Beatriz Delgado, no seu Ritual do Amor, dado à luz, em Lisboa, na Portugália Editora em 1923, a sua segunda obra, a primeira tendo sido a Amorosa, partilhou trinta sonetos do seu caminho anímico e coroa a capa da obra com um belo desenho de Martins Barata: um homem ajoelhado e evolando-se da concha da sua mão, à altura do seu coração, uma figura feminina, nua, perfeita, qual arcano XXI, o Mundo, no Tarot, sugerindo certamente o artista e a poetisa comendatária que o homem ao amar a mulher deve adorar o Divino Feminino nela, ou ainda fazer emergir o espírito nela, ou seja, o seu corpo espiritual, e assim expandirem as suas consciências e identidades e tentarem sentir a Unidade nos seus níveis mais elevados.
A poetisa era bastante ousada para o meio conservador e burguês da época, que mesmo assim desabrochava numa grande libertação desde 1910 com a proclamação da República e que iria terminar com o advento do Salazarismo, e assim o seu sucesso foi muito grande com a sua primeira obra, a Amorosa, rapidamente esgotando edições.
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Mas ao publicar o Ritual do Amor recebe uma crítica forte do médico e publicista, algo patriarcalista, Augusto Esaguy, que a considerou uma boneca superficial, fingindo e apenas desejosa de brilhar. Não era invulgar tal atitude crítica e algo amargurada dele, pois já em 1919 no seu livro Torturados lançava aceradas críticas, justificadas ou não, aos que tinham tido sucesso nas letras, nomeadamente a Baudelaire ("Esse Charles Baudelaire, cadavérico e pútrido, que passou a vida a fumar ópio, vertendo fel pelo mundo fora, foi um cínico, um nevrótico, um doido que usava coletes às riscas para aliviar o tédio (...) Com o coração endurecido e a alma esfarrapada pelo vício, Charlie Baudelaire, fez da sua vida uma tragédia sinistra", Júlio Dantas e a Albino Forjaz Sampaio, consagrando um capítulo a cada um. E no capítulo O Culto dos Grandes, partilha ainda certa visão lúgubre: «Ser consagrado, ter um nome feito pelos jornais e pela família, andar nas ruas como Afonso Lopes Vieira, olhar o céu como Júlio Dantas, usar capa e polainas como o Forjaz Sampaio ou farda como um senhor que corrói os ossos de Camilo, é ser grande, é o suficiente para se tornar notável nesta pequena Lisboa, sempre triste, montão de pedra e cal onde as almas pouco a pouco, se enegrecem.» Talvez por isso, ou contudo, o sucesso das sucessivas edições mostrava que havia muitas pessoas, sobretudo mulheres e jovens, que se identificavam com a energia fresca, amorosa e libertadora de Beatriz Delgado, e com efeito houve várias críticas elogiadoras da sua obra, embora com traços de alguma superioridade sobre os artifícios femininos, caso de Luís de Oliveira Guimarães, seja mais francamente apreciadoras, tal um A. D., ou ainda de Afonso Zuzarte Mendonça.
Mais tardiamente, em 1935, um elogio bem valioso veio do membro da Academia das Ciências, o escritor Albino Forjaz de Sampaio que na sua antologia As melhores páginas da literatura feminina, selecciona a Beatriz Delgado, enumera a sua bibliografia: Amorosa. 1921. Ritual do Amor, 1923, Sinfonia Pagã, 1925. Setas de Ponta de Ouro, 1925 e Meus Vícios, 1926, consagra-lhe quatro páginas com três dos seus poemas, e apresenta-a assim: «Azougada, irrequieta, cheia de talento e de vida, assistimos à sua estreia e previmos o seu futuro. A cada livro seu, cada escândalo literário e cada êxito editorial. Poetisa de musa poliatenta à vida, também de mil maneiras sabe exteriorizar as suas impressões. E assim é poetisa, prosadora, escreve nos jornais crónicas leves e maliciosas, e faz conferências onde acha de bom tom fazer ouvir o encanto da sua voz. Ganhou notoriedade em Portugal, continuando-a no Brasil onde hoje vive.»
