sábado, 11 de setembro de 2021

Antero de Quental, S. Francisco de Assis, Tommaso Cannizzaro, o panpsiquismo e o caminho do Bem. Nos 130 anos da morte de Antero.

                                         
A admiração de Antero de Quental por S. Francisco de
Assis e a sua obra está assinalada em algumas cartas do seu vasto epistolário e em especial em duas dirigidas ao poeta siciliano, crítico literário e tradutor dos seus sonetos Tomazzo Cannizzaro (1838-1921). Na primeira, datada de 24 de Junho de 1886, diz-lhe «vou publicar o meu último (último e derradeiro) volume de versos, sendo a colecção completa dos meus Sonetos, colecção por assim dizer cíclica, pois abrange o período inteiro da minha evolução intelectual  sentimental, desde 1860 a 1880. Não sei o que poderá valer como arte; mas, em todo o caso, valerá  como um documento psicológico, como "as memórias duma consciência" neste nosso período tão tormentoso e confuso. Tomei a liberdade de dedicar a Você um daqueles Sonetos, para que dure, enquanto o livro durar, a memória do fraternal encontro dos nossos dois espíritos. O volume recebe-lo-á Você talvez antes do fim de Julho.
E, antes de m
e despedir, vou pedir-lhe uma informação, e é se existe alguma edição acessível das Poesias italianas de São Francisco de Assis, de que só conheço uma por Você publicada; mas o que sobre essas Poesias dizem o Taine na sua Voyage en Italie e o Ozanam no seu estudo Sur les poètes Franciscains estimula-me muito a lê-lo no original.
E adeus, meu caro poeta. Disponha de mim e creia que, ainda quando deixo passar muitos meses sem lhe escrever, a sua lembrança me é sempre presente.
Do seu amigo - Muito do coração
Anthero de Quent
al.»
                                       
Tomazzo Cannizzaro
Será a 5 de Setembro de 18
86, de Vila do Conde, que Antero de Quental responderá a agradecer os livros que Tommaso Cannizzaro entretanto lhe enviara e dá alguns ecos filosófico-espirituais da sua visão de S. Francisco de Assis agora bastante mais directa:

«Há dias recebi os excelentes livros que teve a grande bondade de me mandar, e quase não tenho feito outra coisa senão lê-los. Poucas fisionomias há para mim tão interessantes, quer histórica quer psicologicamente, como a de Francisco de Assis.
Considero-o como o primeiro dos precursores do espírito moderno, digo, o espírito moderno como representado por [Giordano]Bruno, Schelling e [Edward von] Hartmann, do Panteísmo espiritualista. Neste ponto de vista haveria um paradoxo (no fundo nada paradoxal) a desenvolver, que São Francisco de Assis não fora cristão; e a fazer sobressair o contraste entre a sua concepção do mundo e da vida, toda ela dum optimismo poético e panteísta, e a trágica e sombria concepção pessimista da Igreja, de um mundo radicalmente mau e condenado
por Deus. É claro que S. Francisco se julgava cristão: mas estou referindo-me não ao que ele julgava ser, mas ao que efectivamente, embora inconscientemente, era e representava na evolução do pensamento e do sentimento humano na Idade Média. É este um ponto de vista que mais de uma vez me tinha ocorrido, e que a leitura dos livros, que me mandou, em mim renovou, confirmando-o.»
                                        
Realçaremos neste artigo antes de mais a valiosa tentativa de peren
izar a amizade e fraternidade  com Tommazo Canizzaro: «Tomei a liberdade de dedicar a Você um daqueles Sonetos, para que dure, enquanto o livro durar, a memória do fraternal encontro dos nossos dois espíritos.» É como que um momento de auto-consciencialização perenizante e que nos chega ainda hoje a nós seus leitores, na fraternidade dos fiéis do Amor. E que pena não ter peregrinado a Itália, tal como aspirara em Janeiro de 1866, ao querer alistar-se nas tropas autonomistas de Garibaldi, e desafiando para tal António de Azevedo Castelo Branco, quão frutuosa teria sido tal osmose com Florença, Roma e Assisi, tal como ele aliás deixa escrito:« Creio ser esta para nós uma boa ocasião de sairmos do absurdo sopa-vaca e arroz da vida ordinária. Queres ir? Un bel morir tutta la vida onora (...) Tudo isto não é incompatível com o bom senso, ainda que o pareça um pouco. Podemos estudar, ver, pensar: há bibliotecas em todas as cidades italianas; e espero que se encontrem homens...»   Bem profética a rima de Petrarca: Un bel morir tutta la vida onora (...)

A segunda  consideração que realçaremos é a sua visão de S. Francisco de Assis como um precursor da Humanidade moderna, pelo seu panteísmo místico,  ou panteísmo espiritualista, estado consciencial fundamental, a que fará corresponder  noutros textos, "a fé na espiritualidade latente mas fundamental do universo" ou ainda o "panpsiquismo", que ele tanto valorizava e demandava filosoficamente,  discernindo assim na  grande sensibilidade à natureza e à fraternidade dos seres em S. Francisco de Assis sinais desta unidade entre a realidade natural e a espiritual e, segundo Antero, bem mais presente no paganismo do que na Igreja, algo que S. Francisco de Assis inconscientemente (ou supraconscientemente) saberia e seguiria...
                                                    
Numa carta dirigida um mês depois a Carolina Michaelis, quanto a "influências" cristãs propostas por ela para os seus sonetos Redenção e
Contemplação, responde-lhe como bom conhecedor do seu caminho: «Conheço, com efeito, o chamado Hino ao Sol do maravilhoso poverello de Assis e igualmente li alguma coisa das Epístolas de São Paulo; mas com tudo isso, a concordância que V. Ex.ª encontrou não pode ser senão fortuita, ou antes filha dum estado de sentimento análogo ao daqueles dois grandes místicos. Juntamente aqueles dois sonetos («Redenção»), juntos com outros («Contemplação»), representam em forma de imagem e sentimentalmente uma das ideias fundamentais da compreensão das coisas, a que cheguei e em que fiquei, e que espero ainda desenvolver em prosa e com o rigor da exposição filosófica (...),» o que Antero redige em 1890  para a Revista de Portugal, sob o título As Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, embora não na forma completa e perfeita que desejaria...

