sábado, 10 de abril de 2021

Antero de Quental visto por Fernando Leal: uma compreensão fraterna, um Amor que observa e vence a morte.

Antero de Quental, em 1887, em Ponta Delgada, na fotografia que ele mais gostava e que foi reproduzida no seu In Memoriam, em 1896

A notícia da inesperada partida de Antero de Quental, em 11 de Setembro de 1891, do corpo e da Terra, na terra natal  açoriana, provocou espanto e sofrimento, constrangimento e tristeza funda nos seus amigos, que cedo testemunharam por cartas, artigos de jornais e publicações as suas elegias anímicas em preito  à grande alma que assim subitamente a nau terrena abandonara. Vamos abordar deles apenas Joaquim de Araújo (1858-1911), um dos grandes amigos de Antero, pese a diferença de idade -13- entre os dois, que publica nas semanas a seguir um poema, Na Morte de Antero, belíssimo, o qual se desenvolve sob a epígrafe grega Morrer é ser iniciado, e que já cingimos neste blogue. Vamos ver agora como Fernando Leal (1846-1910), de família natural de Caminha mas já nascido em Margão, e que se notabilizou no Ultramar e na Índia portuguesa, explorador de terras e rotas africanas, militar, escritor, tradutor poeta e também grande amigo de Antero,  insere  entristecido a sua súbita morte, num acrescento a uma obra que estava a publicar e na qual apresentava Antero de Quental e alguns poemas ao público francês, fazendo-o   com uma força extraordinária, realçando-a eu com um sublinhado.  Traduzimos então tal excerto do livro escrito em francês, intitulado Corymbe exotique, dado à luz em Lisboa, na Typographie Franco-Portugais, em 1891.

                                  
«Pode-se ler neste pequeno livro, a através da minha pálida tradução francesa, três composições de nosso grande e lamentado poeta A. de Quental [Mors-Amor, Entre duas Sombras, Divina Comédia]. Este poeta fora de série é o autor das Odes Modernas e de um livro de Sonetos. Este último livro, que se diria sonhado sobre uma montanha ideal, é totalmente excepcional, pelo poder de visão psíquica, pela perfeição serena, austera, sóbria, da ideia e da forma, pela resignação e pela sinceridade, pela emoção dolorosa, pela inefável beleza e pela bondade suprema de que está impregnado. No meu desespero de condensar em algumas linhas (o que eu não conseguiria mesmo fazer em algumas páginas), a poesia e a filosofia deste livro complexo, que reflecte diversas fases do coração e do espírito do poeta, eu confessarei as impressões predominantes em mim próprio, dizendo que o poeta se revela frequentemente como um Job, sentado não sobre o seu estrume, mas sobre uma nuvem, e por vezes mesmo como um Budha, arrepiando e fazendo-nos arrepiar sob o sopro desesperante do nosso fim do século...
Antero de Quental acaba de se matar na ilha de S. Miguel, capital dos Açores, onde ele nascera. Pediu a duas balas do revólver o repouso [nos gnósticos dos 1ºs séculos o Cristianismo, o repouso significa a iluminação, a libertação, e algo disso ficou na oração: Repousa em paz] que o seu espírito superior procurava em vão aqui em baixo.
Esteve errado em desembaraçar-se voluntariamente do seu revestimento material?
O egoísmo da minha amizade responde afirmativamente; ele, terá
talvez razão; em todo o caso a sua morte, sendo um pouco o corolário lógico da sua filosofia, provou a sinceridade nobre da sua vida».
                                                
Eis-nos com Fernando Leal
(em cima, em Velha Goa, numa rara e desconhecida fotografia), um grande amigo  de Antero de Quental, a exprimir os sentimentos causados pela morte do mestre, primeiro elogiando as suas altas qualidades poéticas, filosóficas e morais, segundo admitindo que Antero, não conseguindo encontrar a paz ou a realização, ou repouso, como diz, avançou para a morte destemidamente, porque tal foi quase a conclusão de uma vida em que ela foi não temida mas sim cantada, desejada e amada. Como se Antero de Quental com tal acto tivesse aposto à sua vida e obra o selo de mártir, como se tal preparação tivesse chegado ao amadurecimento.
Como não pensarmos nos dias de hoje no recente mártir iraniano general Qasem Soleimani, vencedor de muito do terrorismo do Médio Oriente, e que há muitos anos desejava ser mártir, shahid, um grande valor na tradição Shia ou Xiita, por causa dos seus doze Imams martirizados, e que sucumbiu aos assassinos dos USA, Arábia Saudita e Israel que cobardemente o mataram?
O Imam Ali a receber Qasem Soleimani quando este morre. E Antero, teve acolhimento ou amparo?  
Ao menos Antero, embora se possa especular no que ele poderia ainda gerar na Terra, teria concluído em grande parte a sua missão, e com o corpo e sistema nervoso incapazes de lhe assegurarem a base de trabalho necessária à sua natureza filosófica e espiritual, preferiu partir voluntariamente, provando assim de facto e in loco que fora sincero nos seus elogios da morte libertadora e que portanto não a temia, vendo nela o meio ou porta para um estado melhor, de repouso dos nervos e da mente. 
Qual foi o estado e plano psíquico subtil em que entrou será sempre um mistério, e os poemas escritos ou recebidos pelo polícia espírita ou médium Fernando de Lacerda, e inseridos no Do País da Luz, em 1919, só nos fazem alvitrar sorrindo que Antero teria perdido no além o seu génio poético, o que o bom senso, aplicado à misteriosa vida no além, rejeita. Mas que Antero se adentrou, lentamente talvez, na via da consciencialização da imortalidade da alma espiritual, e que poderemos rezar por ele, ou então simplesmente dialogarmos com ele ao lê-lo e meditá-lo, não haverá dúvidas...
 

 Foi o seu espírito imortal (o atman indiano) ou eu superior que o impeliu a matar-se, como parece deduzir-se do que diz Fernando Leal, ou estaria antes o seu espírito superior  algo frustrado da menor ligação consciente a ele por parte de Antero, e fora assim portanto antes a personalidade impulsiva deste que resolveu cortar o chamado "fio de prata", que liga o corpo espiritual ao corpo físico, e partir antes do seu tempo natural de morte?
Fernando Leal, quando diz que a sua morte foi um pouco o corolário
da sua filosofia, dá a entender que o corolário da sua filosofia poderia ser outro e não o suicídio e que portanto a sua vasta visão filosófica do universo foi afectada por uns poucos aspectos do seu percurso e realização, que diminuíram Antero na sua plenitude espiritual e amorosa e o levaram a encarar a morte voluntária como sendo acertada para o seu desejo de repouso, que os seus nervos fragilizados e desiludidos ansiavam.

