domingo, 13 de novembro de 2022

"Alma minha gentil..., de Camões, e de Maria da Silva Vieira, nas "Violetas Dispersas", de Esposende. In Memoriam.

O soneto Alma minha gentil, de Camões, é dos mais valorizados e glosados embora haja muitos outros poemas  tão belos e até mais agraciados  pelo conhecimento e o amor.   Observamos nele uma aceitação da fatalidade da morte que separa os amantes, suplantada contudo pela certeza da continuidade da vida individualizada nos mundos etéreos e portanto pela existência de eflúvios, laços ou canais comunicativos entre as duas almas amantes afastadas fisicamente, e que pedem à Divindade para serem de novo reunidas.

«Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
 
[Comentário: Partida, elevou-se a alma, triste da separação, na terra sofre um coração. Tua gentileza esteja activa, e a mim me inspire, para te alegrar e continuar.]

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
[Se raios de amor cruzam mundos, se a memória se conserva, lembra-te do nosso amor, que ele nos una no seu fogo e luz.]

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
[
O sangue que escapa do coração ferido, como mezinha luminosa, fará o Amor aumentar?]

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.»
[Que a vontade divina nos una no etéreo mundo espiritual, doce campo das almas afins.]

Após a transcrição do poema e dum breve comentário meu, saltando quatrocentos séculos de leitores, comentadores e poetizadores do soneto, alguns bem famosos, vamos deter o voo da história no final da segunda década do século XX, em Esposende.

                                     

Entre  quem poetizou, e viveu mesmo tal drama duplamente, está uma jovem poetisa, hoje quase ignorada, Maria da Silva Vieira,  à qual podemos ter acesso apenas graças a seu pai, José da Silva Vieira, ter em 1929 dado à luz na Tipografia Espozendense os seus versos (vários já publicados em jornais regionais) sob o título Violetas Dispersas, e do qual recebi um exemplar assinado, creio, pela irmã.

                                      

Contém um sentido e tocante prefácio, intitulado mesmo In Memoriam, pelo professor e escritor Manuel Cardoso Marta (1882-1958), pois o pai e organizador da edição um dia viera visitá-lo e «me apresentava a filha que sobre tudo amava, trazendo na mão incerta um ramalhete de rimas - avesinha a ensaiar  os primeiros voos e primeiros gorgeios./ Li os versos. Através das incorrecções da principiante - erros de técnica, ingenuidade pueris, redacção não raro descuidosa - rastreei um fiozinho de sentimento muito feminino, uma simplicidade, uma delicadeza espiritual que me encantaram. Ali não havia literatura. Era o perfume da mulher que sai da meninice e sente, exuberante da seiva, abrir-se-lhe a vida diante dos olhos - o que se desprendia daqueles versos, por vezes sem metro nem harmonia».

E assim começara a cartear-se com a jovem poetisa, aconselhando-a na arte poética que ela balbuciava com os seus 16 anos e que, face à fotografia que ela lhe oferecera, embora nunca tivesse encontrado, escreve para esta memória: «Descubro-lhe no olhar, que tem a claridade da adolescência e a limpidez de uma alma bela, um não sei quê de vaga tristeza e de angústia»... Uma alma de intensa sensibilidade e de imenso amor, tragicamente desiludida, diremos, Lux, Amor, Aum!

Eis então o poema da gentil alma da Maria da Silva Vieira, por desilusões amorosas e algumas mortes, tão cedo atraída e levada para as etéreas dimensões:

«ALMA MINHA GENTIL,
QUE TE PARTISTE...»

                                                     À memória de meu querido irmão Daniel da Silva Vieira.

«Num pequeno caixão, de flores recamado,
Adormeceu p'ra sempre um ente estremecido
Cravo que feneceu, mal que fora nascido
E que nasceu p'ra ser do nosso amor cercado.
 