É grato aos portugueses nestes tempos que filosoficamente a unidade entre a matéria-energia e a informação-pensamento cada vez mais está a ser comprovada por investigadores e cientistas, denominando-a ora panpsiquismo, ora monismo relativo, ora campo unificado de energia consciência, observarmos que já no final do séc. XIX Antero de Quental podia anunciar sem exagero que antevia a bússola da direcção do desenvolvimento filosófico e espiritual da Humanidade e que para tal contribuía, tentando mesmo chegar «até àquela profundidade de compreensão do "homem interior" a que os místicos chegaram», como dirá em carta de XI-1886 ao tolstoiano e vegetariano discípulo seu Jaime de Magalhães Lima, dizendo ainda «Quem vai na frente é o santo, filósofo a seu modo como o são, e homem de acção por excelência, por isso que a sua acção é toda no sentido do bem», concluindo, da regra de S. Bento, com o «labora et noli contristari», citação que transcrita completamente seria "ora, labora et noli contristari in laetitia pacis", "reza, trabalha e não te entristeças na alegria da paz". E sabemos ainda como Antero de Quental foi um franciscano no seu modo de vida simples, sóbrio e em frequente comunhão com a Natureza.

Possam Antero de Quental, Tommaso Canizarro, Carolina Michäelis, António de Azevedo Castelo Branco, Jaime de Magalhães Lima e S. Francisco de Assis estarem em paz e alegria nos mundos espirituais mais luminosos (em baixo numa pintura de Bô Yin Râ) e inspirarem-nos a trilhar firmemente o caminho da verdade e do bem, da compaixão fraterna e do amor, e da Divindade...

De Bô Yin Râ.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Tolstoi, "O que eu vi em sonho". Resumo do conto, e um vídeo sobre Tolstoi, Jaime de Magalhães Lima e Antero de Quental.

O que eu vi num Sonho, é um título que num conto abre infinitas possibilidades de enredo, e cada um antecipará o que mais rapidamente lhe aflui na intercomunicação neuronal e anímica: ora viagens, ora visões, ora futuros desvendados. Mas se soubermos que o seu autor é Leão Tolstoi então teremos de preparar-nos para sermos completamente ultrapassados pela sua criatividade literária genial, simultaneamente realista e emocionante, moralista e doutrinária, amorosa e religiosa. 

A obra no original intitulava-se Meu Sonho, e fora escrita por Tolstoi (1828-1910) já no fim da sua peregrinação terrena, a 13 de Novembro de 1906, em Isnaia Poliana, e a tradução por Jaime de Macedo, certamente do francês onde recebeu este título, nos anos 20, está antecedida por uma biografia inicial sóbria, e foi impressa num in-12º de 30 págs., no olisiponense e alfarrabista Largo do Calhariz, para as Edições Delta. O sonho ou história é esta: um nobre queixa-se a um seu irmão, governador no centro da Rússia, da desgraça da sua filha ter partido de casa há um ano e saber agora que teve um filho de um estrangeiro e estar a viver numa cidade distante, o que o humilha e o dilacera. Será Alexandra, a mulher do irmão, bondosa e despretensiosa, que de noite virá falar com ele, e pedir-lhe: "Tende dó dela". Mas Miguel Ivanovich não quer saber mais da filha Lisa, apenas que tenha o dinheiro suficiente, o que de novo leva Alexandra a contra-atacar tentanto converter, humanizar, dulcificar o frustrado e irado pai: «Ide lá vós próprio. Apenas para ver como ela vive. Se não a quereis encontrar, seguramente não a encontrareis. Ela não estará lá. Não haverá lá ninguém.»

Tolstoi manobra bem a emoção que mais faz vibrar e chorar, a compaixão, e acrescenta-lhe mesmo os poderes extra-sensoriais que potencialmente temos e que se merecermos realizaremos, no caso sugerindo que só acontecerá o que ele verdadeiramente quiser. É invocado algo da fé e da entrega à providência Divina,  tão típica dos povos da Rússia.

Deixando Miguel Ivanovich na roda livre das associações neuronais nocturnas, que em certas pessoas se tornam obsessivas, e sobre elas latejando  condenações morais, tal como as mulheres não serem puras ao comprazerem-se em serem desejadas, como observara na sua filha e em bailes, ou como fora frívola no tratamento dum jovem e se divertia superficialmente em Petersburgo, esta relação com um estudante sueco na Finlândia era o fim: já não se considerava pai, embora à repulsão que sentia se juntasse o enternecimento das memórias que  afloravam de quando ela era uma jovenzinha muito carinhosa...