Anos mais tarde Fernando Leal, no seu Livro da Fé, Nova Goa, 1906, no apêndice final em que transcreve algumas cartas de amigos, nomeadamente as maravilhosas que Antero lhe dirigira (algumas já abordadas neste blogue), escritas desde 1880,  exclama assim entusiasmado: «Vejam as cartas de Antero de Quental. Como nelas se revela a bondade nativa da sua alma! A sua ternura, o seu interesse quase maternal pelos seus amigos! E assim se completa essa grande e imperecível figura, primor e glória da nossa raça, ao qual Eça de Queiroz chamava Santo Antero, completa-se o homem das Odes Modernas e dos Sonetos pelo seu lado humano e enternecido».

Saibamos pois cultivar e ser fiéis aos entusiasmos que seres, questões, causas e demandas em nós possam suscitar, arder, saibamos manter o lado humano do amor e da solidariedade e não deixemos que tantas amizades ou vidas se desvaneçam como folhas ao vento outonal. Perseveremos no Amor!

 «Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"» 

terça-feira, 6 de abril de 2021

A nota final das "Odes Modernas" de Antero de Quental. "A vida é a consciência e o espírito". Transcrição e comentário.

 Nas Odes Modernas, dadas à luz na 1ª edição em 1865, já no fim do livro, após a dedicatória inicial a Germano Meireles e os vários poemas, insere Antero de Quental uma Nota extensa de dez páginas que não se encontra transcrita na net completamente e correctamente, pelo que resolvemos transcrevê-la e partilhá-la, a partir da edição original, de 1865, num exemplar dedicado até por Antero do Quental ao publicista, maçon, dramaturgo de muito sucesso (Camilo considerou-o dos modernos, o 2º a seguir a Almeida Garret) e depois deputado, ministro e diplomata, José da Silva Mendes Leal. Anote-se que na 2ª edição das Odes Modernas, de 1875, por decisão de a tornar menos fortemente revolucionária e quem sabe se por influência de Oliveira Martins, tanto a dedicatória a Germano Meireles como a Nota que vamos ler desapareceram...

A Nota  (e sublinhamos partes importantes) contextualiza e apresenta ética, filosófica ou doutrinariamente, com leves pós de ironia, o que Antero sente em si e a circular como veio e atmosfera dos poemas e da época, isto é, um desejo e aspiração grande de vencer as injustiças e erros,  as crenças e sistemas em ruínas do passado, em especial da Igreja e dos governos conservadores , em prol de uma nova Era de que apenas se pressentem e intuem os contornos libertadores trazidos pelo progresso, ciência,  livre pensamento, exame e opinião, amor livre, "consciência e espírito".

O último poema das Odes Modernas, dedicado a Alexandre Herculano, que fora um dos seus mestres política, ética e poeticamente em jovem, explica bem a  admiração e gratidão por todos e tudo que houve de bom, mas que agora, decaído, corrupto e retalhado, já não serve as aspirações de modos de vida e crenças mais justas e racionais, que se terão de reflectir forçosamente numa poesia de verdade, revolucionária, heterodoxa, internacionalista, socializante e libertadora, mas simultaneamente inspirada, sagrada, já que cita até os Vedas indianos. Poesia exigente, que vença as contradições e conflitos internos, e que seja bela mas sincera, justa, verdadeira, livre e amorosa, baseada ou tendendo à consciência e ao espírito. Oiçamos Antero:

NOTA

«Este livro é uma tentativa, em muitos pontos imperfeita, seguramente, mas sempre sincera, para dar à poesia contemporânea a cor moral, a feição espiritual da sociedade moderna, fazendo-a assim corresponder à alta missão que foi sempre a da Poesia em todos os tempos, no Rig-Veda ou nos Lusíadas, em Tirteu [poeta espartano] como em Rouget de L’Isle [o autor da Marselhesa] – isto é, a forma mais pura daquelas partes soberanas da alma colectiva de uma época, a crença e a aspiração. – Partindo desse princípio – a Poesia é a confissão sincera do pensamento mais íntimo de uma idade – o autor, na rectidão imparcial da sua lógica, havia de necessariamente concluir que esta outra afirmação – a Poesia moderna é a voz da Revolução – porque a Revolução é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fonte fatídica do nosso século. Como do seu Deus dizia o apóstolo antigo, in eo vivimus et sumus, podemos nós com mais razão ainda afirmar do grande espírito de revolta da nossa idade – nele e por ele é que somos, por ele e nele é que vivemos. – O ar que a nossa sociedade respira, a atmosfera turva e agitada, mas vivificante, em que vai penetrando dia a dia, não é já composta, não, de boas e pacíficas crenças velhas, de resignação, de obediência, de fé sublime... e cega. Outro é o ar! Abrem-se os olhos para ler as contradições dos santos, dos venerandos, dos excelentes livros antigos. Estendem-se as mãos para palpar, sob os vestidos de brocado dos bons ídolos doutrora, o pau de que eram feitos... e o ferro também muitas vezes. A quem há dois séculos fizesse, a metade que fosse, disto tudo, enforcavam-no sete vezes os Reis, como a réu de lesa-majestade, e os Padres, como a ímpio e sacrílego, queimavam-no sete vezes setenta vezes. Nós hoje fazemos tudo isto, e preparamos nossos filhos para poderem fazer o dobro ou o triplo dentro de alguns anos – e temos a modesta humildade de recusar o nome de revolucionários! e não queremos que nos chamem revolucionários!

Isto é pasmoso – e pasmosamente curioso! Os nossos Ministros de Estado fazem e dizem coisas por que ainda há cinquenta anos seriam generosamente premiados com as masmorras ou a forca. Os nossos Professores ensinam à mocidade as mais audaciosas máximas de livre-exame e independência, o que lhes valeria no século passado uma boa e bem ateada fogueira, convenientemente adornada de cruzes, imagens e outros símbolos de tolerância clerical. Os nossos Jornalistas, esses espantariam Danton e Desmoulins, se Desmoulins e Danton pudessem gozar a inestimável vantagem de ouvir estes mancebos dissertando sobre os direitos da palavra e a omnipotência da opinião... O Estado, a Igreja, o Ensino, a Família, a Arte, a Prosperidade, tudo isto exala hoje um fortum sulfuroso e infernal de heresia e revolução que sufoca – mas tudo isto cora virginalmente de pejo, geme e se aflige com a injustiça, se o não comparam pelo menos com os tempos seráficos de Gregório VII e de Carlos Magno!

