domingo, 25 de abril de 2021

Do Culto doméstico e da Higiene no Shinto de Hirata Atsatune, nos Romanos e nas nossas aras e lares.

O culto religioso ou espiritual doméstico, baseado nos efeitos familiares higiénicos, estéticos e psico-energético, desde uma antiguidade muito grande foi vivido em vários povos com apurada sensibilidade e intensidade. Vamos apenas aproximar-nos brevemente de duas tradições, uma ocidental, a de Roma, e outra oriental, a do Japão e mais propriamente a do Shinto, através da visão e ensinamentos de um dos seus pensadores, Hirata Atsatune, um filósofo importante do Fuko Shinto, a Renovação do Shinto, durante o período Edo (1603-1867), Shinto significando o caminho do Espírito (shin, ou ainda kami).

As fotografias do Japão neste texto foram obtidas na minha peregrinação de quarenta dias, registada em diário, em Julho, Agosto e Setembro de 2011. 

Em verdade, alguns  sábios do Japão nos séculos XVII, XVIII e XIX procuraram preservar e fortalecer a tradição cultural e espiritual  nipónica e shintoísta em tempos de fortes influências estrangeiras, seja chinesas e budistas seja ocidentais, e de crescente urbanização do país e, portanto, de perda dos modos de sensibilidade e vida naturais e antigos, nomeadamente os que os poetas, as mães, os educadores e os religiosos transmitiam às crianças e jovens. Algo disto entre nós sentiu entre nós e mencionou o poeta Augusto de Santa Rita, na sua tão significativa e valiosa Justificação inicial do número único da revista que publicou com Fernando Pessoa, em 1916, Exílio.

Nesses sentidos ou objectivos tais pensadores ou filósofos estudaram as tradições poéticas, míticas, etnográficas e religiosas, através  das etimologias, práticas e concepções de vida ou filosofias, e tentaram apontar as  mais valiosas de serem preservadas e cultivadas porque representavam ou indicavam o caminho da harmonia natural, entre a terra e o céu, entre os humanos e os kami. Denominou-se tal o Kokugaku, Estudos Antigospois basearam-se muito na poesia (waka) mais antiga (tal a compilação datada de 759 Man’yoshu), na crónica Kojiki (escrita por O no Yasumaro, a mando da imperatriz Gemmei, em 711-712) e em menor grau de valorização na Nihonshoki, de 720, e ainda nas orações cantadas ou noritos (um exemplo: https://youtu.be/Ly-Y5LS39bA) e ritos primordiais (tais os contidos no Yengishiki, do séc. X), e nos sentimentos e consciência que elas testemunhavam, sintetizados no famoso traço de sensibilidade ou mentalidade, o mono no aware, a empatia com as coisas e seres, por exemplo por Wenceslau de Moraes tão sentida, observada e aprofundada, destacando-o nos pioneiros ocidentais do conhecimento empático da alma japonesa, dentro da alma da criação, como ele também chamava.  

Denominado o Fuko Shinto, o Shinto restaurado ou reformado, purificado dos estrangeirismos e ensinando a recuperar o coração puro e natural (magokoro), teve os seus principais expoentes numa linha sucessiva de mestre discípulo, Kada no Azumamaro (1669-1736), Kamo Mabuchi (1697-1769), o mais importante Motoori Norinaga (1730-1801) e Hirata Atsatune (1776-1843), este clamando ter recebido a transmissão de Motoori Norinaga, que não conhecera fisicamente, por sonho, o que muito provavelmente não é uma legenda pois trata-se de fenómeno vivenciado e vivenciável pelos que estão  no caminho espiritual, mormente num ser tão dedicado à espiritualidade.

Neste artigo vamos abordar apenas Hirata Atsatune e alguns aspectos do seu ensinamento, tais como o de ter desenvolvido a ideia de que todos os japoneses eram descendentes dos deuses e não só a família do imperador, esta linha de força já tendo sido valorizada por Motoori Norinaga, até por razões políticas, bem como ainda a preeminência do kami ou deusa do Sol, a bem amada ou adorada Amaterasu o mi kami

Tinha a sua razão de ser tal ideia e concepção, porque deste modo Hirata Atsatune investia as pessoas numa individualidade, sacralidade e poder mais fortes, com capacidades portanto de também elas serem intermediárias entre a Terra e o Céu, entre o corpo e o espírito (shin). Mas já exagerava num certo nacionalismo quando pensava que só o povo japonês era o escolhido dos Kami ou deuses, e só ele descendia directamente Deles,  originado provavelmente no no seu afã  de estimular os seus conterrâneos e de partilhar ao máximo os ensinamentos salvíficos que estudava e desenvolvia da tradição espiritual nipónica do Shinto.
Ora na função de pontífices, de sacerdotisas (mikos) e sacerdotes, os
seres devem fazer os seus rituais, orações, meditações para cultuar os espíritos celestiais, os Kami, e nomeadamente os da casa. Será esta actuação que  nos interessará nesta artigo mais, pois tal sacralização da casa, à parte alguns amantes do Feng shui (e em geral numa forma algo geral e técnica)  está muito perdida.  E pode ser bastante útil à nossa evolução espiritual...
Hirata Atsatune, que gerou bastante obras, infelizmente pouco
traduzidas, algumas mesmo (sobretudo após a morte da sua amada mulher) acerca dos mundos subtis e espirituais, valorizou alguns kamis do lar, conhecidos tradicionalmente com diferentes nomes dependentes das zonas das casas que lhes são consagradas.

Ei-los: Ie no kami Yabune no kami, o kami da casa ou edifício, também chamado Toshigami, o kami guardião, ou os kamis, plurais (sorei),  da prosperidade da família, primitivamentes ligados à colheita do arroz, festejado anualmente e aupiciosamente no começo de cada ano (tal como em Agosto, quando se comemora o Bon Odori, o Festival dos Mortos, e que Wenceslau de Moraes tão magistralmente descreveu, vivendo-o em Tokushima e aonde eu estive em peregrinação na época certa), na época (talvez pelo sol e calor) considerada de abertura maior da ligação com o mundo espiritual. São muito belas as simbolizações que se lhes oferecem no começo do ano, o Shime kazari:

  Depois menciona  um kami já muito pouco cultuado mas na época muito importante, Ido no kami, ou Idogami, o kami do poço e fonte de água, e seria interessante estudar algumas das suas histórias e compará-las com o nosso fabulário dos poços, tão ligado ao inconsciente, à mulher, às fadas e mouras.  E ainda  o Kamado no kami, o kami do fogão e da cozinha, também conhecido por Sanbō Kōjin, no sincretismo do budismo e shintoísmo, nomeadamente no mais esotérico Shugendo. Este é importante pelo menos lembrar-nos, e de certo modo reverenciarmos, ao limparmos em especial o local do fogo, ou fogão, oferecendo ao Cosmos pensamentos e actos de ordem e limpeza-pureza...