O segundo capítulo ou quadro vai servir a Tolstoi para, depois de descrever o valor e poder do Amor, apresentar a evolução de Lisa e o seu sofrimento, pois já em Petersburgo constatara «o vácuo da sua vida (...) como se divertia apenas com a vida animal, exterior, com exclusão de toda a vida interior», e como, para fugir disso, partira para a Finlândia, para a casa de uma tia, onde encontra um jovem escritor sueco e, na bela e vivenciada descrição de Tolstoi, «começa esse perigoso contágio dos olhares, dos sorrisos, cujo sentido se não pode exprimir por palavras, porque as ultrapassa todas. Esses olhares e esses sorrisos desvendavam a um e ao outro as suas almas e não somente as suas almas mas os mistérios graves, importantes, comuns a toda a humanidade. Por causa desses sorrisos cada uma das suas palavras recebia uma significação mais profunda»... Depois vem porém a desilusão, pois o jovem já fora casado e não a queria, o que a leva a sentir-se cair num abismo para o qual o suicídio poderia ser a solução. Mas subitamente sente que engravidou e logo ressuscita, para ao menos ser mãe, ainda que infeliz, sobretudo por ferir o pai que tanto amava.

Será no terceiro e último capítulo que Tolstoi, com a sua mestria de causar nos leitores empatias intensas, vai aproximar os dois seres, descrevendo os sofrimentos interiores em que se encontram, o amor que os move e as conversões que terão de efectuar.

 Vemos então Miguel Ivanovich resolver-se a ir visitar a filha e, quando ela regressa de umas compras, e depois de já ter ouvido chorar no quarto ao lado a criança, dá-se o choque catártico, ela escanzelada e ele sentindo que o seu orgulho e amor-próprio feridos nada são perante o amor e o dó de pai. É certamente a cena mais emotiva do livrinho: a filha a suplicar perdão e o pai a realizar que é ele próprio quem tem de o pedir, e vê derreter-se todo o seu orgulho nos beijos que dá a filha. É uma cena quase épica, talvez porque Tolstoi tenha conseguido tornar história que terá tantas vezes acontecido ao longo dos séculos, um arquétipo, uma obra imortal, que vive no mundo imaginal, e quem quer que a leia vai sentir as forças divinas do perdão, da compaixão e do amor, tão importantes são na vida humana. E como recomeçar a vida mais harmoniosamente...

São todavia interrompidos pela criança a chorar, pedindo de mamar, e ele, constrangido, despede-se, dizendo-lhe: «-Vai, vai, que Deus seja louvado. Amanhã voltarei e decidiremos. Até à vista, minha querida, até à vista. - E de novo ele sustinha com esforço os soluços que lhe subiam na garganta.»

O fim vem rápido e nem sequer cor de rosa, pois Tolstoi escreve tanto para a Rússia do começo do séc. XX como para o futuro, pois os efeitos de certos preconceitos e forças de pressão  persistirão até aos nossos dias:  «Miguel Ivanovich perdoou completamente e venceu todo o seu receio da opinião pública.   Instalou a filha em casa da irmã de Alexandra Dimitriévna, que morava no campo, e vi-a como antigamente, e passava épocas em casa dela. Mas evitava ver a criança e não podia vencer o sentimento de repugnância que ressentia por ela, o que era para a filha uma causa de sofrimentos».

Reflectiria ainda Leão Tolstoi neste desfecho alguma da sua sensibilidade patriarcal, ou pelo contrário criticava-a, não sabemos, mas cremos que nesta 3ª década do século XXI já não veria necessidade de apontar um pai que não queria tornar-se avô... 

Possamos nós nas nossas vidas não recusarmos reconciliações e vivermos bem auto-conscientes no amor justo e recíproco...

No 193º aniversário do nascimento de Tolstoi...

Segue-se um vídeo gravado já há uns anos e que nem sei bem já o seu conteúdo, e portanto a sua boa interacção ou não com o resumo do conto agora escrito.

Muita Luz e amor nas nossas almas e vidas para melhor abertura ao Divino e ao Bem... 

               

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Tolstoi e a sua obra vistos com mestria crítica por Agostinho da Silva, em 1942. Comemorações dos 193 anos do nascimento de Tolstoi.

A apreciação crítica de Tolstoi e da Literatura Russa por Agostinho da Silva manifestou-se publicamente em 1941 e 1942, pois  na sua meritória tarefa de pedagogo  deu à luz na sua vasta colecção Antologia, Introdução aos Grandes Autores, um número (como habitualmente de 24 páginas) dedicado a Tolstoi, com uma pequena biografia e um belo conto, traduzido do francês, A Terra de que precisa um Homem, que já mereceu um artigo neste blogue.

Na curta biografia que antecede o conto, e que  digitalizámos no artigo anterior, Agostinho realça em Tolstoi certos valores que atribui aos seus pais, tais como "vida pura, amor ao próximo e actividade social justa ou frutuosa", tão característicos da alma russa, bem como a forte aspiração ao "Amor universal",  e destaca como em si mesmo se debatera com os seus aspectos instintivos, egoístas e violentos e  soubera com arte na sua obra literária e religiosa genial mostrar que apesar dos piores defeitos os seres têm sempre um potencial de transformação e amor, gerador de beleza, justiça e harmonia... 
No ano seguinte em 1942, quando morava na Rua Dr. António Martins, 24-2º, nos Cadernos de Informação Cultural, Iniciação, dava à luz no seu habitual in-4º grande de 24 páginas, Literatura Russa, onde de novo se aproxima da vida e obra de Tolstoi com grande conhecimento e mestria crítica, por vezes até irónica.
                                          