Que provam todas estas contradições, esta hipocrisia do tempo, este maquiavelismo inconsciente da nossa sociedade, senão o triunfo da Revolução que domina, penetra, arrasta os seus próprios inimigos e até lhes fornece as mesmas armas com que cuidam feri-la de morte nos seus combates grotescos de pigmeus? 

Prova uma outra coisa ainda, e mais grave, e tristíssima, porque envolve uma ruína moral. É a desorganização, o esfacelamento espiritual de uma classe que foi grande e viva enquanto soube conservar dentro de si a fé e o calor das ideias revolucionárias e que, em menos de cinquenta anos, jaz caída por toda a parte, vacilando à mercê de todos os ventos; e, aí mesmo onde ainda triunfa, perdeu a coragem, a inteligência, a consciência do tempo, de si e da situação actual da sociedade. Descreu das ideias que a fizeram grande e forte; atraiçoou a causa por que fora heróica e nobre: e para logo o espírito da vida a abandonou e a onda santa, retirando-se, lhe deixou nua a sua praia. Ei-la aí está agora, sem abrigo entre as tormentas do passado e as do futuro, sem coragem em face dos inimigos que surgem de cada lado, e – o que é pior – sem inteligência, sem dignidade, ignorante e corrupta. Não há já mão que a possa salvar. O seu nome é contradição. Contradição de origens e de tendências. Contradição de desejos e de condições. Contradição de palavras e de obras. Crê-se revolucionária, é-o pela vontade, mas, sem o querer, estorcendo-se a cada passo, as suas acções são revolucionárias! Com os olhos no passado, caminhando como quem recua, é ela todavia quem abre as estradas por onde a sociedade, que em vão tenta suster, se há-de precipitar para o mundo desconhecido do futuro. A sua cobardia actual, a sua ambição egoísta, a sua corrupta avareza, para tudo dizer, fazem dela uma coisa fatalmente em oposição com as suas origens, com a situação que ela mesmo criou, com as grandes tradições, enfim de um passado de ontem e que já hoje a aflige como um remorso. Metade do corpo quer ir, forceja, precipita-se; mas a outra metade, como sob a influência de um sortilégio mortal, recusa-se ao menor movimento. São as forças contraditórias, desencadeadas pela doença final, que se combatem já sobre esse miserável corpo votado à morte! Daí a cegueira, a banalidade, o medo, a dilaceração interior que caracterizam hoje a classe média – a sua condenação.

Quos Deus perdere vult prius dementat. [Quem Deus quer (ou tem) que perder, primeiro torna-o demente.]

Que os meus quase patrícios de Portugal se não aterrem! Todas essas coisas anárquicas estão a cinquenta e a cem léguas das nossas terras patriarcais e a mil ou duas mil das nossas não menos patriarcais inteligências. Sobre outros tectos, sobre outras searas pairam as nuvens minacíssimas da próxima tormenta! A terra emudece, o ar solta suspiros misteriosos com o pressentimento da tempestade que se avizinha! Mas sob os nossos tectos reina o contentamento dos simples; e, se as nossas searas nos não recusam o pão quotidiano dos crentes, que nos fazem a nós revoluções, democracias, progresso e leis da história? O progresso e a história são alguma coisa de turvo de vertiginoso de incompreensível. Para vivermos livres dos solavancos horríveis do torvelinho social resolvemos nós o problema de um modo todo nosso e a que, ao menos, se não negará originalidade – viver fora da história e do progresso. Era para nós que, há já trezentos anos, Sancho Pança inventava os seus provérbios.  .............

Entretanto o tempo segue impassível o seu caminho e arrasta-nos a todos com as nossas ilusões ou as nossas evidências, com as esperanças, as conjecturas e os desejos, que são bóias com que nos seguramos sobre o mar fundo e escuro que nos levanta e vai arrebatando. Lá se verá então, no termo fatal dessa onda misteriosa,  lá se verá de que banda estavam a razão, a franqueza e a coragem, e de que banda a ignorância, a má-fé e a cobardia. Lá se erguerá uma grande voz, dura e amarga para certos ouvidos, chamando a todos, cada um pelo seu nome, para as recompensas e para as punições...

Todavia a velha sociedade desconjunta-se e, pelas fendas da jangada rota, já se vê claramente a cor de onda que a mina por de baixo e a gasta como um corrosivo violento. Essa cor é negra – mas não é cor de morte. É cor de vida, pelo contrário. De vida para quem, pelo coração, sabe apreciar o valor desta palavra Liberdade; para quem mede pela altura de um desejo humano a grandeza da dívida de ventura que os homens têm direito de exigir ao mundo; para quem, enfim, não compreende amor de Deus e amor do Próximo imposto, escravo, fatal... como se o amor pudesse ser, em vez de espontaneidade e livre atracção, ódio e servidão. – Para os outros todos será cor de morte; mas não serão já mortos esses tais desde a hora primeira do nascimento?

Falemos dos vivos. Os vivos não são os que levantam ruidosamente o pó dessas estradas sob as rodas de seus carros opulentos. Não são também os que falam e se apresentam ante os olhos sensuais da turba envoltos nas dobras enganosas do manto de lantejoulas das frases vagas mas brilhantes com que se captam os sentidos de quem não tem razão nem sentimento. Não são ainda os sábios, profetizando do centro de suas nebulosas, lançando, em meio das nuvens de palavra, os oráculos de uma ciência sem fé e sem alma, vendida aos factos, à espera sempre dos acontecimentos, para se inspirar deles na composição artificial de sistemas, que o Mundo aceita porque o absolvem, mas que rejeita a Razão porque não são livres. Os vivos, enfim, não são os que mais o parecem; os ruidosos, os activos que já de longe se vêem e ouvem: como em tempo de epidemia não está a saúde no homem que anda, gesticula e corre, encobrindo sob a agitação febril o veneno do mal que em breve o fará cair extenuado. Tudo isso que por aí tumultua, freme e enche o ar de ruídos, obedece à excitação da febre precursora da morte. A vida não é o movimento desordenado: e nos gestos deles não há harmonia nem ordem. Tudo isso é o gozo e a matéria: mas a vida é a consciência e o espírito.

