terça-feira, 15 de novembro de 2022

Beatriz Delgado, poetisa, jornalista, quiromante e sacerdotisa, e o seu "Ritual do Amor", dado à luz no Portugal republicano livre de 1923, antes do Estado Novo.

 Beatriz Delgado, no seu Ritual do Amor, dado à luz, em  Lisboa, na Portugália Editora em 1923, a sua segunda obra, a primeira  tendo sido a Amorosa, partilhou trinta sonetos do seu caminho anímico e  coroa a capa da obra com um belo desenho de Martins Barata: um homem ajoelhado e evolando-se da concha da sua mão, à altura do seu coração, uma figura feminina, nua, perfeita, qual arcano XXI, o Mundo, no Tarot, sugerindo certamente o artista e a poetisa comendatária que o homem ao amar a mulher deve adorar o Divino Feminino nela, ou ainda fazer emergir o espírito nela, ou seja, o seu corpo espiritual, e assim expandirem as suas consciências e identidades e tentarem sentir a Unidade nos seus níveis mais elevados. 

                                       

A poetisa era bastante ousada para o meio conservador e burguês da época, que mesmo assim desabrochava numa grande libertação desde 1910 com a proclamação da República e que iria terminar com o advento do Salazarismo, e assim o seu sucesso foi muito grande com a sua primeira obra, a Amorosa, rapidamente esgotando edições.

Extraído do http://mulheresilustres.blogspot.com/2013/02/beatriz-delgado.html

 Mas ao publicar o Ritual do Amor recebe uma  crítica forte do médico e publicista, algo patriarcalista, Augusto Esaguy, que a considerou uma boneca superficial, fingindo e apenas desejosa de brilhar. Não era invulgar tal atitude crítica e algo amargurada dele, pois já em 1919 no seu livro Torturados lançava aceradas críticas, justificadas ou não, aos que tinham tido sucesso nas letras, nomeadamente a Baudelaire ("Esse Charles Baudelaire, cadavérico e pútrido, que passou a vida a fumar ópio, vertendo fel pelo mundo fora, foi um cínico, um nevrótico, um doido que usava coletes às riscas para aliviar o tédio (...) Com o coração endurecido e a alma esfarrapada pelo vício, Charlie Baudelaire, fez da sua vida uma tragédia sinistra", Júlio Dantas e a Albino Forjaz Sampaio, consagrando um capítulo a cada um. E no capítulo O Culto dos Grandes, partilha ainda certa visão lúgubre: «Ser consagrado, ter um nome feito pelos jornais e pela família, andar nas ruas como Afonso Lopes Vieira, olhar o céu como Júlio Dantas, usar capa e polainas como o Forjaz Sampaio ou farda como um senhor que corrói os ossos de Camilo, é ser grande, é o suficiente para se tornar notável nesta pequena Lisboa, sempre triste, montão de pedra e cal onde as almas pouco a pouco, se enegrecem.» Talvez por isso, ou contudo, o sucesso das sucessivas edições mostrava que havia muitas pessoas, sobretudo mulheres e jovens, que se identificavam com a energia fresca, amorosa e libertadora de Beatriz Delgado, e com efeito houve várias críticas elogiadoras da sua obra, embora com traços de alguma superioridade sobre os artifícios femininos, caso de Luís de Oliveira Guimarães, seja mais francamente apreciadoras, tal um A. D., ou ainda de Afonso Zuzarte Mendonça. 

Mais tardiamente, em 1935, um elogio bem valioso veio do membro da Academia das Ciências, o escritor Albino Forjaz de Sampaio   que na sua antologia As melhores páginas da literatura feminina, selecciona a Beatriz Delgado, enumera a sua bibliografia: Amorosa. 1921. Ritual do Amor, 1923, Sinfonia Pagã, 1925. Setas de Ponta de Ouro, 1925 e Meus Vícios, 1926, consagra-lhe quatro páginas com três dos seus poemas,  e apresenta-a assim: «Azougada, irrequieta, cheia de talento e de vida, assistimos à sua estreia e previmos o seu futuro. A cada livro seu, cada escândalo literário e cada êxito editorial. Poetisa de musa poliatenta à vida, também de mil maneiras sabe exteriorizar as suas impressões. E assim é poetisa, prosadora, escreve nos jornais crónicas leves e maliciosas, e faz conferências onde acha de bom tom fazer ouvir o encanto da sua voz. Ganhou notoriedade em Portugal, continuando-a no Brasil onde hoje vive.» 