E,  por fim, o muito necessário na época, dadas as más condições higiénicas nas cidades e bairros pobres,  Kawaya no kami, o kami da casa de banho, por vezes visto como feminino, e para cujo culto Hirata Atsatune propôs várias medidas de higiene,  construção, utilização de estrume,  harmonia e culto. Acreditava-se, por exemplo, com mais ou menos razão, que o estado dela influenciava quem nascia na casa, especificando-se que poderia mesmo influenciar o nariz do nascituro, provavelmente conforme os odores.

Se no Ocidente e em Portugal se perdeu esta consciência e visão da possibilidade de existência de  deuses ou espíritos tutelares da casa e das suas divisões, nos tempos mais antigos, nomeadamente dos Romanos não era assim, pois reconheciam-se  os deuses domésticos denominados Lares e Penates, que as pessoas cultuavam nas suas casas, no tablinium, um espaço-divisão que sucedia ao atrium, e que eram os escolhidos por cada família, sendo representados em moedas, vasos de cerâmica ou esculturas como seres de idade, com um manto sobre si, algo que pode sugerir espíritos de antepassados que agiriam como intermediários com o mundo divino. Anote-se que a sobrevivência de espíritos subtis humanos ou da natureza sentidos ou ouvidos nas casas portuguesas ficou  denominada popularmente pelos trasgos, vistos pelos teólogos como daimons-demónios ou ainda duendes.

Estes seres humanos já só espíritos, seja antepassados seja amigos e guias, em geral eram até mais cultuados como  os espíritos tutelares da família, os  Lares familiares, nos pequenos altares ou aras onde se lhes queimavam diariamente ervas e incensos ou se derramavam as libações. Assim tanto se purificava a casa como se invocavam as bênçãos (para eles e para os descendentes) pelas fragrâncias e orações, simultaneamente proferidas. Eram assim não deuses maiores mas génios, engenhos ou espíritos despertos no além e capazes já de inspirarem na Terra, e geralmente representados com  coroa de louro e uma taça corno de libação. Não estavam limitados porém à casa e em qualquer local se podiam manifestar e logo cultuar. Assim havia os da ruas e campos, os viales e rurales...

 Com o Catolicismo, a concepção feita de Deus e de Jesus Cristo seu único filho eliminaram todos os "concorrentes" e apenas se permitiu criar alguns cultos a anjos (em especial ao Anjo da Guarda, este a partir do séculos XVIII e XIX, muito reproduzido em gravuras e estampas)  e Santos, estes festejados com alguns traços do paganismo no início de Novembro, nos dias de todos os Santos e de todos os Defuntos, e nos seus dias de martírio ou canonização. Algo do Kami tutelar da casa ficou assim nas gravuras que entronizavam anjos, santos, Jesus, ou a partir do séc. XVIII, o sagrado coração de Jesus, como protector das casas, por vezes havendo até estampas ou azulejos de invocação de protecção ou de boas vindas para os que comungavam de tal crença, invocação e fraternidade. 

                                     Pode ser uma imagem de 1 pessoa

Podemos então admitir  que algumas imagens, gravuras, pinturas ou esculturas que temos nos nossos quartos e salas podem ser vistos como portas e janelas para os deuses, protectores,  inspiradores, os Kamis tutelares. Estão neste nível mais particularmente e intimamente as fotografias de familiares ou amigos que já partiram para os mundos espirituais e que de certo modo se tornaram Kamis, espíritos divinos (ou mais próximos de tal nível primordial), ainda que certamente hajam diversos níveis ou planos vibratórios no além, muitos seres estando ainda demasiado inconscientes, limitados ou baixos, antes precisando das nossas orações para despertarem, devido a terem trabalhado pouco na Terra para despertar tal as suas melhores potencialidades e uma consciência imortal.
Ora se rezar diante de tais pequenos santuários era valioso para os romanos
e isto foi também muito desenvolvido no Japão com os Kamidanas, pequenos santuários caseiros, e mesmo portáteis, onde kamis familiares e os celestiais e primordiais são cultuados. Ou então com Butsudana, com os Budhas. (Na imagem, o butsudana da família em cuja casa me instalei no Bon Odori,  graças a Takako Karaoke, a quem muito agradeço).

 Os Gregos e Romanos tinham uma classificação valiosa que incluía este nível intermediário: os semi-Deuses. Aqueles que pelos seus feitos se tinham erguido a um grau de imortalidade e de consciência dos deuses ou mesmo da  Divindade. Entre as referências a tal culto estão  os famosos Versos de Ouro de Pitágoras, que deverão até ser mais chamados versos pitagóricos, pois retratam em versos um catecismo de discípulos do insigne mestre.

Não houve nos pitagóricos certamente influências das ideias nipónicas que proclamam a passagem dos seres humanos a kamis seja pela suas vidas bem luminosas ou excepcionais, ou apenas pelo passar de certo tempo uma vez morto o corpo físico e entrados nos planos subtis e espirituais. Mas dado que a Grécia religiosa têm raízes shamanicas e que estas tiveram curso forte no Japão, na Coreia, na Rússia, sendo a fonte primordial do Shinto, até podemos considerar as duas tradições como veios do mesmo rio, e em que os Kamis e semi-deuses tanto podem ser espíritos angélicos celestiais ou apenas espíritos que já foram humanos terrenos e que agora vivem em corpos espirituais. 