Espírito e consciência! eis aí o nome do futuro. Ao presente (chame-se ele embora Igreja ou Estado, Ensino ou Direito, Propriedade ou Indústria), ao presente cabem-lhe seguramente os epítetos de grande, ruidoso, importante e ainda talvez de seguro. Ah! Porque não havia ele também de merecer o nome de consciencioso e espiritual? Poupar-se-iam assim à história algumas e bem amargas tristezas que já lhe estão iminentes! Mas não podia ser. Não se serve bem a César e a Cristo ao mesmo tempo. Ao pobre, ao deserdado dos bens do mundo, que lhe deixaria então a Justiça eterna, se até os bens da alma pudessem ser feudo exclusivo de ingratos opressores? Se até a flor da verdade, chamada espírito, pudesse também servir para adornar a coroa usurpada de embusteiros e tiranos? Órfãos, abandonados no grande deserto social, ficou-lhes ao lado, só e invisível, mas eterna e irresistível, a Justiça de uma causa que há-de triunfar porque é a causa da razão e da verdade.

É nestes que reside a Consciência É nestes que habita o Espírito. Escuros sim e confusos (porque de propósito lhes fazem a noite em volta) mas lá estão no fundo, bem no fundo do coração dos oprimidos, esses brilhantes de inestimável preço, que o futuro há-de polir para a coroa imperial da rainha que se espera, a Liberdade dos povos! E se o povo parece ignorar, na sua miséria extrema, o tesouro que tem dentro; se descrê e – embrutecido Esaú – está a ponto de vender esse morgado de Deus pelo prato de lentilhas que ironicamente lhe oferece um irmão bárbaro e avarento – não se jubilem excessivamente com isso os Jacobs das cortes, das sacristias e dos parlamentos! O contrato odioso não se passa hoje, como outrora, em pleno deserto arábico, onde a única testemunha que podia intervir, Jeová, tinha o natural embaraço de ser cego e surdo. Hoje Jeová deixou enfim as alturas e habita modestamente entre os homens, transformado em alguns centenares de pequenos deuses bastantemente satisfatórios que vêem e ouvem melhor do que se fossem deuses grandes. São esses que andam a pregar ao povo o que o grande antecessor deles, o defunto Senhor dos Exércitos, não consentiu jamais que Moisés revelasse aos filhos de Israel = o direito do homem em face do seu semelhante: o direito do homem em face da Natureza: o direito do homem em face de Deus. = São esses a quem pertence o futuro – porque o número deles aumenta dia a dia – porque do céu, que eles prometem, todos podem ver a escada, solidamente construída de razão e de justiça – porque falam aos pobres, porque os chamam a si; e os pobres quem os contar no mundo há-de achá-los tão numerosos como as lágrimas que os ricos têm feito chorar – porque, enfim, um instinto secreto adverte a todos de que a verdade está na palavra daqueles homens, para cujo triunfo conspiram ainda os seus mais ferozes inimigos. Estes é que são os apóstolos de um Evangelho tão grande que pode conter no seio todos quantos têm pregado ao norte e ao sul, os Cristos de todas as raças e de todas as cores. Estes são, finalmente, a Igreja militante da Revolução e, como a Igreja antiga dos Confessores, os únicos vivos no meio da multidão inumerável dos que existem. O ponto são, o ponto sensível do corpo tão doente da nossa sociedade é aquele só, porque o resto, inerte e adormecido, só acorda um momento para uma vida fictícia com a excitação galvânica, artificial do prazer ou da ambição. A consciência do homem, a independência do espírito, a santidade do direito, isso é o que menos importa a essa turba de especuladores que, desde a Praça do Comércio até aos Parlamentos e aos Senados, se revolve vertiginosamente no chão da pátria, como vermes sobre um cadáver, alimentando de putrefacção uma vida votada a uma impureza incurável. 

No meio disto, o que há aí de humano, de animado, de vital, senão o instinto ardente, o sentimento profundo de dignidade espiritual que, reagindo contra tantas misérias, dá por alvo aos desejos dos homens a máxima liberdade moral, a independência da alma, a sua emancipação do jugo dos Dogmas enganosos – em Política como em Religião, na Economia como na Moral?

Reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e dos Governos tirânicos, dos Deuses e das Religiões inúteis e ilusórias (*Nota: Ateísmo social - anarquia individual - é a formula precisa e clara das escolas mais avançadas de França e Alemanha). E escusado citar: Proudhon: a Justiça na Revolução e na Igreja; o Princípio Federativo; Criação da ordem na humanidade, a revolução social e o golpe de Estado.; etc., etc. Quinet: Génio das Religiões, Cristianismo e Revolução Francesa, etc., etc. Renan: Estudos Religiosos; Ensaios de Crítica. Michelet: o Povo; a Reforma; a Renascença, Bíblia da Humanidade, etc. Dolfus: Cartas Filosóficas, Revelação e Reveladores; etc. Taine: Críticas. Littré: Palavras de Filosofia positiva; Conservação, Revolução e Positivismo; etc. - e os alemães, H. Heine: da Alemanha; Lutece; a França.  B. Bauer: Críticas. Feuerbach, a Religião; Essência do Cristianismo. Dr. Bucher: Força e Matéria.) – é este o mais alto desejo, a aspiração mais santa desta sociedade tumultuosa que uma força irresistível vai arrastando, ainda contra vontade, em demanda do mistério tremendo do seu futuro.

Esta voz, se é a mais alta, deve também ser a mais poética. A poesia que quiser corresponder ao sentir mais fundo do seu tempo, hoje, tem forçosamente de ser uma poesia revolucionária. Que importa que a palavra não pareça poética às vestais literárias [António Feliciano Castilho] do culto da arte pela arte? No ruído espantoso do desabar dos Impérios e das Religiões há ainda uma harmonia grave e profunda para quem a escutar com a alma penetrada do terror santo deste mistério que é o destino das Sociedades!

Está dada a razão deste livro.

Coimbra - Julho de 1865.»

Tentemos cogitar e assimilar as grandes verdades intuídas e deduzidas por Antero de Quental e tão bem expostas,  com grande entusiasmo revolucionário e idealismo, bem numa linha que Tolstoi desenvolverá também, mas que infelizmente vemos como foi impedida e corrompida em quase toda a parte, entrando-se nesta terceira década do século XXI cada vez mais submetidos a novas formas de censura e de tiranias...

