Adriano Antero (1846-1934), natural de Carquere, Rezende, vila abençoada por uma igreja românica (que alberga uma escultura de N. Senhora minúscula mas ligada aos primórdios da nossa Nacionalidade, a Afonso Henriques e a Egas Moniz e que eu visitei e toquei há muitos anos, numa peregrinação aos santuários românicos, organizada pela Dalila Pereira da Costa e em que participou também Sant'Anna Dionísio), formou-se em Direito em Coimbra, e veio a ser advogado e professor na Escola Industrial do Porto, gerando uma vasta obra, entre a qual encontramos, dado à luz em 1929, no Porto, um valioso estudo, bem prefaciado e até com alguns poemas seus, intitulado Os Poetas Cegos, - e, portanto, seres que incarnaram bem o dito o amor é cego mas clarividente, já trabalhado neste blogue - no qual biografa os vates não videntes fisicamente mas que se "imortalizaram" na Grécia, Escócia, França, Inglaterra, Portugal e Rússia. Dos portugueses apresenta Baltazar Dias, Manuel do Vale de Moura, António Feliciano Castilho, Camilo Castelo Branco, Francisco Sousa Viterbo e Alberto de Madureira.
Nomeia as omissões totais, caso de João de Lemos, Bulhão Pato, Fernando Caldeira e Guilherme Braga, ou as várias parciais, e como menciona Antero de Quental e com uma nota espiritual, vamos transcrevê-la:
«De Antero de Quental transcreveu [Carolina Michäelis Vasconcelos] seis sonetos valiosos, como igualmente são todos desses escritor. Mas omitiu os dois, sem dúvida os mais formosos, a saber: À Virgem Santíssima e Na Mão de Deus.
Quanto a este último, convém até lembrar que, quando [José Joaquim] Rodrigues de Freitas [1840-1896, notável catedrático portuense e político republicano e socialista] estava a morrer, pediu à esposa que lho estivesse recitando, como ela fez.»
Esta afirmação de Antero Adriano é bem valiosa, pois revela Antero de Quental como Hermes psicopompo, e ainda por cima guiando para o além um valioso pensador, dois anos mais velho do que ele. Que tenha escolhido tal poema não é de estranhar, pois é como uma entrega final da vida à Divindade. Mas o que valorizaram ele e a mulher em especial nesse canto final dos Sonetos Completos: a entrega do coração cansado, mas confiante, na mão amiga e reconfortadora de Deus, ou no seio e paz da Divindade?
Que concepção tinha Rodrigues de Freitas seja de Deus, seja da transição para o outro lado?
Poderemos considerar que houve uma espécie de substituição da extrema-unção transmitida por um padre da Igreja católica pela leitura de um poema de um revolucionário e espiritual? Parece-nos que sim...
E terá havido outros casos em Portugal de pessoas que à hora da morte pediram para lhes lerem ou recitarem poemas de Antero de Quental, ou ainda de outros vates? Provavelmente sim, e quem procurar encontrará...
Deveremos então chamar a Antero de Quental um Bardo Thodol, um abridor de caminhos luminosos para o além, um psico-pompo ou guia da alma na travessia do umbral da morte?
Embora o poema seja muito famoso, não tem assim tanta força espiritual, pois é um poema de entrega e descanso final, e não impulsiona activamente o despertar espiritual. Mas como tal descanso frequentemente é necessário nas almas que acabam de desencarnar, após a vida desgastante, a doença, a mente perturbada, teremos de admitir a razão de ser do poema se orar pela entrega humilde e o descanso, embora sem nos esquecermos da importância da oração por mais luz, elevação, despertar dos sentidos espirituais e da identidade num corpo de glória, filho ou filha da Divindade.
Oiçamos de novo o soneto, ao qual já consagramos um estudo neste blogue:https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/07/antero-de-quental-e-nos-na-mao-de-deus.html
Na mão de Deus
(À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O[liveira] M[artins].)
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!»
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