                       

  Na revista ABC encontramos a confirmação das palavras de Forjaz Sampaio, por exemplo no anos de 1925 e 1926, nas colaborações argutas, bem ilustradas, divertidas, libertadoras de preconceitos e restrições machistas, tal esta ilustrada por Boixe, no número de 22 de Abril, em que se desvenda bastante vidente ou adivinhadora...

Bela, com voz melodiosa e atraente estreou-se como actriz no Politeama numa farsa de Lupino, O Homem do Papagaio, com grande sucesso, e depois  foi contratada para a revista (o que não foi muito bem visto). Veio a casar com o poeta Júlio Trindade e partiu para o Brasil onde, cremos, nunca mais publicou poesia, satisfeita no amor. Deixou a Terra já em 1993, com 93 anos. Na apresentação da Sinfonia Pagã, em 1925, já advertira audaciosamente da força de tal chama: «Depois da Amorosa e do Ritual do Amor, onde o amor é a fogueira que aquece todas as páginas, porque não cantar o amor das coisas e dos outros que é, também, o meu amor?
Sinfonia Pagã...
está bem o título! Pagão é todo o livro, pagã sou eu também. E se me faltam os bosques enfeitados de mirtos e as coroas de rosas para adornar os meus cabelos negros, tenho em compensação, na alma, um fauno mais belo do que todos os faunos mitológicos: o Amor!»

 Beatriz Delgado concluiu o seu Ritual do Amor, então com toda a  força dos 23 anos, que transparece na assinatura da dedicatória ao ilustre jornalista Avelino d'Almeida (de quem cataloguei a biblioteca para leilão...),  com uma justificação da sua poética,  intitulando-a Confidência: «Nos trinta sonetos que compõem este volume, procurei, ao sabor da emoção da hora que passou, - emoção algumas vezes intima e outras vezes assimilada por concepção - fixar, cantando, todas as tonalidades, todas as gamas, dos sentimentos que o Amor faz despertar nas almas dos que sentem...
E, assim, deixei esboçado u
m Ritual do Amor, do que sou impenitente sacerdotisa, apesar de não ser a protagonista de todos estes sonetos, que, por isso, não deixaram de ser igualmente sentidos e vividos...» 

Extraído do http://mulheresilustres.blogspot.com/2013/02/beatriz-delgado.html

Ora o primeiro dos trinta sonetos introduz-nos logo na sua intimidade anímica, nas suas mãos e olhos de alma intuitiva que, segurando na mão de alguém e, no caso de quem mais se ama, consegue sentir e antecipar auspiciosamente o futuro, uma boa ventura, buena-dicha...

Entremos então no Ritual de Amor de uma jovem Beatrice portuguesa, e oiçamos três dos seus mais luminosos ou mais intensos sonetos:

Buena Dicha

«Vejo na tua mão, nervosa e fina,
que existe uma mulher apaixonada,
que luta para ser a tua amada
com toda a astúcia feminina...»

Falei desta maneira ao ler-te a sina,
naquela tarde linda e perfumada
em que quiseste ver justificada
a sorte que o futuro te destina.

Podes acreditar no que te disse:
é tudo uma verdade o que predisse,
existe essa mulher que te ama assim.

Ouve agora, baixinho o meu dizer:
essa mulher ... sou eu, que quero ter
o teu amor inteiro para mim. »

Eis um soneto  que podemos senti-lo como se fosse connosco, ou junto a nós, pois mãos nas mãos, olhando a alma através da palma, discernindo as linhas energéticas delas,   o Amor inteiro, pleno e verdadeiro entre dois seres quer brotar, esse que alguns seres conseguem realizar e por ele se tornam cavaleiros e cavaleiras do Amor.

Oriental

Há sombras debruçando-se a meu lado,
como rastos subtis do mundo astral,
que formam, pouco a pouco, uma espiral
por onde sobe o pensamento alado.
 
Deitada, sobre um manto de brocado,
provoco, então, um sonho oriental,
sentindo a mirra a arder em ritual
e o litúrgico incenso a ser queimado.
 
E sonho, e vejo, todo o antigo Oriente
nessa expressão sagrada e indolente,
donde brotou Jesus e Madalena.
 
Porém, acordo sempre no meu Tempo
porque a visão se evola num momento
quando eu aspiro um pouco de Verbena.» 
 