E procuremos meditar e sentir, vivenciar e aprofundar mais o fecundo mantra anteriano, até hoje talvez por raríssimos descoberto e utilizado: "A vida é a consciência e o espírito"....

Votos de boas práticas de justiça e sobriedade na vida, e amorosas e meditativas, em sintonia com o ardor juvenil e perene anteriano, externa e internamente... 


segunda-feira, 5 de abril de 2021

Hipólito Raposo, a "Coimbra Doutora": "Liberdade e Amor", Antero de Quental e os fiéis dos ideais.

                                               
 Hipólito Raposo (1885-1953) foi um homem da serra da Gardunha (nascido na vila de S. Vicente da Beira), um beirão rijo e sincero, que desde cedo manifestou tanto grande capacidade de estudo e inteligência como corajosa fidelidade aos seus ideais, o que ao longo da vida o levou aos cárceres e desterros. Professor, advogado, jornalista, foi um monárquico, integralista e democrata pelo que acabou por estar quase sempre do lado dos derrotados ou perseguidos mas a sua vida foi fecunda deixando descendência, amizades, exemplos, lembranças e valiosas obras. Por exemplo, uma que se poderia reeditar, de 1917, Outro Mundo. Lembranças da Terra e dos Homens, onde presta uma bela homenagem às suas raízes da montanha sagrada da Gardunha...
                                        
Recentemente, catalogando o arquivo de Alberto Monsaraz, seu íntimo amigo, pude aperceber-se por cartas e escritos da grande sensibilidade, integridade e coragem de Hipólito Raposo e passando-me há dias pelas mãos a sua 1ª obra, Coimbra Doutora, 1910, com 25 anos mas já tão bem estruturada e investigada que resolvi homenageá-lo a ele e a Antero de Quental, pois inevitavelmente escrevendo (e enquanto estudava) uma história da Coimbra universitária e cultural (que bem poderia ser reeditada), algumas páginas dedicaria à geração coimbrã de Antero, e as suas aspirações e lutas, bem como às peripécias entre  governo, reitor, professores e alunos.
Oiçamos então a visão de Hipólito Raposo, quando estudante de Direito, sobre os que o antecederam, na Coimbra Doutora, impressa em Coimbra em 1910, ainda em tempo da Monarquia, com prefácio bem contextualizante de Júlio Dantas, grande amigo de Macedo Papança (e do seu filho Alberto, com centenas de cartas trocadas), 1º conde de Monsaraz, a quem aliás Hipólito dedica a obra, e com os capítulos dispostos cronologicamente: Geerall Studo, (D. Diniz e a fundação), Conquista & Navegaçã, (o ambiente do séc. XV e começo do XVI), Athenas esse credimus (excelente descrição da vida no esplendor de vida livre e pitoresca da cidade universitário no séc. XVI, «quando Camões escrevia para um dessas festas o Auto dos Emfatriões e coadjuvavam-no os seus amigos e companheiros, Jorge Ferreira de Vasconcelos e o doutor António Ferreira.»), Apagada & vil tristeza (crítica aos jesuítas, à Inquisição, à censura e perseguição a Damião de Goes, a André de Resende e outros), O Marquês (restauração de estudos, com os Novos Estatutos), e finalmente Liberdade e Amor (o séc. XIX, a luta pela modernização e europeização, a geração de Antero) e Cemitério de Saudades, no qual conclui com uma nota de certa tristeza pelo apagamento de muito do tradicional conimbricense: «O rio não há quem o cante, espavoridas, desgrenhadas, fugiram as Mundágides, no dia em que o comboio passou a rir em gargalhadas de ferro fundido. Para a banda das Lágrimas, já o dedo hesita em apontar a fonte que vira o martírio da linda Ignês, cuja lenda tristes amores não conseguiu enternecer a seca erudição dos arqueólogos.» 

A obra contém ainda no apêndice quatro valiosas Notas, onde podemos constatar que Hipólito Raposo não ocupava o seu tempo só no estudo dacjurisprudência mas pesquisava nos manuscritos da vetusta e bela biblioteca joanina, donde transcreve alguns documentos bem valiosos, tal o até então poema inédito de Simeão Torresão Coelho, sobre participação dos estudantes nas guerras da Restauração.
                                  