Certamente podemos ainda referir  o contributo da Grécia, da Deusa Hygia donde nos veio a palavra Higiene, a deusa da Medicina, da cura dos simples e da higiene pública e que Hirata Atsatune tanto cultuou e procurou desenvolver, no seu afã de melhoria das condições de vida físicas e psíquicas dos seus compatriotas. Esta linha prosélita foi bem ampliada pelo seu filho adoptivo Kanetane (1799-1880) que de certo modo fundou a Escola de Hirata divulgando muito os seus livros. Um dos seus discípulos mais importantes foi Katagiri Harukazu  que criou o Mameo no tsudoi, o Círculo de Homens Sinceros, para o estudo  da obra de Hirata, com grande devoção ou culto ao seu espírito, invocado em longos noritos. Conseguiu erguer em 1867 um santuário, o Hongaku reisha, fortalecido por objectos icónicos pertencentes aos antigos mestres, que influenciou muita gente e compôs ainda belos poemas de partilha do valor da vida agrícola e da comunhão simples com os Kamis.
Em verdade discernida ou admitida a realidade dos Kamis, o facto estarem ou poderem
estar em toda a parte e manifestar-se em qualquer objecto, em especial no que se destaca pela sua qualidade, caso de certas pedras, árvores, locais da natureza, tornou-se uma concepção e crença  típica do Shinto e impulsiona-nos a admitirmos que será importante propiciá-los não só na natureza e nos santuários mas mesmo nas casas de banho, tanto mais que se não as mantivermos limpas geram-se energias negativas que, acumuladas, obstruem a fluída ou livre circulação, e logo afectam a saúde, e atraindo até eventuais entidades negativas. Já quanto a como são estas energias e também que entidades são essas, embora haja bastantes lendas e algumas visões clarividentes subjectivas, só quem investiga e vivencia lucidamente é que poderá sentir e logo ganhar, mais ou menos temporariamente,  alguma relativa compreensão segura. Vale mais porém sintonizarmos com os seres subtis ou kamis de luz...
Fiquemos então com a ideia-força da importância de todas as
divisões da casa que habitamos estarem belas e harmoniosas e poderem assim ser percorridas livremente pelas energias vitais ou mesmo por mais elevadas e abençoantes, ou até merecer a estadia de espíritos subtis luminosos e inspiradores. Esta concepção, aceite e cultivada,  gera comprovadamente uma purificação da casa e uma entrada de energias mais puras ou elevadas na nossa alma, nomeadamente nas nossas meditações.
Cultivemos então a beleza e a limpeza em todos os locais onde
estivermos, tanto exteriormente como sobretudo interiormente ( pela pureza e o não egoísmo)  e, como as mikos ou os pontífices desejados social e espiritualmente por Hirata Atsatune, tanto nos curvemos diante do Divino como ergamos com assiduidade nas nossas aras e lares o cálice do Graal ou do Coração flamejante e aberto ao alto em gratidão, aspiração, receptividade e irradiação das tão necessárias qualidades divinas de Justiça e Fraternidade, Sabedoria e Amor...

sábado, 24 de abril de 2021

Das relações dos seres humanos em si, com os outros e no Cosmos multidimensional.

                                            

Cada ser é único, irrepetível, em si e na sua inserção interactiva no Cosmos multidimensional.

 Cada parte de si mesmo influencia e é influenciada por todas as outras partes de si e de muitas dos outros, ainda que tão subtilmente ou minimamente que pouquíssimos seres estão conscientes das múltiplas interacções constantes não só ao nível físico mas também energético e psíquico, espiritual: quantos raios e correntes circulam..

Há partes e órgãos no ser humano mais importantes na constituição do ser interactivo, de tal modo que as pessoas se identificam a elas, pois  qualificam ou caracterizam bastante uma pessoa. A cabeça-pensar e o coração-sentir são dois dos centros energéticos mais sensíveis e determinantes na psicologia das pessoas: a sua capacidade e necessidade de pensar e compreender e a sua capacidade e necessidade de sentir e de amar. 

Quem consegue regular harmoniozamente estes dois níveis, nas suas interactividades, tem mais possibilidades de agir bem, de estar bem, de ser bom e verdadeiro, e logo gerar beleza.

As qualidades psíquicas que o coração e  a cabeça desenvolvem estão  bastante ligadas aos cinco sentidos pois estes são as portas principais para o  exterior e assim certos  órgãos e centros como  o nariz, a boca, o sexo, o ventre, a cabeça, as orelhas, as mãos e os pés estão constantemente interagindo com o compreender e o amar e são alteradas pelo que fazemos com eles, originando efeitos modeladores ou psico-mórficos, pois tanto a psique (ou alma coração-cabeça) influencia a morfologia ou forma corporal, como vice-versa. Pouca gente se consciencializa muito de tal e toma mais a peito o esculpir-se a si próprio, ou mesmo o saber ler a fisionomia dos seres e o que certos traços mais salientes revelam dos seus hábitos e gostos, características e capacidades.

Na realidade, a forma, o modo e a intensidade com que vivemos cada um dos cinco  sentidos repercute-se física e energeticamente nos órgãos que lhe estão ligados; e por sua vez o corpo no seu todo vai reflectir os estados e actividades desses  órgãos. De igual modo física, energética e subtilmente os sentimentos e as emoções modelam os corpo subtis e físicos: quem tem bons sentimentos e cultiva a boas emoções, esse ser gera corpos e estados energétcos mais harmoniosos, físicos e subtis, estes vulgarmente incluídos no termo vago de alma.

Mas também importante ainda são os instintos mais activos ou desenvolvidos pois devemos saber vivê-los harmoniosamente, isto é integradamente, generosamente, amorosamente, sabiamente, tanto mais que eles influenciam muito os órgãos e o tónus da nossa vida. Como os orientamos, como se manifestam sub-conscientemente e nos sonhos, que ilações e actuações devemos encetar, são questões que nos desafiam constantemente e por vezes de modos que nos escapam. Daí que a observação ou registo dos sonhos ou das meditações e intuições é bem importante de se realizar para nos apercebermos de quem somos e estamos constituídos, onde estamos, o que desejamos, o que valemos e para onde nos encaminhamos.

Na realidade, cada ser está numa estrada que é a sua vida, e em inter-relação multidimensional, embora  poucas pessoas discirnam e se vejam a  percorrer um caminho, isto devido tanto à intensidade ou premência do presente e da visão curto prazo que as domina, como pela diversidade de circunstâncias que a compõem e finalmente pela falta de visão de cima sobre nós próprios pela qual se vê que dia, semana, mês após mês, essa pessoa avançou ou recuou, peregrinou, caminhou, seja em relação a certas metas ou objectivos, seja  nos relacionamentos humanos, na qualidade e profundidade das suas relações com outros seres, seja pessoas de família, seja amiga(o)s, seja já seres em estados subtis de existência, tais como antepassados, guias, mestres, anjos e, finalmente, o Ser Divino nas suas faces...

Na realidade diária a pessoa enfraquece ou fortalece esta ou aquela relação ou amizade, caminha nesta e naquela direcção, seja de cumprir uma tarefa, seja de satisfazer certos desejos e metas, algumas delas mais interiores, tais como as que são as suas crenças, devoções e aspirações. Mas também há  avanços, amadurecimentos, recuos no ainda mais interior e subtil nível, que são os seus sonhos, ou mesmo as suas intuições e visões... 

Mas quem consegue estar atento e bem consciente do percurso já realizado, das forças desenvolvidas, dos campos a que já se poderia ter acesso, e trabalha neles, para não se dispersar nem deixar enfraquecer qualidades ou capacidades, e para no fundo fortificar a sua realização individual e espiritual, esta já em função do Todo?

