sexta-feira, 18 de novembro de 2022

O Atman, o espírito, o eu, em algumas das Upanishads.

                         Desenho da estrela do espírito pelo notável mestre alemão Bô Yin Râ.

     A palavra sânscrita Ātman,  da raiz, an-, respirar, sopro, recebeu ao longo dos séculos como significados o eu pessoal, o eu sou, o si próprio, o ser em si, a mente,  a alma, o Espírito, o Espírito Divino, e o conhecimento desta multidimensional realidade íntima e em certos níveis última foi e é um dos principais fins ou objectivos dos sábios e videntes da tradição indiana ou dos que a estimam e trabalham. 

Os filósofos, yogis e místicos não-dualistas considerma que há só um Espírito, Divino, chamado tanto Ātman como Paramātman,  Brahman, Purua, e os eus individualizados (jīvātman) não passam de identificações transitórias e logo mais ou menos ilusórias, sobretudo se não corporizando o espírito. As escolas ou visões tradicionais dwaitas aceita  a dualidade(com diferença, ou com e sem diferença) entre o Espírito absoluto e o Espírito individual pois há uma infinidade de Espíritos, atman, ou jivatman, centelhas imortais e eternas. 

A realização deste conhecimento libertador deste Ātman, seja transpessoal seja pessoal, é o sumum bonum, o sumo bem, dos darśanas, as escolas ou sistemas filosóficos espirituais e teístas, sendo denominado Ātmajñāna ou Ātmavidyā, o conhecimento de Ātman, ou ainda Mokṣa, a libertação.

A sua conceptualização ao longo de uma evolução milenar, complexa de se rastrear pelo muito tempo de mera transmissão oral e pela não datação dos textos mais antigos, vai desde as significações primárias, expostas nos mais antigos textos sagrados, os Vedas (cerca de 1.500 a. C.), de respiração ou sopro vital, ou um eu corporal, passando depois para significar a alma individual e, por fim, o Espírito imortal, tanto individual como universal.

 Este desenvolvimento é mais patente nas Upanisad, ou Upaniṣhadas, textos cujo título significa "aprendido junto ao  mestre", ou "instrução do aluno pelo mestre" provindas  em geral  de membros da casta guerreira que ensinaram este conhecimento do Espírito, do Eu em si, aos sacerdotes, que eram mais sacrificadores aos deuses védicos do que yogis e místicos pesquisadores da psique humana. Encontramos então nas 108 Upanishadas conhecidas muitas especulações e intuições valiosas e subtis, embora nem sempre concordantes.  Este primeiro texto  vai basear-se em algumas de tais afirmações  das Upanishadas, boas portanto para reflexão e meditação.

Por exemplo, a Kauṣītaki Upaniṣad, IV. 20, descreve o princípio experimentador puro, Ātman, dum modo muito prático e experimental, que deveríamos praticar, sentir, realizar : «este Ser consciência-inteligência (prajñātman) está no corpo, como Eu, dos cabelos até à ponta das unhas, assim como a lâmina está na bainha, ou o fogo na lareira».

Na Katha Upaniṣad, II. 20, afirma-se: «Ātman, o mais subtil dos subtis, o maior dos maiores, está assente ou oculto  no coração (ou gruta interior) dos seres.» E podemos assim de certo modo distinguir, em analogia com a física moderna, a 1ª descrição do Espírito como onda desta 2ª como partícula

Não é fácil contudo as pessoas estabilizarem-se no Atman e por isso mesmo a  Katha, afirma em seguida II, 23 a ideia da Graça, da gratuitidade, do Amor divino: «Este Atman não pode ser alcançado pela reflexão sobre os ensinamento védico, nem pela meditação, nem pela audição dos textos sagrados. Quem quer que este Espírito ou Atman escolhe, por esse só ele é atingido. A tal pessoa o Atman revela a sua própria forma.» Claro que com isto não se recomenda que não se medite, mas apenas que não há causalidades automáticas e que o Espírito, e os seus elos, sabem quando o peregrino ou peregrina deve ser abençoado.