Oiçamos então do capítulo Liberdade e Amor, após as páginas iniciais dedicadas à época inicial do liberalismo e às lutas entre estudantes e habitantes, os futricas, culminadas em 1854 com a Tomarada, o ambiente das décadas de 60-70, quando após a publicação das Odes Modernas de Antero e a crítica de Castilho rebentou a Questão Coimbrã (1865), que Hipólito refere suavemente: «A vida escolar era uma sequência de cinco anos de formatura em ódio aos códigos e medo ao lente, sem manifestações de vitalidade ou força, até que o núcleo intelectual de que sairia a escola coimbrã, reagindo contra velhas teocracias e assimilando as novas correntes filosóficas e estéticas, alargou os horizontes do pensamento.
Liam-se com avidez Strauss, Hegel e Müller, entrava o espírito crítico com Renan e Michelet e as ideias socialistas de Fourier e Proudhon.
O ensino era atrasado, a voz dos mestres, parecia vir da distância dum século – alheios todos aos estudos de economia e religião e à política europeia que tão vivamente interessava os espíritos moços.
Sentia-se demolir o passado, o curso da Universidade era uma penitência a cumprir para entrar decentemente na vida, ouvindo ronronar longas citações latinas de fradescos prelectores que punham à prova a paciência daqueles iconoclastas que já riam da missa ao Espírito Santo.
A Universidade, nublada de fórmulas e preconceitos, não distinguia o clarão de largo idealismo que seduzia tantos espíritos de poetas.
«O ar de Coimbra, de noite, andava todo fremente de versos. Por entre os ramos de choupos mal se via com a névoa das nossas quimeras...» [Eça de Queiroz, In Memoriam de Antero de Quental]
A academia de Coimbra redimia o país e fazia-o comungar no espírito moderno, quando numa ou noutra cátedra apenas, se começava a defender, quase a medo, a filosofia do patriarca Augusto Comte.
O Teatro Académico era a escola de retórica. Nele se fizeram brilhantes estreias, prenunciadoras de triunfos parlamentares e forenses.
Lá se representavam dramas e comédias, escritos em três dias, dentro do quarto, ali se aplaudiam grandes notabilidades cénicas e se reuniram as assembleias gerais, abrasadas de cólera.
Generosos até à audácia, insubmissos até ao sacrifício.
Vieira de Castro, rubro de indignação, erguia-se sobre um banco na sala dos Capelos e invectiva ardorosamente a injustiça de um júri.
Para resistir aos rigores disciplinares do reitor Sousa Pinto que tornou obrigatório o uso da volta de padre, meia preta e calção, formou-se a Sociedade do Raio [final de 1860, líderes José Sampaio e Antero] que reunia alta noite, na treva dos pinheirais, como sinistros conspiradores.
A fúria formalista do prelado chegou ao ponto de obrigar a converter a batina na antiga loba, abotoada atrás e riscava dos cursos por um ou mais anos, o estudante de quem tivesse simples denúncias.
Na festa da distribuição de prémios [na sala dos Capelos, a 8-XII-1862], mal ele começou a falar, a academia voltou-lhe as costas, saindo em massa para o pátio. 
 Antero de Quental, luminosa figura de rapaz, que uma geração adorava, redige um manifesto ao país [Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à Opinião Ilustrada do País] que por intermédio dos jornais apreciava injustamente as razões e os intuitos da rebelião, e o reitor foi demitido.
Pouco tempo depois, na primavera de 64, a Academia reunia-se para solicitar da graça régia a isenção da última prova pública que o estudante dá no finalizar do ano.
Alegavam a velha tradição, o exemplo da rainha constitucional em 1838, que dispensara os actos no ano do nascimento do príncipe herdeiro, e acrescentavam lamurientemente:«Uma prece ao trono nunca ficou em silêncio. Não é o perdão que pedimos, aqui não há réu. Pedimos graça: voar depressa ao centro da família, para juntos orarmos Deus pela dilatação das vidas do rei e da rainha de Portugal; para o céu deixar cair orvalho benéfico sobre a existência tão cara e tão necessária do príncipe D. Carlos.»
A representação foi enviada ao doutor Vicente Ferrer, par do reino e reitor, que prometeu interessar-se pelo bom êxito dela perante o chefe do governo, duque de Loulé.
Em poucos dias era expedida uma portaria, negando o perdão do acto e admoestando os suplicantes com razões sensatas, cujo rigor de forma deu pretexto à irritação dos estudantes que provocaram tumultos, queimando à Porta Férrea um boneco de palha, representando o Rolim, o duque, de cujo apelido a questão se chamou Rolinada [Abril de 1864].
Partiram em seguida para o Porto em número superior a trezentos, deixando as aulas quase abandonadas e produzindo nas escolas daquela cidade um grande alvoroço.
O vice-rei por um edital, convidava os rapazes ao regresso, em termos paternais, os habitantes de Coimbra, lesados nos seus interesses, intervinham no conflito, levando uma representação à Câmara dos deputados a pedir medidas conciliatórias.
No parlamento onde Tomás Ribeiro defendia com ardor a representação e a causa dos estudantes, houve longas e agitadas discussões, até que os rebeldes, vendo perdidas as últimas esperanças, voltaram do Porto a recomeçar as frequências, com promessas de amnistia para todos os delitos derivados do movimento.
A questão degenerou do parlamento à imprensa, servindo especulações políticas, pugnou-se pela faculdade de concederem graus académicos as escolas médicas, pediu-se a transferência da universidade para Lisboa, e foi então que começaram os sustos para a população de Coimbra, renovados ao menor motivo.
Os acontecimentos produzidos na ocasião dos actos, violências e tentativas de incêndio às casas de alguns professores que levaram um conselho a suspender os actos, elucidam com alguma clareza a ingenuidade da primeira representação (...)
(...) O centenário de Camões que parece ter acordado dum sono de morte a nação portuguesa, ao ouvir gritar o nome do maior dos seus filhos - teve no seio da Academia intensa repercussão.
Em 1880 fora o notável sarau da Universidade e do Instituto, no ano seguinte era a festa dos estudantes, ruidosa, alta e patriótica cuja memória se guarda em Coimbra inconfundivelmente.
A agitação de espírito que tais festejos despertaram, o grande cortejo de apoteose antes da inauguração do monumento, o entusiasmo dessa última geração que deixou de si alguma coisa útil, fizeram passar um frémito vivificador no corpo do velho Portugal.
A geração do ultimatum ainda sacudiu pelas ruas de Coimbra o seu ódio sincero contra a covardia duma nação poderosa [Inglaterra], mas o país mergulhava tristemente na fatalidade histórica, não lhe escutou os gritos, nem as nobres palavras dum ministro conseguiram erguê-lo para a desafronta, porque a resistência seria uma loucura.»
Anote-se que esta desafronta algo louca foi assumida por Hipólito Raposo quando entrou e lutou em 1919 pela restauração da Monarquia, em especial no Norte, embora em Monsanto, Lisboa, às ordens do corajoso comandante Paiva Couceiro, os feridos fossem os seus  íntimos companheiros Luís de Almeida Braga e Alberto de Monsaraz. E que em 1890, a liderança no Norte, no Porto, da reacção ao Ultimatum (um dos factores que contribuíram para o descrédito e a queda da Monarquia) foi, a pedido dos estudantes, assumida por Antero de Quental, dirigindo a efémera Liga Patriótica do Norte, em sintonia com o que se passava nas ruas de Coimbra... Possamos nós manter a chama viva da cavalaria da "Liberdade e Amor" na qual e pela qual tantos lutaram e se imortalizaram..

domingo, 4 de abril de 2021

Antero de Quental, Cristo e Maomé, ou a unidade da religiões espirituais no céu interior da Verdade.

Nas Odes Modernas, dedicadas ao seu amigo Germano Vieira Meireles e publicadas na Imprensa da Universidade de Coimbra, em 1865, quando Antero de Quental tinha apenas 23 anos e se encontrava na sua fase mais ardente e revolucionária, há bastantes poemas consagrados à religião e mais particularmente ao Cristianismo, frequentemente críticas seja a doutrinas e concepções (tal a de Jehova, a quem chama mesmo o "defunto Senhor dos Exércitos"),  seja a ritos, costumes e privilégios da Igreja.  Entre os vários poemas valiosas duas quadras simples, sem título nem data, mostram-nos Antero a procurar encontrar a solução para os conflitos das religiões, apelando à Verdade que elas têm de conter, seja nos seus aspectos mais rudes e pragmáticos seja nos mais idealistas e abnegados e, embora realçando certos aspectos delas  bons ou menos bons, intui que havendo um mesmo céu atmosférico e provavelmente um mesmo céu espiritual divino, só a este poderemos chegar se caminharmos na busca da Verdade, que está tanto no real, na realidade quotidiana e factual, como no ideal e no idealismo ideológico, e em unidade fraterna ou, numa linguagem actual, em diálogo ecuménico de busca, discernimento e comunhão da Verdade, a que podemos acrescentar ou desdobrar em Bem e Amor...