Na
revista ABC encontramos a confirmação das palavras de Forjaz Sampaio,
por exemplo no anos de 1925 e 1926, nas colaborações argutas, bem ilustradas, divertidas,
libertadoras de preconceitos e restrições machistas, tal esta ilustrada por Boixe, no número de 22 de Abril, em que se desvenda bastante vidente ou adivinhadora...
Bela,
com voz melodiosa e atraente estreou-se como actriz no Politeama numa
farsa de Lupino, O Homem do Papagaio, com grande sucesso, e depois foi
contratada para a revista (o que não foi muito bem visto). Veio a casar
com o poeta Júlio Trindade e partiu para o Brasil onde, cremos, nunca mais
publicou poesia, satisfeita no amor. Deixou a Terra já em 1993, com 93 anos. Na apresentação da Sinfonia Pagã, em 1925, já advertira audaciosamente da força de tal chama: «Depois da Amorosa e do Ritual do Amor, onde o amor é a fogueira que aquece todas as páginas, porque não cantar o amor das coisas e dos outros que é, também, o meu amor?
Sinfonia Pagã... está bem o título! Pagão é todo o livro, pagã sou eu também. E se me faltam os bosques enfeitados de mirtos e as coroas de rosas para adornar os meus cabelos negros, tenho em compensação, na alma, um fauno mais belo do que todos os faunos mitológicos: o Amor!»
Beatriz Delgado concluiu o seu Ritual do Amor, então com toda a força dos 23 anos, que transparece na assinatura da dedicatória ao ilustre jornalista Avelino d'Almeida (de quem cataloguei a biblioteca para leilão...), com uma justificação da sua poética, intitulando-a Confidência: «Nos trinta sonetos que compõem este volume, procurei, ao sabor da emoção da hora que passou, - emoção algumas vezes intima e outras vezes assimilada por concepção - fixar, cantando, todas as tonalidades, todas as gamas, dos sentimentos que o Amor faz despertar nas almas dos que sentem...
E, assim, deixei esboçado um Ritual do Amor, do que sou impenitente sacerdotisa, apesar de não ser a protagonista de todos estes sonetos, que, por isso, não deixaram de ser igualmente sentidos e vividos...»
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Ora o primeiro dos trinta sonetos introduz-nos logo na sua intimidade anímica, nas suas mãos e olhos de alma intuitiva que, segurando na mão de alguém e, no caso de quem mais se ama, consegue sentir e antecipar auspiciosamente o futuro, uma boa ventura, buena-dicha...
Entremos então no Ritual de Amor de uma jovem Beatrice portuguesa, e oiçamos três dos seus mais luminosos ou mais intensos sonetos:
Buena Dicha
que existe uma mulher apaixonada,
que luta para ser a tua amada
com toda a astúcia feminina...»
Falei desta maneira ao ler-te a sina,
naquela tarde linda e perfumada
em que quiseste ver justificada
a sorte que o futuro te destina.
Podes acreditar no que te disse:
é tudo uma verdade o que predisse,
existe essa mulher que te ama assim.
Ouve agora, baixinho o meu dizer:
essa mulher ... sou eu, que quero ter
o teu amor inteiro para mim. »
Eis um soneto que podemos senti-lo como se fosse connosco, ou junto a nós, pois mãos nas mãos, olhando a alma através da palma, discernindo as linhas energéticas delas, o Amor inteiro, pleno e verdadeiro entre dois seres quer brotar, esse que alguns seres conseguem realizar e por ele se tornam cavaleiros e cavaleiras do Amor.
Oriental
como rastos subtis do mundo astral,
que formam, pouco a pouco, uma espiral
por onde sobe o pensamento alado.
Também a inquietação e aspiração amorosa pelo peregrino distante, o soneto seguinte nos transmite, quase que em mantras ou jaculatórias de voz baixinha mas fremente:
2 comentários:
Que texto fabuloso texto de uma extraordinária cavaleira do Amor. Desconhecia, Beatriz Delgado. Muitas graças, Pedro, não só fiquei a conhecê-la como os seus poemas e as explicações do Pedro são inspiradores para o meu trabalho.
Graças muitas pela apreciação do texto e da vida e obra Beatriz Delgado, e votos de inspirações e comunhões luminosas!
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