 Transcrevamos então, neste começo de tarde de nuvens pardas do dia de aniversário de Tolstoi, 9 de Setembro de 2021,  as três páginas de texto corrido (para ganhar linhas) que Agostinho da Silva, com quem dialoguei tantas vezes, lhe dedica, após se ter debruçado sobre Pushkin, Gogol, Lermontov, Turgénev e Dostoievsky (1821-1881):  «Costuma citar-se Tolstoi, seu contemporâneo (1828-1910) como o autor mais oposto a Dostoievski e de certo o é, se atendermos à habilidade de compor, que falha, porém, algumas vezes, à precisão de linguagem, ao justo sentido realista de que Dostoievski dá provas tão reduzidas; Tolstoi vê, ouve, percebe o mundo exterior com sentidos maravilhosos que de tudo dão conta, registam o mais insignificante pormenor, sabem reconstituir com precisão uma paisagem de estio ou um nevão na estepe, um baile aristocrático ou o serviço de uma bateria em pleno combate; a sua prosa ajusta-se a tudo quanto o artista dela exige, sempre límpida, atingindo os mais altos efeitos com o mínimo de recursos, numa elegância natural que despreza toda a retórica e que nunca dá a impressão de desarranjo e de imperfeito que vem da prosa de Dostoievski. Mas fundamentalmente, o drama de Tolstoi, que é afinal o que ele exprime em todos os seus livros, desde Sebastopol a Ressurreição e às últimas novelas, sem exclusão de A Guerra e a Paz, aparenta-o às personagens de Dostoievski; para ele também o mundo é uma ocasião de santidade, mas santidade de que afasta o próprio esplendor do mundo; o artista e o homem moral batalham duramente entre si e não deixam a Tolstoi um momento de repouso, mesmo dando o desconto necessário a um certo gosto de representação e proselitismo [descortinamos uma crítica a certos exageros tolstoianos da sua luta anti-sensual]; também ele, nas horas em que as tentações menos o vencem, em que a violência e a sensualidade naturais parecem mais adormecidas, crê na smirenie [em russo, humildade, algo submissiva e logo criticado pelos mais revolucionários] como numa força de salvação do mundo, também ele prega a resignação, a não-resistência perante o mal [muito assumida plenamente por ele, e que na Índia é denominada ahimsa, que Tolstoi valorizou e intensificou em Gandhi], também ele admira a civilização dos países ocidentais: o ser bom na sua aldeia, entre os seus camponeses, consistia para Tolstoi em vestir uma blusa de mujique, consertar ele próprio as suas botas e dormir numa das salas do palácio [aqui há algum exagero crítico por Agostinho], não em, como lhe propunha Masaryk, acabar com a repugnante miséria dos servos, combater a tuberculose e a sífilis, abrir escolas técnicas [novo leve exagero, algo "comunizante" do "jovem" Agostinho, menosprezando as acções de Tolstoi em favor da emancipação do proletariado, embora não-violenta e de facto pouco realizável, ou ainda contra as epidemias que grassavam, bem como as escolas, embora de facto não técnicas, que fundou]; nada disto, segundo pensava, serviria para o bem da alma e o que sofre resignado vale mais que o homem sôfrego de acção, enamorado dos maquinismos, mais atento à realidade exterior do que ao mundo da alma e que podia afinal ser batido, mesmo no seu próprio terreno, pelo conjunto russo, pela terra, pelo clima, pelos generais indolentes e ignorantes, pelo soldado que marchava como animal em rebanho; o que vale é a purificação interior; o que vale é a aproximar-se o mais possível de Cristo: para a Rússia o ideal seria tornar-se um Cristo colectivo que ensinasse ao mundo a verdadeira vida, vida de paz e de amor pelos homens e mulheres, de cooperação em todas as tarefas necessárias; se alguma vez combate a miséria, parece não ser o pobre que o aflige [...], mas o rico, que está perdendo a sua alma, cavando um fosso intransponível entre ele e o seu irmão, que devia amparar e socorrer; do mesmo modo se levanta contra a arte que sendo actualmente um domínio de poucos dá a esses uma ideia de superioridade que destrói a da igualdade que devia existir; não parece ter-lhe acudido uma só vez [... terá sido?] a ideia de que o ocidental, ocupando-se da ciência e da técnica, estava também vendo o problema económico como problema moral, mas importando-se menos com o sofrimento do rico do que com as torturas do pobre e pondo como ideia essencial a de que só pode aspirar à perfeição moral, salvo a excepção dos maiores, quem tiver resolvido o seu problema material; cristão e eslavófilo como Dostoievski, Tolstoi vê, no entanto, melhor do que ele, muitos dos problemas e dos defeitos da Rússia, e a luta contra a guerra, a tentativa da reforma das escolas, o abalar da autoridade da Igreja oficial, põe-no mais do que a Dostoievski na linha dos revolucionários, que de resto combateu em nome dos seus princípios pacifistas.
Como artista, Tolstoi transcende todos os limites da Rússia do seu tempo: o extraordinário poder de observação, os recursos de análise psicológica, o sentido dramático,a simpatia humana, colocam-no entre os artistas de carácter mais universal; só o Quixote de Cervantes poderá comparar-se, noutro plano, com uma novela como  a Guerra e Paz e, mesmo nos trabalhos e menor fôlego, como Hadji Murad, Servo e Senhor, A Morte de Ivan Ilitch, Tolstoi facilmente se eleva a um amplo significado humano; são menos sólidos todos os trabalhos que exigiam maiores qualidades de pensador, quer as dissertações humanitárias sobre a miséria, o cristianismo, a guerra, a pedagogia, quer as obras de ficção em que a tese era mais importante; no entanto, mesmo numa Sonata a Kreutzer, de tão fraca estrutura ideológica [e estamos de acordo...], se revela a capacidade do artista, o seu ímpeto poderoso, o seu poder de construção estética.»
Concluamos esta breve homenagem a Tolstoi, e certamente a Agostinho da Silva, permitindo-nos valorizar todavia as  capacidades de Tolstoi como pensador e autor de dissertações sobre o pacifismo e cristianismo, considerando algumas das suas páginas muito profundas, catárticas, revolucionárias e perenes, discordando nestes dois aspectos ou temas do então bastante exigente Agostinho da Silva. E nessa linha mais juvenil, ou mesmo na final tão abrangente e universalista, o que diria Agostinho da Silva do actual conflito da NATO, USA, Ursula e Zelensky com a Rússia? Daria razão a uma das partes? 
Creio que sim. A sua bússola interior de experimentado marinheiro, apesar de todas as propagandas e manipulações, saberia discernir a verdade e logo defendê-la, afirmá-la... Mas só quem conseguir meditar e intuir é que saberá mesmo... 
Que a Luz dele ou nele nos inspire!
Agostinho da Silva, russo...
Se digitar "Tolstoi" nas mensagens deste blogue encontrará algumas valiosas, tal como a:  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/04/tolstoi-ao-clero-1902-resumo-deste.html. 
Da apreciação universal de Tolstoi não haverá muito a provar. Por parte dos portugueses ela foi bastante mais forte no fim da Monarquia e começo da República, destacando-se um tolstoiano de grande qualidade e amigo muito próximo de Antero de Quental, Jaime de Magalhães Lima, tal como poderá ler em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/09/jaime-magalhaes-lima-e-antero-tolstoi-e.html. Ou ainda em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2015/01/jaime-de-magalhaes-lima-as-doutrinas-do.html     Lux Amor!
Jaime de Magalhães Lima e Antero de Quental. Lux, Amor!