Chamava-se Daniel o meu irmão querido,
Que a morte me levou e Deus tem ao seu lado.
O que serias tu? Um poeta? ou um soldado?
Tudo podias ser, se acaso tens vivido.
 
Confrange-se-me agora o pobre coração
Lembrando-me que um dia, exausta de viver,
Deus me há-de marcar a hora da partida.
 
E então irei a ti, ó meu saudoso Irmão,
Pondo termo na terra à dor do meu sofrer
Para viver contigo a glória doutra vida.»
1913.

Os poemas da Maria Vieira contidos na antologia cantam o fluir da vida na aldeia, nos trabalhos do campo, no mar, no coração, na escola, na sociedade na 1ª grande Guerra e mostram-nos uma alma de sensibilidade imensa, quase que predestinada para a desilusão, o sofrimento e a morte, sentindo muito facilmente as dores desde mundo transitório, por vezes tão enganador. O seu irmão morrera em criança, uma grande amiga suicidou-se e em seguida aconteceu a trágica desilusão do seu amor e assim, desejosa de reunir-se ao irmão e à amiga, partiu voluntariamente.  

Não podemos deixar de relacioná-la, além de Luís de Camões ao glosá-lo, com Soares dos Passos e Antero de Quental, tanto pela repulsão e atração pela morte, a desilusão da vida e do amor, embora sentindo este fortemente, e o abandonar precoce e voluntariamente a vida terrena. Os poemas Morte Súplica mostram o anseio forte que a morte venha libertá-la do sofrimento e devolvê-la ao mundo espiritual, à sua ligação com Deus. Que substractos anímicos lhe permitiriam assim tão cedo desprender-se da vida corporal terrena? Os exemplos de Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco e de Antero de Quental, em 1889, 1890 e 1891, terão contribuído? Mistérios, que hoje repousarão mais serenos na sua intimidade pura e imensa sensibilidade...


Valiosas são as sensações e interrogações, ousadas numa jovem de dezassete anos, sobre a morte, o suicídio, o julgamento de Deus e a vida no além que irrompem no poema Saudades, "à grata memória da minha amiga Maria da Cunha Torres", e que se passa junto à campa dela, onde foi depôr «um gracioso bouquet de lindas rosas, (...) rescendendo perfumes, odorosas». E chorando, «murmurei ardentes preces. E ao Senhor roguei clemência se a tua alma está penando.

Mas que ideia! Como é que pode estar
sofrendo a punição na mão de Deus,
se foste sempre um anjo modelar,
amor sabendo apenas inspirar
a todos os estranhos e aos teus?»

Também no soneto Dormir... Sonhar ecoa algo da beleza, tristeza e sonho de descanso eterno na mão de Deus cultivado por Antero de Quental, e eis o soneto completo, uma quase oração a Morfeu, ou à Noite imensa e seu manto estrelado e sossegador: 

Se a cabeça pousamos, abatida
Desta luta e insanas convulsões
No colo de Morfeu, lindas visões
Nos povoam a mente adormecida.

Voámos a sonhar, às vastidões
Do Além, que desconheces, minha vida,
Um louco sonho, a quem demos guarida -
Tantas vezes desfeito em ilusões!
 

A cabeça, Morfeu, vou reclinar
No colo teu. Os olhos vou fechar,
Teu manto sobre mim vem estender.

E depois, não me acordes de repente!
Deixa, deixa dormir eternamente
Este corpo cansado de sofrer!»
Desejemos e oremos que estas almas gentis que já partiram para os etéreos assentos, ou dimensões subtis, possam nelas viver luminosamente, talvez mesmo já como espíritos celestiais individuados e bem despertos, e estabeleçam connosco alguma relação, unindo extremidades da vida, sob as bênçãos divinas, as quais invocamos muito em especial sobre Luís de Camões, Antero de Quental, Cardoso Marta e em especial na Maria Vieira e sua família e amigas!... Lux, Amor!

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