 Não é fácil de facto as pessoas aprofundarem as suas linhas mais próprias de energias anímicas e de realização, tanto mais que à sua volta existem muitas forças ou seres, seja  em conflitos ou com atracções ou propostas para a envolverem, ou mesmo apenas para distraírem e desviarem, por vezes sem sequer as pessoas aperceberem-se que estão a ser joguetes de forças colectivas supra-pessoais que vivem, proliferam ou enriquecem à custa de não haver pessoas mais lúcidas e determinadas sociologicamente e   espiritualmente. Ora a sociedade de consumo em que vivemos caracteriza-se por essa oferta constante de distracções, de novos estímulos à curiosidade, de manipulações e brainwashs, por vezes em certos momentos tornando-se mesmo dramática a tentativa de influenciar e manipular nas pessoas, como os governos e meios de comunicação, em geral já hoje completamente vendidos ou arregimentados, tanto abusam.

Uma pessoa não se dispersar dos seus propósitos torna-se então muito difícil. Há quem se agarre aos pequenos propósitos, a pequenas tarefas diárias ou pontuais, outros às suas cartilhas políticas, filosóficas ou religiosas, mesmo estas todas elas em queda à excepção de certos baixos astrais de grupos pseudo-evangélicos, mas discernir o que é verdadeiramente mais importante e perene pode escapar a muitos, mesmo que pensem que estão a fazer o bem e acreditam numa ideia de Deus que receberam exteriormente. 

Ora nestes níveis não podemos entregar-nos a qualquer fera feita pastor, nem tornar-nos cegos conduzidos por cegos ou meio cegos e temos mesmo que por nós próprios, lendo, dialogando e meditando, obtermos as nossas vivências e gnoses. 

Para isso todos os dias devemos recuperar tanto o nosso coração e sentir puro, transparente e original, unitivo, connosco e com os outros e a Natureza, como também a mente pura, calma, silenciosa, observadora, isto mais se obtendo ou recuperando ao observar a respiração, ao concentrar-se interiormente e ao meditar. 

Para quem não consegue fazer mais facilmente o silêncio, recomenda-se apenas rezar ou usar alguns mantras para prender o macaquinho da mente numa corda, e gerar com essa qualidade uma intensificação qualitativa vibratória valiosa, que depois no fim é já portadora de ressurreição do coração e do Amor. E mesmo mais simples ainda para os ocidentais pode ser o dedilhar da oração Pai Nosso, ou mesmo só a petição Seja feita a vossa Vontade, assim na terra como no céu. Ou até só a palavra de entrega e adesão: Amen, correspondente ao Aum indiano e ao Amin islâmico.

Se não fizermos tais práticas  arriscamos a que forças que nos rodeiam ou que com que nos interrelacionamos frequentemente perturbem a paz de alma e criem sombras, inquietações e dúvidas, fazendo assim esfumar-se a serenidade e logo a capacidade de se sintonizar e abrir as janelas ao espírito, aos mestres e a Deus. Com isto não nos realizamos tanto na Terra  e chegaremos à hora da morte desprovidos de forças espirituais assimiladas para entrarmos conscientes no além


O invocar-se o mestre, o anjo, uma face divina é fundamental. Certos tipos de esoterismos, new age e espiritualidades que negam a individualidade, os mestres, a Divindade são perigosos. Temos de sintonizar, sentir ou ver tais realidades dentro de nós, algo certamente difícil e para o qual a devoção amorosa e o apelo ou invocação perseverante são fundamentais: Om sri Gurabe namah, Saudações ao mestre, cantam os indianos... Ou Deus nasce mais em nós, diremos nós...

Para conseguirmos estes momentos de alinhamento e interiorização temos de resistir  às tentações e curiosidades dispersantes, as seduções e desejos que nos fazem sair constantemente nós e que nos  afastam de sentir as ligações verticais interiores..

Na realidade, as pessoas não tem muita consciência dos efeitos de uns sobre os outros causados pelos encontros e as conversas, mesmo que seja pelas redes sociais ou os whatsaps, em certos casos as pessoas vivendo mesmo bombardeadas e apanhadas nessa roda viva de mensagens e notícias, frequentemente inúteis, superficiais ou mesmo nocivas.

Assim podemos conversar com uma pessoa uma hora ou duas e mesmo sobre temáticas espirituais e subitamente ficarmos com uma dor de cabeça grande durante horas porque captámos as energias psíquicas da outra pessoa e as oscilações vibratórias que ela tem. Cada pessoa tem a sua oscilação própria e há algumas que são muito dessincronizadas connosco e devemos estar atentos à nossa capacidade de adaptação.  Há então que meditar, silenciar, invocar as bênçãos do alto logo que por fim se está só, ou em casa, por vezes sendo mesmo necessário regar-nos mesmo com uma chuveirada higiénica e purificadora, e colorida subtilmente, gratamente.

Intuirmos quais as pessoas com quem deveríamos trabalhar mais e agir nesse sentido é sempre uma arte óptima embora difícil, sejam elas pessoas amigas sejam já dos níveis subtis e espirituais do Universo.

Medite e ore então com mais frequência, mesmo que seja por pouco tempo, e harmonize-se e receba as intuições e a visão de cima para um seu peregrinar melhor aqui na Terra e que ajuda o amor, a sabedoria, a justiça e o bem na Humanidade, em Gaia e no Cosmos.


As três pinturas são do livro Welten, ou em português Mundos, de Bô Yin Râ.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

O Livro Divino, o Livro do Amor Libertador, O Livro da Verdade e da Realidade... Dia do Livro de 2021.

Escrito manualmente no dia do Livro de 2021, entre as 19:20 e as 19:58, e abençoado a meio por um forte arco-íris, duradouro, assinalado no texto. Espero transcrevê-lo rapidamente para quem não o conseguir ler. Com breve vídeo, de 56 segundos, do arco-íris no fim...

Boas leituras e assimilações, e luminoso despertar anímico-espiritual, com este livro bem especial, dedicado a si e ao Si...

                                                      

Entrando no interior dos livros estamos a entrar em nós próprios, nos seus autores e também na alma do Universo, na demanda do Livro Primordial, aquele que primeiro se formou na alma-espírito do Ser 
Divino e que Dele emanou para os primeiros espíritos gerados, que foram depois escrevendo a história da manifestação, a qual os livros de História, Religião e Filosofia tentam abarcar.
Mas como intuir a explosão solar de mil sons e mil letras que brotaram do Amor divino que se quis manifestar nos espíritos e almas, seres, palavras, letras, ideias e ideais, livros sem fim que chegam hoje até nós neste último, que eu e tu criamos aqui e agora?