                           

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

5-IX-2021. Do nascer ao pôr do Sol: nuvens e rastos químicos de aviões, da Serra de S. António em Mira até Lisboa

 Belas e misteriosas imagens da contemplação dos céus, desde o nascer do Sol divino na serra de S. António, Mira d'Aire, a partir das 6:30 de Domingo, 5 de Setembro de 2021, com as últimas imagens já em Lisboa ao findar da tarde...

Acordar com os raios solares, tão cultuados como divinos em tantas tradições, e sair de casa em busca de comunhão refrescante com eles é gerador de feicidade...

Dona Luna, barca do rio Nilo celestial, torna as nossas almas receptivas a mais Luz...

Há sempre um caminho à nossa frente que devemos discernir apesar da obscuridade, e perseverar nele...
Algumas formas dévicas ou angélicas surgiram nas nuvens, erguendo-se sobre as centenárias oliveiras de Minerva,,,


  O Sol desponta já às 7:24 minutos. Saudações ao seu coração e ser, e acolhimento dos seus raios mais directos
De Oeste para Este, a Sul para um jacto bem rápido e que deixa uma rasto muito prolongado...

O rasto dos carburantes do avião dividem-se em dois, talvez uma partículas mais pesadas e outras mais leves...

A Norte, um rasto antigo e um a sair de um jacto....

Já em Lisboa, perto das 18:00, um inesperado arco-íris no meio de nuvens algo plúmbeas e estranhas.

Que saibamos merecer e acolher os raios divinos de luz, amor e poder e que eles nos inspirem, abençoem e protejam....

Fiquemos com umas rosas belas e puras, numa imagem olfactada  e cpatada às 7:19. Que na rosa do nosso coração brilhe e emane o Amor Divino...
                                                                                 Aum

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Armando Martins Janeira. Uma resumida biografia e bibliografia, no dia da comemoração do seu 107º aniversário.

Pequeno contributo para a biografia do embaixador Armando Martins Janeira, notável diplomata, escritor e profundo conhecedor e divulgador da presença e interacção portuguesa no Japão, da alma do Dai Nippon e, em especial, de Wenceslau de Moraes, escrito para o seu 107º aniversário, em 2021.

Armando Martins Janeira é um transmontano, tal como Miguel Torga,  nascido em Felgueiras, Bragança, em 1 de Setembro de 1914, filho de José Júlio Martins e Elvira Janeiro, professora primária, que irá estudar e licenciar-se em Lisboa na Faculdade de Direito aos 22 anos. Entrou em 1939 na carreira  diplomática, tendo estado em numerosos países, primeiro como cônsul em Leopoldville, Liverpool e Sydney e, em seguida, como secretário, adido e, finalmente, embaixador em Itália, Inglaterra e Japão.

A sua primeira estadia no Japão  como Primeiro  Secretário de Legação, em Tóquio, é de 1952 a 1955, e desenvolve então um grande amor pelo Japão e a sua relação com Portugal, e começa a inteirar-se in loco da magnitude do encontro luso-nipónico, apercebendo-se das personalidades mais marcantes desse encontro, seja japonesas, seja as portuguesas, onde se destacam Jorge Alvares, Francisco Xavier, Fernão Mendes Pinto, Luís de Almeida, Luís Fróis, João Rodrigues, Diogo de Carvalho e sobretudo Wenceslau de Moraes. Estas individualidades virão a ser  abordadas mais detalhadamente no seu livro Figuras de Silêncio.
Casa em 1959, aos 45 anos com a alemã Ingrid Bloser, bastante mais nova do que ele (vinte anos, vindo a ter uma filha e um filho), que o acompanhou com grande qualidade na sua missão e o continuará no amor, partilha e estímulo da amizade aprofundante luso-nipónica.