                                

Talvez possamos acrescentar (tanto mais que não existe na web) às duas quadras (com sublinhados meus), a carta escrita  em Agosto de 1865 quando envia precisamente as Odes Modernas a João de Deus, poeta bem mais lírico e cristão, mas seu grande e indefectível amigo:
            «Meu João
Sei que te nã
o podem agradar as ideias por que este livro conclui! Ofereço-te todavia sem receio, porque tenho fé que não podes senão aprovar os sentimentos que o inspiram e são como o ponto de partida, a base moral das conclusões da inteligência. É uma voz  sincera que pede justiça e verdade; vista assim a obra é aceitável para todos os crentes de todas as religiões, contanto que sejam religiões espirituais. O resto, a maneira por que entendo que a verdade e a justiça se devem realizar, isso, se for falso, é um erro de lógica, não de vontade.» 

Nesta carta vemos Antero tanto defendendo os seus sentimentos porque estão baseados nos valores de justiça, razão, verdade, que são a base de todas as religiões  espirituais, como a aspiração a viver de acordo com eles, trabalhando-os e confirmando-os numa prática de trabalho  pelo Bem  impessoal (ou divino),  acima do ego e da personalidade. 

Oiçamos então Antero de Quental:

«Uns são filhos de Cristo, e os outros de Mafoma:

Uns dão culto a Jehová e os outros a Baal:

Uns o altar do Real ungem com sangue quente:

Outros queimam o incenso às aras do ideal..


Mas se há um mesmo céu, que os cobre a todos eles,

Hão de todos, também, achar a sua unidade...

Unidos Mahomet lascivo e o Cristo pálido...

Nem Ideal nem Real, mas - de ambos - a Verdade.»


Anote-se quando à localização do Céu, que acolhe e une as religiões e perpassa os seres, que anos mais tarde, em 1871, no poema a Ideia, dedicado a Camilo Castelo Branco, Antero de Quental posiciona-se já mais claramente e magistralmente na interioridade, no reino dos céus ou de Deus que está dentro de nós:   

«Lá! mas aonde é ? Aonde? - Espera,
Coração indomado! O céu, que anseia
A alma fiel, o céu, o céu da Ideia,
Em vão o buscas nessa imensa esfera! 


O espaço é mudo - a imensidade austera 
Debalde noite e dia se incendeia…
Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia
A rosa ideal da eterna-primavera

O Paraíso e o templo da Verdade,
Ó mundos, astros, sóis, constelações!
Nenhum de vós o tem na imensidade…

A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,
Só se revela aos homens e às nações
No céu incorruptível da Consciência!»

Saibamos tentar entrar perseverantemente no tão inacessível céu mais puro ou íntimo da consciência, no fundo ou na prática em estados de alma mais iluminados... 

Fiat Lux, por Bô Yin Râ.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

"Ananda", significados: Felicidade, Alegria, Beatitude... Glossário de termos sânscritos importantes.

Ānanda significa beatitude, felicidade, alegria íntima, estado de amor intenso e provêm da raiz nandati, rejubilar. A partir da vivência antiquíssima de busca espiritual dos Yoguis e Ṛṣis,  nos ambientes harmoniosos orientais, surge nas iniciais Upanihads (1º milénio a. C.) o começo de uma intuição e doutrina de que a essência do ser, do espírito, Ātman, é caracterizada como Ananda, felicidade, beatitude.

Por exemplo, na Bhad-ārayaka Upanishad, da qual há uma valiosa tradução pelo amigo António Barahona, nomeadamente na IV. Brahama, 21, diz-se: «Assim como um homem ao abraçar a sua amada nada sabe mais do interior ou do exterior, assim uma pessoa ou ser (purusha) que abraça o seu Eu inteligente ou Espírito iluminado (prajna Atman) não sabe nada de exterior ou interior. Esta é verdadeiramente  a sua forma na qual realiza o seu desejo (kama), no qual o Eu Espiritual (atman) é o seu desejo, no qual está (ou fica) sem desejo, livre de qualquer tristeza.» 

Indica-se assim que quem consegue interiorizar-se suficientemente, quem aspira verdadeiramente ao espírito e se consegue desprender dos objectos dos sentidos e acontecimentos tanto mundanos como mundiais  pode conseguir ligar-se mais a ele e sentir um estado interior denominado felicidade, ananda, uma alegria íntima...

Também é valiosa a citação da Taittirīya Upanishad (III secção, 6ª lição), pois recua a felicidade não apenas a  um reconhecimento humano perante o seu espírito, mas considera-a mesmo como a essência primordial Divina: «Brahman, a Divindade, é Felicidade (Ānanda), pois verdadeiramente todos os seres nasceram de Ānanda e tendo nascido permanecem vivos pela Felicidade e no fim mergulham de novo na Felicidade». 

Mas é na Tejobindu Upanishad, já do séc. IV A. C., quanto a mim uma das mais originais e  certeiras Upanishads,  que encontramos uma mais plena aproximação e descrição do espírito e da sua beatitude, ainda que bastante advaita, ou seja, admitindo pouco a individualização do Atman e reconhecendo antes a identificação de Brahman a Atman, havendo portanto um só Espírito em todos os seres...

Por exemplo no Iº capítulo, verso 5: «Deita fora a preguiça e aprende o supremo segredo, que é sem suporte, subtil e de natureza de beatitude. Este é o mais elevado nível de Brahman, da Divindade.»

 A abordagem do Raja Yoga é bem original e profunda: verso 7: Controlar os sentidos graças à realização de que Brahman é tudo é denominada o verdadeiro controle (yama) e deve-se praticar continuamente». 8: «Niyama,  Observância, é a mais alta felicidade obtida pelo sábio graças à prática regular da Unidade e à rejeição do oposto».  36: «A partir do pensamento puro "Eu sou o Espírito Divino" (Brahman) e pela meditação no Om uma pessoa sente a felicidade mais elevada.» 