A escrita é sempre um acto de invocação e evocação mágica, de tentarmos trazer ao papel e à nossa consciência na terra o que se passa em níveis subtis.

O livro que se quer divino tem obrigatoriamente de nascer de uma grande chama de aspiração e amor, para que as bênçãos divinas possam descer sobre quem o escreve, e passarem pela sua mão ou mãos, e depositarem-se não só no papel mas no infinito mundo de inter-relações que se vão originar de tal acto mágico, sacralizante e invocante do mais elevado, eterno e divino em nós: O Espírito. *

 
Este livro contém, invoca, transmite o Espírito Divino, o Ser Primordial, a força do Amor viva e actuante.
Paro, Oro. Ergo as mãos. Invoco a Divindade e Ela... manifesta-se no arco-íris que subitamente esplende no céu e nas nuvens, atravessa o vidro e fere-me os olhos; e me faz erguer para ele me dirigir e expor, e assim receber o ouro alquímico das suas cores que se derramam pela aura, as mãos, as letras, as palavras, o papel, as nossas almas e corações... Assim o Livro sagrado é cósmico, comungou da união do Céu e da Terra, rejubilou no arco-íris.


Felizes dos livros que são gerados no forno alquímico, no athanor da alma espiritual e que aspira a Deus, ao Amor, ao Bem e que vê entre as nuvens formar-se ora o arco-íris ora a estrela do espírito, e que assim o abençoa, e incarna mais nela e se avatariza.
Assim o livro é investido pelo vento, as nuvens, pelo arco-íris, pelas aves (gaivotas e andorinhas...), pelo amor que alguns seres partilham mais connosco e que estão presentes na redacção mágica de um livro, que é de Deus e das suas faces femininas, como Hygeia, como a Amaterasu, ou a Fatimah, ou Maria, ou todas as almas amigas que mais nos apreciam e impulsionam o livro na sua dimensão de comunhão de grupo de almas afins.
                                                    
 Encerrar num livrinho todos os segredos do Caminho que gostaríamos de transmitir e realizar entre nós, entre mim e ti, é um desafio imenso: implica que sempre que lemos estas palavras e frases estamos a tentar despertar o nosso ser espiritual e assumimos as suas melhores qualidades e assim vencendo todos os obstáculos, medos e negatividades, irmos manifestando mais o bem, o amor, a sabedoria, o corpo místico da humanidade, a fraternidade e a ecologia salvíficas.
A folha dobrada em oito páginas, o in-8º da descrição de um livro, vai comprimindo o Verbo, o Logos, o Sermo que aqui se pronuncia. Ergo então a memória viva ou de cor (coração)  de algumas pessoas ou seres que mais amo, que mais me tocam e espero que este Amor Divino que nos une abra também mais o teu ser e coração à Divindade, que em ti deve manifestar-se, e que tanto beatifica e harmoniza. »

                                        

                                        
Segue-se, no pequeno vídeo, o Livro exposto aos raios do Sol do arco-íris e do Logos....
                                                                 
                                                          
Possamos nós diariamente expor-nos ou abrir-nos por algum tempo, e em aspiração espiritual, aos raios e correntes de Amor, Sabedoria e Força Divina....
Veja o vídeo de um minuto em: https://youtu.be/5wwsBr9GVhs

Dia Mundial do Livro, 2021. Pequena reflexão e um improviso frente a uma estante repleta de livros...

Nestes tempos de crescente digitalização da vida os livros representam sem dúvida uma das mais lídimas frentes da batalha pela preservação das melhores qualidades da Humanidade, pois são certamente o invento mais importante, logo a seguir aos alfabetos e escritas, enquanto fomentador e preservador do conhecimento, e assim por eles resistimos e avançamos, aos ombros dos que nos antecederam, face a todos charcos em que nos querem atolar.

Comemorarmos o dia Mundial do Livro com algumas formas de culto aos livros, à escrita, aos pensamentos e ideias que melhor possam inspirar os seres na suas peregrinas vidas terrenas é uma obrigação moral, sobretudo para os que mais amam os livros, que os escrevem ou lêem ou que mesmo trabalham com eles, como tem sido o caso de algum de nós mais particularmente.
Todavia, todo o ser em sua vida, é um gerador de amor, de beleza, de sabedoria, de bondade e que o fez, disse, pensou e sentiu de um modo ou outro mais valioso foi escrito e fica no Cosmos nesse grande Livro subtil e divino das vidas humanas.
Sabermos, para além do agir e viver, escrever mesmo, seja em diário, apontamentos, artigos ou livro, melhor, pois enriquecemos o património mundial e passamos aos vindouros algo da chama ardente dos nossos amores e ideais, e assim vamos mantendo um tradição espiritual viva, benéfica e contribuindo para que o planeta e a humanidade não sejam muito destruídos pelos diversos egoísmos, ganâncias, ódios, fanatismos e imperialismos.
O acto de escrever, ou de ler, diariamente, algo com valor é uma obrigação nossa seja para o nosso ser mais profundo, seja para os nossos antepassados e mestres, que aspiram a que os seus testamentos sejam cumpridos ou continuados por nós, e até para a Divindade, fonte primordial de toda a Luz e que tanto se consubstancia nos livros, ainda que subtilmente para o leitor menos atento e sensível.
Frequentar bibliotecas se possível ou termos algumas estantes, ou que seja, apenas prateleiras, com os livros que mais gostamos ou que sentimos que são bons e valiosos sobre certos temas, ou cujos autores e suas vidas e ensinamentos investigamos ou mais ressoam connosco, é também um dever ético e espiritual de cada um de nós que não quer ser apenas um ser manipulado e consumidor, um número controlado pela máquina do Estado, mas um ser criativo e no caminho de vida eterna luminosa.
Sendo hoje o dia Mundial do Livro de 2021, quando o soube ao meio dia, através da Fátima Mateus Ramos, e depois pela Cristina Ferreira, decidi gravar um pequeno improviso, que ficou de cinco minutos (por um telefonema...), diante de uma estante e dos seus livros e autores representados, e que encontrará no fim. Revi depois alguns artigos do blogue escritos no ano passado sobre os livros, e entre as sete pouco e as oito escrevi um livrinho manual de oito páginas, a dado momento às cores do arco-íris, que partilharei brevemente.