E, ao ser nomeado Embaixador de Portugal de 1964 a 1971, consegue pela segunda vez residir e aprofundar o seu amor pelo Japão, e o diálogo luso-nipónico, que testemunhará em muitos actos públicos, recepções em sua casa, textos, conferências e eventos.

Deixou uma vasta obra histórica e ensaística, as primeiras obras publicadas sob o pseudónimo de Mar Talegre, sobre Literatura Portuguesa. tal a intitulada Três Poetas Europeus (Camões. Bocage. Pessoa), impressa em 1947, onde após uma original Introdução com sub-capítulos Poesia, Essência da Poesia, Espírito da Poesia Portuguesa, Europeidade, dedica-se depois a Camões, Bocage e Pessoa, com referências ainda a Antero, reconhecendo com bastante intuição e pioneirismo a espiritualidade forte de Fernando Pessoa, algo que aprofundará depois em artigos sobre o Zen na sua poesia, nomeadamente no I Congresso Pessoano de 1978 e em que levado por Dalila Pereira da Costa ainda o ouvi.  Seguiram-se Sentidos Fundamentais do Romance Português, e os contos Esta Dor de ser Homem, em 1948. E já em 1952, O Teatro Moderno, um género apreciado e trabalhado por ele, e que em 1957 frutificará numa peça dedicada ao amor de Inês de Castro e D. Pedro, a Linda Inês - Tragédia.
 Posteriormente assina ora Armando Martins Janeiro ora Armando Martins, e assim publica em Tóquio, em 1954, Nô,  impresso em papel de arroz e com as folhas duplas à japonesa, contendo uma valiosa apresentação, seguida de três belíssimas peças do teatro japonês, traduzidas por Armando com várias ajudas e recursos: A Vida é Sonho (kantan), por Motokiyo Seami, O Espírito da Neve (yuki), O Manto de Penas (hagoromo) por Motokiyo Seami.
   Nesse mesmo ano de 1954, no centenário do nascimento de Wenceslau de Moraes, dá à luz simultaneamente em Tóquio e no Porto uma obra toda ela, nas suas  286 páginas, consagrada excelentemente a ele: Jardim do Encanto Perdido, Aventura Maravilhosa de Wenceslau de Moraes no Japão, ilustrada com oportunas fotografias, algumas inéditas. 
                                          
Pouco depois, em 1956, dá à luz, com vinte e três capítulos, alguns já publicados em jornais Ler, Comércio do Porto, Nippon Times e Mainichi, um dos seus livros mais pessoais do encantamento nipónico Caminhos da Terra Florida. A gente, a paisagem, a arte japonesa, onde descreve as suas impressões da primeira estadia no Japão, a que juntou uma bela capa e algumas ilustrações coloridas coladas ao alto e logo flutuantes.  As suas descrições de Kioto, "não há cidade no mundo como Kioto", das suas geishas, matsuris, ruas, história, mistura do antigo e do ultra-moderno e rio Kamo vibram ainda hoje graças (e mais ainda em quem lá esteve) à sua tão rica sensibilidade poética e amor: «Rio Kamo, Rio Kamo, tu que embalastes barcas faustosas de imperadores e batéis engalanados das mais célebres gueishas e das mulheres mais formosas de Kioto, tu é que sabes todos os segredos dum passado luminoso que ainda nos fascina e penetra no presente, emprestando-lhe aura, poesia, sonho; Rio Kamo, Rio Kamo, que escutas as canções nostálgicas das gueishas de Guion e Pontocho, e à noite te ficas, de águas paradas sob a lua mais ténue que um balão de papel, a escutar-lhes os suspiros, os dramas de amor que os livros não contam, os segredos que nunca serão ditos./ Para mim, não há no mundo cidade como Kioto.» [Tendo eu lido este livro nas vésperas da minha primeira e única peregrinação ao Japão, em 2011, anotei no fim: "Direi o mesmo, em Setembro?» e, sem dúvida que, cidade e rio maravilhosos...]
 É nestes Caminhos da Terra Florida que Armando Martins Janeira exerce esta bela auto-consciencialização e comunhão vertical e perenizante, fotografada até: «Estou sentado no chão sobre o tatami brando, a uma mesa baixa - na mesma posição em que o Wenceslau escreveu a Ó-Yone e Koharu, que estou lendo. E leio nas páginas deste português exilado, a doçura e o encanto da vida japonesa que o seduziu e me envolve. 
Se fizermos um inquérito mental ao que atrai o estrangeiro no Japão, creio que encontraremos, desde logo, esta doçura de viver, delicada e frágil, que seduz sem enlear, duma alegria serena, mas colorida e excitante, este encanto dum gozo simples e puro, que o japonês pôs na construção e arranjo da sua casa, nos seus prazeres, no gosto de embelezar os objectos do seu viver habitual (...)»
 Em 1962  imprime a sua obra mais impressionante, original, bela, O PEREGRINO, Lisboa, num in-fólio oceânico de 72 páginas em papel de arroz, dentro de estojo em algodão estampado ao modo japonês, e constitui uma valiosa aproximação à vida,  amores e livros de Wenceslau de Moraes, com referências importantes ao Shinto e ao Budismo na sua vida e obra e como foi acolhido pelas duas religiões aquando da sua morte. É uma belíssima edição, muito bem ilustrada e que inclui até um postal  escrito por Wenceslau, uma toalhinha japonesa e duas gravuras originais de final do séc. XIX, além de imagens de Wenceslau. A tiragem é apenas de 100 exemplares numerados e portanto rara. Complementarmente, publicou num formato pequenino, com o mesmo título, um livro, só com texto de 57 páginas, editado já em Lisboa pela Livraria Portugal em 1962, no qual relata a inauguração do monumento consagrado pela cidade Tokushima a Wenceslau de Moraes, com profundas reflexões sobre a religiosidade e universalidade de Wenceslau e de ele próprio.
Outros exemplos de valiosos estudos são o The Japanese Classic Theatre and the Theatre of Gil Vicente, publicado inicialmente no Japão num volume de Comparative Literature, de 1966, onde manifesta o seu bom conhecimento do teatro de Gil Vicente e peninsular da época, pondo-o em diálogo comparativo com teatro No. 
                                      
