sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Antero de Quental, um Bardo Thodol, um psicopompo, para Rodrigues de Freitas. A narrativa de Antero Adriano em "Os Poetas Cegos", 1929..

 Adriano Antero (1846-1934), natural de Carquere, Rezende, vila abençoada por uma igreja românica (que alberga uma escultura de N. Senhora minúscula mas ligada aos primórdios da nossa Nacionalidade, a Afonso Henriques e a Egas Moniz e que eu visitei e toquei há muitos anos, numa peregrinação aos santuários românicos, organizada pela Dalila Pereira da Costa e em que participou também Sant'Anna Dionísio), formou-se em Direito em Coimbra, e veio a ser advogado e professor na Escola Industrial do Porto, gerando uma vasta obra, entre a qual encontramos, dado à luz  em 1929 no Porto, um valioso estudo, bem prefaciado e até com alguns poemas seus, intitulado Os Poetas Cegos,  - seres que incarnaram bem o dito o amor é cego mas clarividente, que já trabalhámos neste blogue - no qual biografa os vates não videntes fisicamente mas que se "imortalizaram" na Grécia, Escócia, França, Inglaterra, Portugal  e  Rússia. Dos portugueses apresenta Baltazar Dias, Manuel do Vale de Moura, António Feliciano Castilho, Camilo Castelo Branco, Francisco Sousa Viterbo e Alberto de Madureira.


Ora a páginas tantas, da 132ª até à final 178,  faz um Aditamento, iniciado assim: «Dissemos a páginas 96 que a Colleção das Cem melhores poesias (Líricas) da Língua Portuguesa, de poetas mortos, feita por Carolina Michäelis, era imperfeitamente coligida; e vamos demonstrar esta asserção. Embora a demonstração [da páginas 132 à 178] venha a ser longa, como se trata de poetas, julgamos que não é impertinente.»

Nomeia as  omissões totais, caso de João de Lemos, Bulhão Pato, Fernando Caldeira e Guilherme Braga, ou as  várias parciais, e como menciona Antero de Qental e com uma nota espiritual, vamos transcrevê-la:

«De Antero de Quental transcreveu [Carolina Michäelis Vasconcelos] seis sonetos valiosos, como igualmente são todos desses escritor. Mas omitiu os dois, sem dúvida os mais formosos, a saber: À Virgem Santíssima e Na Mão de Deus.
Quanto a este último, convém até lembrar que, quando [José
Joaquim] Rodrigues de Freitas [1840-1896, notável catedrático portuense e político republicano e socialista] estava a morrer, pediu à esposa que lho estivesse recitando, como ela fez.»

Esta afirmação de Antero Adriano é bem valiosa, pois revela Antero de Quental como Hermes psicopompo, e ainda por cima guiando para o além um valioso pensador, dois anos mais velho do que ele.  Que tenha escolhido tal poema não é de estranhar, pois é como uma entrega final da vida à Divindade.  Mas o que valorizaram ele e a mulher em especial nesse canto final dos Sonetos Completos: a 

entrega do coração cansado, mas confiante, na mão amiga e reconfortadora de Deus, ou no seio e paz da Divindade?
Que concepção tinha Rodrigues de Freitas seja de Deus, seja da transição para o outro lado?
Poderemos considerar que houve uma espécie de substituição da extrema-unção transmitida por um padre da Igreja católica pela leitura de um poema de um revolucionário e espiritual? Parece-nos que sim...
E terá havido outros casos em Portugal de pessoas que à hora da morte pediram para lhes lerem ou recitarem poemas de Antero de Quental, ou ainda de outros vates? Provavelmente sim, e quem procurar encontrará
Deveremos então chamar a Antero de Quental um Bardo Thodol, um abridor de caminhos luminosos para o além, um psico-pompo ou guia da alma na travessia do umbral da morte?
                                                

 Que  versos, ideias e sentimentos mais tocaram Rodrigues Freitas? Terá morrido exactamente durante a leitura e inspirado ou apoiado por tal? Saberia algo de cor e impulsionado pela leitura, ciciaria algum, qual responso? E o que aconteceu ? Foi apenas um calmante, ou antes no seu interior abriu-se uma janela de esperança e de fé, ou houve mesmo seja um afirmar seja um despertar consciencial, quem sabe com visão espiritual?

Embora o poema seja muito famoso, não tem assim tanta força espiritual, pois é um poema de entrega e descanso final, e não impulsiona activamente o despertar espiritual. Mas como  tal descanso frequentemente é necessário nas almas que acabam de desencarnar, após a vida desgastante, a doença, a mente perturbada, teremos de admitir a razão de ser do poema se orar pela entrega humilde e o descanso, embora sem nos esquecermos da importância da oração por mais luz,  elevação, despertar dos sentidos espirituais e da identidade num corpo de glória, filho ou filha da Divindade.

Oiçamos de novo o soneto, ao qual já consagramos um estudo neste blogue:https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/07/antero-de-quental-e-nos-na-mao-de-deus.html

                                       Na mão de Deus
                         (À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O[liveira] M[artins].)

«Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!»
 
De certo modo o poema não é muito forte, pois pedir para dormir eternamente na mão de Deus é quase um pedido de um descrente da imortalidade espiritual do ser humano, já que passar a eternidade a dormir, mesmo que na mão de Deus, não é muito atraente.
A menos que se esteja a pensar que então a pessoa pode sonhar, ou que a sua vida real no além é como o sonhar para nós no plano físico, e então o coração, com os seus desejos e traumatismos, descansaria enquanto a alma se moveria livremente nos mundo subtis ou mesmo espirituais do misterioso além.
Não nos parece porém que tenha sido esse o sentir e o pensar de Antero de Quental e de José Joaquim Rodrigues de Freitas. Creio que não tinham uma ideia precisa do que os esperaria com a morte. Pouca gente aliás o tem, a menos que tenha uma fé forte nos ensinamentos da sua religião ou da sua doutrinação espírita, esotérica, espiritual. Creio que Antero e José Joaquim compuseram um hino belo à Paz merecida após uma vida de luta grande e logo a um merecido descanso ou mesmo a dissolução na misteriosa origem da Vida...
Saibamos nós despertar mais a nossa consciência na sua autonomia em relação ao cérebro e ao corpo, vendo-nos ou sentindo-nos como corpo espiritual luminoso e, chegada a hora de morte do corpo terrenos, avancemos para o mais alto possível, em amor e aspiração Divina. 

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