Possa o amor aos livros e à sua sabedoria, e logo à biblioterapia, manter-se sempre ou mesmo crescer naqueles que mais os amam, protegem, cultuam e partilham. E neste sentido vão os agradecimentos da ordem do Universo, e da Divindade a todos os escritores e leitores, tipógrafos e encadernadores, designers  e ilustradores, livreiros e alfarrabistas, compradores e vendedores, aos que os oferecem e os que sendo autores os dedicam, aos bibliotecários e catalogadores, aos bibliófilos e amigos dos livros, às poetisas e às narradoras de histórias, a quem nos ensinou a ler ou ainda hoje ensina...

 Um novo ano com belos e valiosos livros e leituras, investigações e descobertas, escritas e partilhas, para que nós e a Humanidade e o Planeta melhorem...

                         

quarta-feira, 21 de abril de 2021

"Apologia da Árvore", por Guilherme Felgueiras. Palestra no Dia da Árvore em 1917, em Cortegana.

APOLOGIA DA ÁRVORE, por Guilherme Felgueiras, Agricultor Diplomado e Regente Florestal. Trecho duma palestra realizada na Cortegana – Arbor Day - 1913, e impresso em 1917 na Tipografia Sequeira, Porto, é uma obra muito bela e que revela notáveis conhecimentos do que mundialmente se fazia com as árvores, e com indicações, quem sabe, que nos motivarão a certos trabalhos com elas. Destinada a crianças e jovens, está numa linguagem simples que dispensa comentários, embora com termos hoje já raros. Li-a há uns meses a um sábio do Gerês transmontano, o Manuel Afonso, de Sirvozelo, já nos seus oitenta anos e que apreciou e confirmou  alguns dos costumes etnográficos referidos por Luís Guilherme Felgueiras. Esta seria a parte que mais se poderia aprofundar em comparativismos etnográficos valiosos, mas fica para outros ou para outra vez. Realcemos apenas o conhecimento amplo por parte de Guilherme Felgueiras do importante papel que as árvores e os espíritos da natureza (embora não mencione as dríades) tiveram nas religiões antigas e como ainda hoje se conservam em alguns aspectos ou tradições delas, e destacaríamos o Shinto, e como tantos dos melhores escritores testemunharam o seu amor ou culto das árvores.

Avancemos então no amor às árvores, algo tão necessário face à moda arboricida e descartável que alguns presidentes de Câmaras e de Juntas de Freguesias têm intensificado em Portugal, em especial nas grandes cidades, algo que alguns grupos no Facebook denunciam infrutiferamente quase diariamente, ou propõe reflorestações e alternativas agro-biológicas, tais como a Plataforma em Defesa das Árvores,  Alvorecer Florestal e o Montado do Freixo do Meio.

Foi dedicada "A meu querido pai e meu santo amigo". E numa bela letra manuscrita a tinta azul-violeta, no exemplar que a amiga Cláudia Lopes graciosamente transcreveu, lemos a dedicatória ao escritor e amante da  Natureza,  Mário Kol de Alvarenga (1892-1967):


* Breves noções históricas sobre a árvore; seu papel nas práticas religiosas; seu valor e propriedades. A lã, o leite e o marfim vegetais. A árvore julgada por notabilidades literárias. 

«Coube à árvore, desde a infância dos tempos, uma missão generosa e divina. Quando o homem, ingénito aventureiro, se arriscou a pastorear os bucólicos rebanhos e a agricultar os terrenos maninhos, tornando-os fecundos, foram as árvores, cheias de pompa e fragância, que lhe indicaram, num doce sorriso de irmãs, a quadra propícia para a oportunidade dos amanhos: na primavera toucando-se de flores, no estio e no outono cobrindo-se de frutos, no inverno despojando-se de folhas que, ao cair, são «lágrimas das árvores em reza». (Garcia Pulido.)

As árvores constituíram objecto de veneração dos povos primitivos e tiveram um papel preponderante nas práticas religiosas. Os Faunos e Silvanos foram os primeiros ídolos de nossos avós, os bosques espessos e maciços escusos seus primitivos templos, como assevera a mitologia e Plínio o constatou nesta frase substanciosa: «Hœc fuere numinum templa» [Estes foram os templos dos numens ou deuses]. O carvalho era consagrado a Júpiter, o loureiro a Apolo, a oliveira a Minerva, o pinheiro a Pan, Demeter, Artémis e Cybele. 


                                              'Orpheus' by Jan Brueghel (I).JPG 

Segundo a lenda, Orfeu, personagem mitológica, arrancava da lira sons tão harmoniosos que, para ouvi-lo, as torrentes sofreavam as águas, as árvores desciam das montanhas alterosas e as feras acudiam ao tropel, selvagens, velozes, desenfreadas…; fascinados pelos seus cânticos, os homens trocaram a quietude das densas florestas, povoadas de mitos, pelo tumulto citadino onde progressivamente se elevaram pela ciência e pela civilização. 


A coroa que cingiu por demorados anos, nas escolas de medicina, a fronte dos doutorados, era feita de vergônteas de loureiro, guarnecidas dos seus frutos baciformes, como o confirmam os títulos de bacharel e bacharelado (bagas de louro, baccœ laureœ). As estátuas de Esculápio, deus da medicina, coroadas de loureiro e os ramos desta árvore colocados à porta dos enfermos, anunciavam a plena confiança que se tinha nas suas virtudes medicinais. Os ramos de louro e de carvalho, entrançados em coroa, ornavam entre os romanos a cabeça dos que se distinguiam (Garcia Pulido)  pelos seus feitos heróicos. Hoje, nestes tempos positivistas da telegrafia sem fios de Marconi, dos couraçados de Lome e da fotografia da palavra de Marage, o loureiro é querido pelas suas folhas condimentares e o emblema imaculado e transcendente foi-lhe desvirtuado, como o atestam aqueles satíricos versos da Morte de D. João:

« A coroa de loureiro, a coroa eterna
Que de Homero cingiu a larga fronte,
Vejo-a agora, nem sei como isto conte,
Pendente dos umbrais de uma taberna!»