E, nesse mesmo de 1966, no nº 187 da revista France-Asie/Asia, a sua contribuição, e como Armando Martins Janeiro: Lacfadio Hearn and Wenceslau de Morae. Two interpreters of Japan, onde valoriza em Wenceslau a busca de uma civilização diferente e onde poderia encontrar felicidade, pois «ele sentiu que não podia ser feliz na Europa, porque o materialismo e a mediania da civilização Ocidental aborreciam-no, e detestava também a rotina seca da sua própria existência (...) A sua sensibilidade delicada, o seu esteticismo refinado, estavam desgostosos com o Ocidente»....
Em 1969 publica, ainda sob o nome de Armando Martins, na revista STVDIA, nos números 27-28, 1969, um estudo sobre Wenceslau de Moraes valioso, onde critica o extremismo jesuíta anti-protestante e holandeses e valoriza a capacidade de ultrapassarmos as nossas "crenças, hábitos e preconceitos", escrevendo mesmo:«estou convencido  que o único homem que conseguiu libertar-se dos seus hábitos e preconceitos ocidentais foi Wenceslau de Moraes. Viveu inteiramente como um japonês e atingiu o estado de ser capaz de pensar e de sentir como um Japonês», mostrando em seguida a uma curta biografia, com extractos da sua obra, como Wenceslau chegou a tal nível identitário e de osmose unificadora...
É só a partir de 1969 é que assume definitivamente o nome de Armando Martins Janeira, por homenagem aos japoneses que assim o tratavam, e faz sair numa editora reputada de Tóquio numa bela edição cartonada à japonesa  uma das suas obras mais pessoais e filosóficas de comparativismo: The Epic and the Tragic Sense of Life in Japanese Literature. A Comparative Essay on Japanese and Western Culture. São três os capítulos, e traduzimos os títulos: I O Épico e o Trágico. II O Conceito Épico da Vida. III - O sentido Trágico da Vida, nos quais analisa com grande cultura e sensibilidade as dicotomias e contrastes entre Oriente e Ocidente, entre cómico, trágico e épico, entre amor e compaixão impessoal, recuando a sua aproximação até aos gregos e romanos e ao Humanismo da Renascença.
Em 1970  dá à luz em Lisboa na progressista editora Publicações Dom Quixote   O Impacte Português Sobre a Civilização Japonesa, «em homenagem aos portugueses que nos séculos XVI e XVII levaram ao Japão e a todo o mundo a cultura da Europa, aos meus amigos japoneses construtores do progresso do Japão moderno, que pela combinação criativa das culturas do Oriente e do Ocidente se lançou na linha de elevação duma civilização universal, eu dedico este livro, com o sentimento recolhido de quem contempla uma grande obra humana.» São 340 páginas de história dos portugueses e das suas influências e relação com o Japão. Teve uma segunda edição em 1997.

 
No ano seguinte em 1971 dá à luz uma volumosa  e boa escolha e bem apresentada antologia, intitulada Wenceslau de Moraes. Selecção de textos e introdução de Armando Martins Janeira. São 464 páginas, antecedidas por cento e oito duma valiosa introdução e de uma muito completa nota bibliográfica. Alguns títulos dos vinte capítulos temáticos: Amores, Amores, O Japão, a Gente, A Mulher Japonesa, O amor dos Animais, Religião, Meditações. 
                                   
  Em 1977, aquando da sua estadia em Itália, enquanto Embaixador de Portugal, publica a sua conferência realizada em 15-5-1975, na Academia Nazionale dei Lincei, L'Oriente ne «I Lusiadi». E em 1981 sai à luz, em Lisboa, o excelente  Figuras de Silêncio – A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, valorizado com o prefácio de Shusaku Endo, que rende uma grande homenagem a Armando:«Martins Janeira desempenhou o importante posto de embaixador no Japão por muito tempo. Entre os embaixadores de outros países, ele era o diplomata mais querido. A sua casa estava sempre cheia dos seus íntimos amigos japoneses; não eram apenas políticos e homens de negócios, eram também escritores, calígrafos, actores, etc. Havia ali a atmosfera dum salão de cultura. Amava o teatro tradicional, mesmo o Nô e o Kabuki, que são raramente compreendidos por estrangeiros - e introduziu-os na Europa. Eu próprio sou um dos romancistas por ele introduzidos na Europa.»
 Neste livro histórico aborda muito bem as grandes almas portuguesas no Japão: o capitão-do-mar Jorge Álvares, Fernão Mendes Pinto, os missionários jesuítas S. Francisco Xavier, Luís de Almeida, Luís Fróis, João Rodrigues e Diogo de Carvalho e finalmente "o último dos grandes aventureiros lusíadas: Wenceslau de Moraes."
                                                      