No início da Aitareya Up. I. 1,  há uma visão grandiosa dos primórdios: «Atman só era tudo o que havia no começo. Nada mais havia. Então ele decidiu: Vou emanar ou criar os mundos (Sa ikshata lokannu stiji ita).» E logo se caracterizará o Atman como prajnana, como consciência, cabendo à consciência humana do Atman individual alcançar tal Consciência suprema pelo seu trabalho e graça. 

Na Brihadarankaya Upanisad, recentemente bem traduzida entre nós pelo António Barahona da Fonseca, há um passo de metodologia da gnose átmica ou monádica valiosa (II, 4.5): «O Eu, sem dúvida, deve ser visto, deve-se ouvir falar  dele (sravana), deve-se reflectir sobre ele (manana, até se estar convicto) e deve-se meditá-lo (nididhyasana). E o Atman torna-se conhecido (vijnana) pelo ver, ouvir, reflectir e meditar  sobre ele». 

Este conhecimento vijnana nasce portanto de um esforço prolongado por compreender o atman até que, pela consciência mais sensibilizada e pela meditação com amor se consegue percepcioná-lo interiormente, o que certamente dependerá ainda, como já foi referido, da graça de Ele próprio, Atman kripa, Ele seja o espírito interior seja a própria Divindade Espírito por toda uma subtil infinidade de transmissões e raios, acerca da qual ao longo dos séculos muitas visões e teorias se ergueram realçando a existência de uma hierarquia, mantendo-se a possibilidade da Graça directa, ainda que o discernimento sobre estes difíceis seja por raríssimos alcançada.

  Bem famoso e mais subtil do que parece é outro passo da Brihadarankaya Upanishad (IV. 5, 6): «O marido é sem dúvida querido, não por causa de se desejar do marido, mas por causa de  se desejar o Atman... Nenhum objecto é querido por causa de ser desejado, mas por causa do desejo do Atman». 

A questão que surge é na maioria das pessoas deseja-se mais as aparências mas que são sensiveis e palpávéis do que as essências bem mais subtis. O famoso filósofo místico vaishnava Ramanuja, o fundador do Visistadvaita, Não dualismo modificado, discernirá e bem que é o desejo ou vontade do Atman supremo, sobretudo se temos para com ele devoção-amor, que empresta a capacidade de atração que os objectos que nós gostamos têm sobre nós, em proporção não do nosso amor pelos objectos ou seres mas pelo que temos ao Espírito supremo, de tal modo que por tal entrega ao Divino também o mundo e os seus seres e coisas se nos apresentarão ou oferecerão mais em beleza e harmonia. 

É uma ideia valiosa de ser trabalhada e que está presente naqueles que sentem e realçam muito a gratidão. Mas se  todos nós conseguíssemos olhar para o que nos rodeia ou temos e vermos em tudo isso o Espírito divino brilhando, e de um modo ou doutro, estaríamos muito mais despertos e intensificados espiritualmente. Abra os olhos e sinta na vela que arde, no sol que nasce ou se põe ou no objecto que gosta:  o que da Divindade pode intuir ou chegar até si...

 Nestes tempos de tantas manipulações e opressões, votos de boas reflexões ou cogitações e em seguida mais interiorizadas e sentidas meditações no seu atman ou espírito, com aspiração e amor-devoção, bhakti prema, pelo Atman primordial, a  Divindade, por qualquer nome que a conheça, invoque, cultue ou ame..

Mostra, demonstra e alegra o Caminho...

1 comentário:

Anónimo disse...

Acabei de ler sobre Advaita Vedanta ,quando me deparei com este seu texto.
Acrescentou-me, como sempre,nesta peregrinação interna.
Agradeço,e em especial,retribuindo de igual modo,o último parágrafo que subscrevo.
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