Nossos errantes antepassados, hercúleos e sóbrios, divagavam pelas florestas, munidos de machados de sílex, gravando nas árvores patriarcais as suas imortais descobertas e buscando nas mesmas árvores o seu frugal alimento: frutos cor de oiro e cor de púrpura e pão grosseiro feito de landes de carvalho. Pernoitavam no côncavo das árvores e veneravam o altivo pinheiro, considerando os seus verticilos, como dóceis protectores das neves e desabridas ventanias. Ainda hoje perduram reminiscências deliciosas do culto primitivo e nas solenes festas do Natal não falta o pinheiro legendário, ajoujado de brinquedos hilariantes, onde os olhos da gárrula pequenada descansam elevados. Quando o Natal se avizinha, os lavradores mais devotos e opulentos das nossas rústicas aldeias sertanejas mandam cortar um ramo ao mais vigoroso pinheiro, que é solenemente posto sobre a lareira. Na tradicional e festiva noite de 24 de Dezembro, acende-se o ramo que rechina até alvorecer, guardando-se com devotado recato o que escapar das chamas, pois, segundo crêem os ingénuos camponeses, tem, além de outras miríficas propriedades e virtudes, o condão de os preservar dos raios.
Os gregos, que tudo foram em matéria de beleza, dignificaram a oliveira, convertendo-a em símbolo da sabedoria, da abundância e da paz; em alguns países os aldeãos, de costumes puros e simples, colhem ramos dessa árvore quando pressentem que o granizo lhes ameaça as culturas. Nos nossos bíblicos olivais nota-se, durante a faina da colheita da azeitona, um ressurgimento bárbaro, um regresso à animalidade, tal a maneira impiedosa como são açoitadas essas árvores de pacífica folhagem, a que o lírico [António Correia d'Oliveira] delicadíssimo do Coração das Árvores e do Pinheiro Exilado, notou «um ar compassivo de enfermeiras». 

Bem possuído das belezas do arvoredo, Fialho [de Almeida] escreveu aquela frase mística, cheia de candura evangélica: «se eu tivesse uma filha, ensinar-lhe-ia a ouvir a missa das florestas, e a pedir a bênção às árvores, como a velhos vovós»; e Junqueiro, cheio de fervor religioso, escreveu aquele trecho rutilante, velado de misticismo, a propósito dessa majestosa catedral de verdura, que se chama Buçaco: «…é uma floresta sagrada, espiritual. Paisagem para um santo, para uma grande alma contemplativa e cheia de amor: Beethoven ou S. Francisco de Assis». 
É justificável a aspiração de Tolstoi, o excelso pensador russo e sublime evangelizador, em desejar uma sepultura humilde, rodeada de árvores rumorosas, no retiro da sua propriedade de Isnaia Poliana; teve razão Alfred de Musset, em pedir em versos harmoniosos, um salgueiro de ramaria graciosamente pendente, debruçado na sua campa:

«Quand je mourrai, mas amis,
Plantez moi un saule au cemitière».

Petrarca, numa hora de preito e de saudade, plantou na sepultura de Virgílio, o doce épico latino, um loureiro simbólico e verdejante.
                                                                        * **
As árvores – essa glória da floresta – como as define o delicado autor da Via -Láctea, são sempre divinas, sempre amorosas, sempre sublimes…nas orlas dos parques, nos flancos das montanhas ou refrangindo-se nos arroios murmurantes.
As árvores têm arquitecturas delicadas e transcendentes. Parece que as suas viçosas frondes, onde as toutinegras derriçam, foram buriladas por artistas hábeis. Que airosidade nos meneios dos choupos, chamando-nos em acenos de carícia! Que altivez nas perfiladas silhuetas dos pinheiros, graves e bravios como uma lição heróica! Que sentimental poesia nas desgrenhadas ramarias dos salgueiros, verdes como lágrimas de ondinas!
As árvores são «criaturas de Deus» [Justino de Montalvão] e deveriam merecer-nos o mais enternecido amor neste ridente país de céu divino, de poentes esbatidos e de madrugadas rutilantes e virginais. É do adorável e dulcíssimo Michelet, este conceito sublime: «a árvore é semelhante à mulher: virgem em Abril, mãe no Estio, avozinha no Outono».
Ao contemplar as árvores, a alma lusa sente-se humilde, pois elas falam-lhe enternecidamente da grandeza do passado. O freixo, a árvore de Marte, era escolhido para construir as lanças de Ulisses, o prudente grego; de madeira se formaram as carcaças das altaneiras caravelas dos feitos gloriosos de Gil Eanes, Pêro de Alenquer, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães.
As árvores acham-se povoadas de harmonias – música dos ninhos, murmúrio da folhagem, ramalhar das frondes – e têm contribuído, desde épocas remotas, para as longas hora de prazer espiritual que nos deleitam. Atribui-se a descoberta dos instrumentos músicos de sopro, ao sibilar do vento nos colmos perfurados dos densos canaviais que escoltam as margens do Nilo. As flautas primitivas eram de lódão, buxo ou formadas de traços de cana. Stradivarius escolheu uma variedade de abeto – abies pectinacta – para construir os seus feiticeiros e gemedores violinos, em que adquirem supremo enternecimento as suavíssimas composições de Beethoven e os inspirados trechos melódicos de Schubert.
Foi a árvore que, no final do século dezasseis, suscitou ao insigne sábio inglês Newton, a descoberta imutável das leis da atracção universal, a que o poeta alude nestes versos singelos e conceituosos:

«Nos livros há muita asneira,
Nos campos muita razão:
Caiu duma laranjeira
A lei da gravitação».

                                                                   * * *

Tudo se deve às árvores, a essas «verdes amigas» [Afonso Lopes de Oliveira]: a sombra discreta e consoladora, os frutos saborosos, o rústico arado romano, a grade, o carro que passa gemendo ao peso da carrada, o jugo, o poceiro das alegres vindimas, a nora gemedora…enfim, todo esse tema infindável da literatura bucólica e da pintura dos costumes.
Guerra Junqueiro, no seu livro Os Simples, exalta com razão um castanheiro venerando, nestes deliciosos versos, em que o bucolismo virgiliano transparece:

«Como não sentir um entranhado afecto,
Como não amá-lo com veneração,
Se lhe dera a trave que sustenta o tecto,
Se lhe dera o berço onde repousa o neto,
Se lhe dera a tulha onde arrecada o pão!

Fez com ele o jugo e fez com ele o arado;
Fez com ele as portas contra os vendavais;
E com ele é feito o velho leito amado,
Onde se deitara para o seu noivado,
E onde já morreram nos seus avós, seus pais!»

Abençoado povo nipónico que, quando as cerejeiras se toucam de flores, num dia de sol radioso, alvoraçado de alegria, identificado com a Natureza, presta a sua adoração enternecida à árvore. 

