre José Agostinho». *-*- Sabermos  estar sempre a aprender e a partilhar, a trabalhar e a amar, com criatividade e liberdade, eis as fontes da Felicidade.
Livro do Amor, de João de Deus, Edição comemorativa do centenário do poeta, 1830-1930. Com Antero de Quental, é o grande poeta da segunda metade do século XIX, e com uma abertura ao Amor extraordinária. Saibamos de quando em quando refrescar-nos na sua obra perene.
               
Uma bela fotografia de João de Deus, quando estudava e se demorava em Coimbra, já então aureolado como grande poeta, tal como Antero de Quental, seu grande amigo. Este exemplar, de 1930, pertenceu ao jornalista Avelino de Almeida, que o ilustrou com pequenas folhas dispersas por poemas, e quem sabe lembrando momentos afectivos. Tais mementos  foram reunidos num mandala de luz amor para os três, e para os outros poetas aqui invocados. Dando graças à Divindade, no amor dos livros e dos seus cultores...

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Antero de Quental, um Bardo Thodol, um psicopompo, para Rodrigues de Freitas. A narrativa de Antero Adriano em "Os Poetas Cegos", 1929. "Descansar na mão direita de Deus"...

 Adriano Antero (1846-1934), natural de Carquere, Rezende, vila abençoada por uma igreja românica (que alberga uma escultura de N. Senhora minúscula mas ligada aos primórdios da nossa Nacionalidade, a Afonso Henriques e a Egas Moniz e que eu visitei e toquei há muitos anos, numa peregrinação aos santuários românicos, organizada pela Dalila Pereira da Costa e em que participou também Sant'Anna Dionísio), formou-se em Direito em Coimbra, e veio a ser advogado e professor na Escola Industrial do Porto, gerando uma vasta obra, entre a qual encontramos, dado à luz  em 1929, no Porto, um valioso estudo, bem prefaciado e até com alguns poemas seus, intitulado Os Poetas Cegos,  - e, portanto, seres que incarnaram bem o dito o amor é cego mas clarividente, já trabalhado neste blogue - no qual biografa os vates não videntes fisicamente mas que se "imortalizaram" na Grécia, Escócia, França, Inglaterra, Portugal  e  Rússia. Dos portugueses apresenta Baltazar Dias, Manuel do Vale de Moura, António Feliciano Castilho, Camilo Castelo Branco, Francisco Sousa Viterbo e Alberto de Madureira.


Ora a páginas tantas, da 132ª até à final 178,  faz um Aditamento, iniciado assim: «Dissemos a páginas 96 que a Colleção das Cem melhores poesias (Líricas) da Língua Portuguesa, de poetas mortos, feita por Carolina Michäelis, era imperfeitamente coligida; e vamos demonstrar esta asserção. Embora a demonstração [da páginas 132 à 178] venha a ser longa, como se trata de poetas, julgamos que não é impertinente.»
Nomeia as omissões totais, caso de João de Lemos, Bulhão Pato, Fernando Caldeira e Guilherme Braga, ou as várias parciais, e como menciona Antero de Quental e com uma nota espiritual, vamos transcrevê-la:
«De Antero d
e Quental transcreveu [Carolina Michäelis Vasconcelos] seis sonetos valiosos, como igualmente são todos desses escritor. Mas omitiu os dois, sem dúvida os mais formosos, a saber: À Virgem Santíssima e Na Mão de Deus.

Quanto a este último, convém até lembrar que, quando [José Joaquim] Rodrigues de Freitas [1840-1896, notável catedrático portuense e político republicano e socialista] estava a morrer, pediu à esposa que lho estivesse recitando, como ela fez.»