  Os  livros de Armando Martins Janeira estão repletos de sabedoria não só dos outros mas de si próprio e nesse sentido escreveu: «O significado da vida e da felicidade — todos os sábios do Oriente e do Ocidente nos ensinam — só se encontra quando o homem se dedica a uma grande tarefa, se entrega inteiramente a uma missão e se dissolve no poder imenso que o transporta para além da existência individual». 
Armando Martins Janeira vivendo no Japão cerca dez anos, como um diplomata muito afável e convivial (como Shusako Endo bem realçou), como estudioso, orientalista e escritor, onde ajudou a «erguer 15 monumentos comemorativos da grande obra portuguesa», um museu, uma escola infantil e um cortejo histórico, no fundo um descobridor moderno, confessará: «Foi uma luta combatida e vivida num fervor de cruzada, não para ressuscitar um legado histórico, mas para inserir a História na vida de hoje e amanhã. Isto só no Japão poderia ter sido conseguido. Oxalá um dia em Portugal igual eco se levante, para que assim a obra portuguesa no Japão desça da leniente seara dos eruditos para o campo da cultura geral, e aí tome um significado vivo e universal, hodierno e criador — para que o amor entre os dois povos se engrandeça».
Armando Martins Janeira foi e é, de portugueses e estrangeiros, quem melhor compreendeu Wenceslau de Moraes e também o Japão, destacando nele, por exemplo, na antologia referida, págs. XV-XVI, duas fases: «Nos primeiros anos de Japão, Moraes vivia no encanto da cor, na surpresa do exótico, no arroubo das maravilhas pitorescas do lendário Dai-Nippon. Este lado superficial deu-lhe em Portugal grande voga: ainda hoje para os leitores de Portugal, Moraes é apenas um escritor exoticista, delicado e louco, perdido no lindo sonho de um romântico Japão (...) 
O Moraes profundo e verdadeiro é o dos últimos anos do Japão. É o homem que amadurece no sofrimentos os seus verdadeiros valores humanos. É o estrangeiro isolado em um meio hostil, por vezes insultado, perseguido, mas nunca desistindo do grande propósito da sua vida - conhecer a essência da vida oriental e fazer o relato detalhado das suas reacções ocidentais no ambiente estranho que o cerca. Este relato minucioso é um documento de inestimável valor humano pois até hoje ninguém nos deixou uma confissão tão íntima e interessante das suas experiências diárias de ocidental entre orientais.»
Realçará ainda dois aspectos muito importantes: «Moraes escreveu a primeira história de amor entre um ocidental e uma japonesa - a confissão do seu drama com Ko-Haru; e porque foi também o pioneiro na análise da vida diária de uma comunidade japonesa, a pequena cidade de Tokushima, Moraes mostra também mais largueza e visão do futuro.» 
Do seu conhecimento do amor "religante" ou religioso dos japoneses há um trecho de Armando Martins Janeira bem curioso e instrutivo: «O Japonês ama carinhosamente os seus templos, quer sejam xintoísta - erguidos no cimo das montanhas para de mais perto adorar o Sol - quer na sua penumbra sorria tranquila a plácida face de Buda, infundindo bondade e profunda paz espiritual conquistadas pelo esforço ingente de renunciar ao mundo para se dissolver no universo, e assim, dentro do humano, atingir o infinito. O Japonês ama acima de tudo os seus velhos templos e os seus antigos jardins, que desde há mais de mil anos trata com esmerado carinho, e onde ainda hoje vai procurar retemperar a sua alma de serenidade e de paz.»

Tendo deixado a carreira diplomática em 1980,  foi professor na Universidade Nova, onde criou o Instituto de Estudos Orientais  e co-fundou a Associação de Amizade Portugal-Japão em 1981,  partindo para os mundos espirituais em 1988. Tem sido a sua mulher Ingrid Bloser Martins quem mais tem mantido viva tanto a sua vida e obra, tal como a de Wenceslau de Moraes (de quem Armando recolheu muito postal manuscrito e documentação), com colóquios, conferências e exposições, tendo parte substancial do seu espólio sido doado à Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo. 
A Câmara Municipal de Torre de Moncorvo publicou em 2015, de Paula Mateus, Por que Estrada Caminhamos. Armando Martins Janeira. Uma fotobiografia, num in-4º de 212 págs. execelentemente documentada e apresentada. E da autoria da Ingrid Bloser Martins, um valioso livrinho sintético Portugal e o Japão. Armando Martins Janeira e Wenceslau de Moraes. Duas personalidades humanas diferentes, numa comparatividade luminosa e enriquecida com as impressões pessoais e terminando com um pequeno capítulo dedicado ao Caminho do Chá, Chado, como sabemos um caminho espiritual, estético e convivial de grande tradição e elevação, ainda hoje mantido na sua sacralidade e intemporalidade, e que Wenceslau, nomeadamente com o seu belíssimo livro O Culto do Chá,  e Armando e Ingrid bem cultivaram, e que deveremos continuar como caminho do chá, Chado, tal como o Shinto é o caminho do espírito.

                                     
   Uma geisha servindo o chá, ilustração para o Culto do Chá, de Wenceslau de Moraes, e uma Miko de um jinja de Kyoto servido o chá e aguardando...