                                    

A flora dendrológica fornece-nos, além de preciosas madeiras para marcenaria, construções navais e civis, tanoaria, obras hidráulicas, máquinas, alfaias agrícolas, minas, postes telegráficos e travessas de caminhos de ferro, inúmeros produtos indispensáveis à indústria, tais como: gomas, resinas, essências, fibras, óleos, matérias gordas, borracha, pez, breu, essência de terebentina, negro de fumo, benzina, alcatrão, colofónia, creosote, matérias corantes, etc., etc. As árvore ornamentais e as árvores apícolas têm elevado merecimento, assim como as apropriadas para carvão, ou fornecedores de boa lenha para combustível.
Do sobreiro extrai-se a cortiça, um dos mais preciosos produtos florestais e que tem aplicações múltiplas; o salgueiro branco utiliza-se, nas imediações da romântica cidade do Mondego, na confecção de palitos; o vidoeiro é empregado na indústria de carrinhos de algodão; o zimbro e o cedro no fabrico de lápis; o amieiro em palmilhas de tamancos. As azinhas ou glandes da azinheira, cevam no Alentejo, Estremadura e Algarve muitas varas de porcos; o tecido fibroso que constitui o envoltório do coco – conhecido no comércio com o nome de cairo – é aplicado no fabrico de cordas e de estofos resistentes e os ramos delgados e flexíveis dos vimeiros empregam-se como vincilhos para arcos de vasilhas e fabrico de taipais, cestos, etc.
A pasta de madeira, formada das celuloses do choupo, pinheiro e salgueiro, é desde 1867 a principal matéria-prima do papel em todo o mundo. Da casca do eucalipto, que é fibrosa, fabricam-se cartões e papel comum e a entrecasca da broussonetia papyrifera é aproveitada no Japão e China para o fabrico de papel e tecidos e em Taiti na confecção de chapéus característicos.
As cascas e entrecascas taninosas do castanheiro, vidoeiro, carvalho, sobreiro, salgueiro, eucalipto, azinheira e de muitíssimas outras plantas, servem para curtimenta de peles.
Dos ramos e raízes da canforeira extrai-se, por destilação, a cânfora, empregada em medicina humana e veterinária; a casca da quina tem propriedades febrífugas e grande número de plantas lenhosas são utilizadas em farmacopeia: as coníferas, a tília, o freixo, o ailanto, o choupo, etc. 


A folhagem de algumas árvores é empregada como forragem e a serradura para embalagem de frutos ou, pelo seu grande poder absorvente, para camas de animais.
As árvores têm ainda benéfico efeito sobre o clima, melhorando-o consideravelmente e sobre os cursos de água, regularizando-lhes as directrizes; algumas, como o eucalipto, são saneadoras dos pântanos; o pinheiro bravo fixa as areias movediças, convertendo as dunas em terrenos cultiváveis.
Mas não cessam aqui as preciosidades fornecidas pela flora lenhosa; inclusivamente a lã, o leite e o marfim, são-nos prodigamente cedidos pelas árvores, derivando esta nomenclatura singular, da analogia desses três produtos com o marfim, o leite e a lã propriamente ditos. Assim, as folhas das variedades de pinus australis e sylvestris e de muitas outras coníferas, são utilizadas na cidade de Breslau, na Silésia, depois de fervidas num soluto de carbonato de soda, para o preparo da lã vegetal ou lã de floresta. A solução dissolve os principais resiníferos que impregnam as nervuras filiformes das folhas, permitindo que estas se separem. A substância filamentosa assim obtida, cardada e expurgada de impurezas serve para encher colchões, almofadas, travesseiro e sofás; fiada e tecida, fornece uma espécie de linho cru, muito resistente e higiénico, que se presta admiravelmente para confeccionar diversos tecidos coletes. A água resultante do preparo desta lã vegetal é utilizada pelos habitantes de Breslau contra certas afecções epidémicas e da substância membranosa obtida por filtração, servem-se como combustível, produzindo uma qualidade de gás, que é aproveitado para iluminação caseira.
Os galactodendruns ou árvores vacas, plantas lenhosas de grande porte, que vegetam em copioso número nas florestas do norte da América, dão, por incisão do seu tronco, um latex com sabor e as propriedades nutritivas do leite de vaca, que os habitantes de Caracas utilizam como bebida alimentar e a que propriamente chamam leite vegetal. Esta substância coagulada produz uma espécie de queijo de sabor delicado e uma cera que pode utilizar-se no fabrico de velas.
Uma espécie de palmeira que se desenvolve no Japão e na América do Sul, cientificamente conhecida pelo nome de Phytelephas macrocarpa, produz umas sementes esféricas e volumosas, contendo um perisperma de cor branca e contextura óssea, conhecido pelo nome de marfim vegetal e que, devidamente esculpido, serve para o fabrico de botões, castões de bengalas, broches e bijutarias variadíssimas. Estas sementes – corozo – são susceptíveis de um delicado brunido e recebem com facilidade colorações várias. O suco do fruto dá origem a um licor leitoso, agradável, que pode sujeitar-se à fermentação alcoólica. As sementes pulverizadas e adicionadas à cera, produzem uma substância alva, de extraordinária rijeza, que arde com luz intensa.

                                                                    * * *

O  Dia da Árvore, festa enternecedora, cheia de singeleza e de suavidade, vai-se popularizando nesta bem-amada terra lusitana, cada vez mais considerada no convívio das nações progressivas. Sobre este tema solene – A árvore - soarão por este país fora, alocuções de uma sublimidade grandiosa. Acedendo gostosamente ao amável convite que me foi feito, não quero deixar de também concorrer, com esta palestra frívola e pueril, para a apoteose das árvores, dessas alminhas vegetais, no frasear elegante de Teixeira de Pascoaes o inspirado autor do Sempre.

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 Há entre estes rosados pequerruchos de cabelos anelados que me escutam e estas graciosas arvorezinhas que aguardam, frementes de desejo, o seio ubérrimo da terra, uma dualidade fecunda, uma suave harmonia, um certo alvorecer de esperanças, que enternece e deslumbra.
Os antigos romanos adoptavam a legenda que nesta hora tem uma oportunidade flagrante: "até mesmo brincando se pode ser útil".
Ide, pois, oh santa pequenada, numa romagem garrida e feliz, chalrando de prazer, palpitando de afecto, entoando cânticos de amor, plantar as árvores verdejantes, sob o prazer antegozado de lhes mordiscar, numa ânsia insofrida, os frutos sedutores.»

Imagens: As três iniciais são do livro de Guilherme Felgueiras; a quarta, Orpheus, é de Jean Breugel, o ancião; a quinta é do livro Paradiso, de Dante, na bela versão de Giuseppi Campi; o sexto é do livro de Guilherme Felgueiras; a sétima é uma imagem (íntima...) da famosa propriedade de Tolstoi, a Isnaia Poliana, onde o Jaime de Magalhães de Lima foi encontrar-se com Tolstoi e falar-lhe de Antero de Quental (como conto algures no blogue); a oitava é um postal japonês de 1900, de sakura, o florescer das cerejeiras, em Yokohama, da Biblioteca de Estudos Espirituais; a nona é uma pintura do mestre alemão Bô Yin Râ, e a décima é a vinheta final do livrinho de 18 páginas.