Esta afirmação de Antero Adriano é bem valiosa, pois revela Antero de Quental como Hermes psicopompo, e ainda por cima guiando para o além um valioso pensador, dois anos mais velho do que ele.  Que tenha escolhido tal poema não é de estranhar, pois é como uma entrega final da vida à Divindade.  Mas o que valorizaram ele e a mulher em especial nesse canto final dos Sonetos Completos: a entrega do coração cansado, mas confiante, na mão amiga e reconfortadora de Deus, ou no seio e paz da Divindade?
Que concepção tinha Rodrigues de Freitas seja de Deus, seja da transição para o outro lado?
Poderemos considerar que houve uma espécie de substituição da extrema-unção transmitida por um padre da Igreja católica pela leitura de um poema de um revolucionário e espiritual? Parece-nos que sim...
E terá havido outros casos em Portugal de pessoas que à hora da morte pediram para lhes lerem ou recitarem poemas de Antero de Quental, ou ainda de outros vates? Provavelmente sim, e quem procurar encontrará...
Deveremos então chamar a Antero de Quental um Bardo Thodol, um abridor de caminhos luminosos para o além, um psico-pompo ou guia da alma na travessia do umbral da morte?
                                                

 Que  versos, ideias e sentimentos mais tocaram Rodrigues Freitas? Terá morrido exactamente durante a leitura e inspirado ou apoiado por tal? Saberia algo de cor e impulsionado pela leitura, ciciaria algum, qual responso? E o que aconteceu ? Foi apenas um calmante, ou antes no seu interior abriu-se uma janela de esperança e de fé, ou houve mesmo seja um afirmar seja um despertar consciencial, quem sabe com visão espiritual?

Embora o poema seja muito famoso, não tem assim tanta força espiritual, pois é um poema de entrega e descanso final, e não impulsiona activamente o despertar espiritual. Mas como  tal descanso frequentemente é necessário nas almas que acabam de desencarnar, após a vida desgastante, a doença, a mente perturbada, teremos de admitir a razão de ser do poema se orar pela entrega humilde e o descanso, embora sem nos esquecermos da importância da oração por mais luz,  elevação, despertar dos sentidos espirituais e da identidade num corpo de glória, filho ou filha da Divindade.

Oiçamos de novo o soneto, ao qual já consagramos um estudo neste blogue:https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/07/antero-de-quental-e-nos-na-mao-de-deus.html

                                       Na mão de Deus
                              
(À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O[liveira] M[artins].)

«Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!»
 
De certo modo ou aparentemente o poema não é muito forte, pois pedir para dormir eternamente na mão de Deus é quase um pedido de um descrente da imortalidade espiritual do ser humano, já que passar a eternidade a dormir, mesmo que na mão de Deus, não é muito atraente.
A menos que se esteja a pensar que então a pessoa pode sonhar, ou que a sua vida real no além é como o sonhar para nós no plano físico, e então o coração, com os seus desejos e traumatismos, descansaria enquanto a alma se moveria livremente nos mundo subtis ou mesmo espirituais do misterioso além.
Não nos parece porém que tenha sido esse o sentir e o pensar de Antero de Quental e de José Joaquim Rodrigues de Freitas. Creio que não tinham uma ideia precisa do que os esperaria com a morte, e que o corpo, o cérebro e a alma cansados e desgastados pela doença e a idade aspiravam a um descanso retemperador. Pouca gente aliás tem uma ideiaclara, a menos que tenha uma fé forte nos ensinamentos da sua religião ou da sua doutrinação espírita, esotérica, espiritual. Creio que Antero e José Joaquim compuseram um hino belo à Paz merecida após uma vida de luta grande e, logo desejando o descanso ou mesmo a dissolução na misteriosa origem da Vida, no caso de não se crer na sobrevivência individualizada do espírito humano. Acrescente-se que já 26.VI-24 o meu irmão José, surpreendeu o padre que lhe dava a extrema unção e a família ao recitar-lhes de cor o imortal soneto de Antero, na Mão de Deus. E nós, quantos o conhecemos, ou temos outros (ou orações) no coração, de cor?
Saibamos nós despertar mais a nossa consciência na sua autonomia em relação ao cérebro e ao corpo físico, vendo-nos ou sentindo-nos como corpo espiritual luminoso e, chegada a hora de morte do corpo terrenos, avançarmos para o mais alto possível, em amor e aspiração Divina.