Eis uma boa manifestação da ampla consciência da Beatriz Delgado que abrange na sua imaginação, amor e magia, o Oriente, o Médio Oriente e o Ocidente, trazendo à luz os rituais, os incensos, os perfumes, os amores, Jesus e Madalena mesmo, esta  indolente, e não impenitente amorosa, como Beatriz se afirmou na Confidência, tudo terminado e reintegrado com as energias da Verbena, uma planta com longa tradição sacra e mágica, desde Grécia e Roma (onde se espargiam os altares ou aras de Júpiter, Deus óptimo, com maceração dela) e até aos nossos dias. Uma planta que serve para poções de amor (pois era uma herbis veneris, venusiana), para a cura de feridas, para o esgotamento nervoso, dores de cabeça, garganta e pele. No contexto, Beatriz recomenda-a para estimular o funcionamento metabólico no plano físico, fazendo dissiparem-se sonhos e visões. 
Destaquemos finalmente a quadra inicial, com uma sensibilidade às energias e psico-morfismos dos mundos subtis que de sombras e rastos se transformam em espirais por onde a sua consciência com asas pode ascender a um plano subtil mágico, sagrado, de ampla visibilidade do que imagina ou aspira. Assim possamos estar nós mais conscientes das energias que emanamos e que nos envolvem ou dos movimentos espirálicos por onde nos podemos melhor elevar. 
Se ela apenas imaginava ou se conhecia e realizava mesmo a quiromancia, já que na época brilhava ao Chiado a transmontana Madame Brouillard (que mesmo Fernando Pessoa num diário de 1913 assinalava o desejo e tarefa de a consultar), ou se tinha era uma forte sensibilidade intuitiva do mundo astral, é certamente difícil de afirmarmos por hora... 
No soneto seguinte reintroduz-nos no amplo estuário do sonho e da realidade, profundo santuário do sentir e do "saber amar":
 
ANOITECER
Quem é que vem à noite, ao meu deitar,
cobrir-me de açucenas e de rosas?
Quem é que me segreda as amorosas
palavras de quem sente e sabe amar? 
 
Quem é que beija as minhas mãos nervosas
e os meus olhos cansados de chorar?
Quem vem a minha noite iluminar
com as visões de amor mais caprichosas?
 
Mas eu já sei quem é que me aparece
e que tem a doçura duma prece
quando vem afastar a minha dor.
 
É a visão mais bela que conheço...
és tu, meu bem, que sabes que padeço
e vens iluminar o meu amor.»
 
A magia da palavra que cura, que ora, que dissipa dores e trevas, a presença cheia de uma alma plena de amor e sensibilidade, capaz de irradiar e de cobrir quem ama com as mais belas e perfumadas flores, sabendo amar luminosamente o bem, o seu polo complementar, é neste soneto bem realçado pelas mãos inquietas  e os olhos sofridos.
Também a inquietação e aspiração amorosa pelo peregrino distante, o soneto seguinte nos transmite, quase que em mantras ou jaculatórias de voz baixinha mas fremente: 
 
Carta ao meu bem
Ó meu amor, ó meu amor ausente,
não te deixes ficar pelo caminho...
A minha boca diz, devagarinho,
as frases de quem ama e de quem sente.
 
Não as deixes perder... Dá-me o carinho
que o meu coração triste e sempre ardente
implora à tua alma, docemente,
como se fosse um triste pobresinho...
 
Eu não te quero, vê, somente amar;
quero que tudo seja em nós divino,
que o nosso amor atinja a eternidade!

Termino, ó meu amor, a soluçar
- e receando ser no teu destino
a flor que se desfolha sem piedade...»

Eis um soneto de grande humildade, de dádiva profunda ao ser amado, para que ele não se perca ou desvie e a abandone. Após as palavras mágicas de oração e invocação, o mais valioso é certamente o fogo ardente de plenitude de entrega recíproca total, aquela que torna momentos da vida manifestação ou espelho da unidade Divina e que robustece o enlace amoroso para uma durabilidade  quase infinita. Algo, nos dias de hoje, raro de ser sentido, desejado e vivido plenamente a não ser pelas raras sacerdotisas e cavaleiros do amor.
É de facto o receio final que mais se verifica: os seres não tem paciência anímica nem perseverança de aceitação amorosa e acabam por deixar partir um ou outro, mais ou menos ferido, mais ou menos entristecido. Mas o apelo e lema do mais alto objectivo do encontro entre dois seres foi bem lançado por Beatriz Delgado:

«Eu não te quero, vê, somente amar;
quero que tudo seja em nós divino,
que o nosso amor atinja a eternidade!»
 
Pintura dos mundos espirituais, eternos, plenos de amor, de Bô Yin Râ.

2 comentários:

Maria de Fátima Silva disse...

Que texto fabuloso texto de uma extraordinária cavaleira do Amor. Desconhecia, Beatriz Delgado. Muitas graças, Pedro, não só fiquei a conhecê-la como os seus poemas e as explicações do Pedro são inspiradores para o meu trabalho.

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas pela apreciação do texto e da vida e obra Beatriz Delgado, e votos de inspirações e comunhões luminosas!