Ou nos versos já do cap. V.: «Eu sou por natureza própria consciência. Eu sou constituído de consciência e felicidade. Eu sou não-dual, de forma pura, conhecimento e amor plenos. Eu sou imutável, sem desejos ou irritação. Eu sou desprendido. Eu sou a essência única, ilimitada, totalmente consciência. Eu sou Beatitude sem limites, Beatitude existente e transcendente. Eu sou o Atman que se regozija em si mesmo. Eu sou Sat Chit Ananda, que é eterno, iluminante e puro.»

Dentro dos yogis e filósofos que vivenciaram, aprofundaram e comentaram os ensinamentos das Upanishads, um dos mais sábios, Rāmānuja, que era não-dualista (advaita) e simultaneamente dualista ou dvaita, ou seja, reconhecia haver uma individualização no Atman e que ele não era apenas uma noção ilusória de posse da única individualidade existente, Brahman,  apoiando-se em textos do Vedānta, considerava que Brahman não é Ānanda, mas é o Sujeito, a Divindade, que goza a Felicidade, realçando assim o Eu, o Sujeito Divino, no fundo a matriz e arquétipo de todos os sujeitos ou individualidades emanadas Dele.

Na obra traduzida e comentada por mim, Aṣṭāvakra Gītā, o Cântico da Consciência Suprema, a felicidade surge mais frequentemente expressa pelo  sinónimo sukham, prazer, delícia, embora o seu verso I.10 seja forte no uso da expressão Ānanda, impulsionando-nos na nossa religação à essência interior, luminosa e beatífica: «Tu és essa Inteligência desperta (Bodhaḥ) e Felicidade acima de todas as Felicidades (Ānanda-paramānandaḥ). Vive pois feliz».

Também na Chāndogya Upanishad, num diálogo no IV. 10.5, vemos o discípulo perguntar às chamas de Agni, o Fogo: «Eu compreendo que Brahman é a vida ou a força vital (Prana), mas não que é a alegria e o espaço”. Então disseram-lhe: “A alegria é o mesmo que o espaço. Brahman é a força da vida (prana), Brahman é alegria (Kam), Brahman é espaço em expansão (Kham)”. Então explicaram-lhe o que era o prana e o espaço (akasa).» 

Neste diálogo há uma recomendação de sentirmos mais o espaço infinito como Felicidade, de algum modo pedindo-nos que não estejamos tão presos ao corpo, à mente, ao que nos rodeia, mas que tentemos sentir-nos como seres espirituais bem mais vastos que o corpo e a mente, expandindo-nos livremente acima dos níveis mais terrenos e astrais...

Neste sentido de expansão consciencial para além do corpo físico e do cérebro os Yogis e Vedânticos indianos discerniram cinco corpos (koshas) ou agregados no ser humano, o mais elevado sendo precisamente o ananda mayakosha, o corpo de manifestação de felicidade ou beatitude, e seria de algum toque nele ou de maior ligação a ele, a fonte da felicidade em nós, ou então também um acrescer dele. Nas nossas práticas espirituais e em certos encontros de almas luminosas esta ananda pode brotar fortemente...

Para os não dualistas, os que vêm e valorizam apenas Uma (Ek) Consciência, a Divina, absoluta, o Brahman, ela é ananda, e quando abandonamos o ego podemos senti-la. Não será tanto um nível nosso, mas a Realidade última e Unidade fundacional de tudo e todos.

Mas na realidade, fora dos paraísos artificiais de ashrams, comunidades ou seitas, ou de auto-ilusões de se estar iluminado, a conquista de tal consciência de Unidade Divina ou mais simplesmente de felicidade é uma luta constante contra a dor, o sofrimento, o apego, a desilusão, o ego, as ambições, as limitações e brota mais da nossa aspiração de sermos felizes criativamente, vencendo obstáculos e permitindo que o fogo do amor e do espírito, o atman, se manifeste e irradie em nós, gerando harmonia, alegria e felicidade...

Na tradição monástica e yogi muitos foram os que escolheram ou receberam o seu nome iniciático terminado em Ananda, indicando-se como tal felicidade estaria neles... Conheci vários na Índia, com quem convivi, meditei, aprendi, dialoguei: Swami Kaivalyananda, Swami Purnananda, Swami Ritajananda (este em Retz, Paris), Sat Chit Ananda Dhar, Swami Ranganathananda, etc.

Sat Chit Ananda foi mesmo considerada uma das melhores definições ou caracterizações do ser humano: Sat= Ser, verdadeiro. Chit= Conhecimento, consciência. Ananda= Felicidade, beatitude. E assim Meditei muitas vezes nesta frase: "eu sou Sat Chit Ananda", ou só Sat Chit Ananda,  e ela é sem dúvida um bom mantra para  ajudar a elevar-nos da identificação corporal e à personalidade, e a sairmos das preocupações e atracções dispersivas exteriores. E logo a concentrar-nos, ou sintonizarmos mais com a nossa dimensão e entidade espiritual. E é esta que nos transmite a verdade felicidade a que aspiramos, sendo o seu íntimo ou fonte a Divindade, ainda que na vivência de cooperação e união com os seres e a natureza tal felicidade também brote naturalmente...

Também na Kena Upanishad temos uma aproximação valiosa, no mantra IV, da segunda parte, pratibodhaviditaṃ matam amṛtatvaṃ hi vindate | ātmanā vindate vīryaṃ vidyayā vindate'mṛtam. E, seguindo mais a linha dual de Madva (1238-1317), também conhecido como Ananda Tirtha (Vau de Felicidade), numa tradução diremos: «Quando [a Divindade] é percepcionada intuitiva e directamente e há meditação constante obtém-se o estado imortal (amrita). Pelas acções e a graça do Eu espiritual obtém-se a intensificação da força da felicidade (viryam)».

Já Shankara (700-750), o expoente máximo da linha advaita ou não dual, traduz assim este verso, dando-nos outro ângulo de visão e realização: «Sabe-se de Brahman, quando é conhecido como o que testemunha cada estado de consciência e através disso atinge-se a imortalidade. Pelo seu Eu alcança-se força, e pelo conhecimento, imortalidade.»

As duas diferentes vias de nos alinharmos mais com a Divindade e a sua força e felicidade aqui propostas são de certo modo ora vê-Lo como o Ser que testemunha todos os estados de consciência, o observador puro, ora aceitá-lo como um ser pessoal que pela meditação e graça pode ser mais sentido e religado, com Ananda e devoção, bhakti, a brotarem

"Graça, estado de graça" no qual, de quando em quando, nos sentimos mais por várias circunstâncias luminosas estarem a coexistir na nossa vida do quotidiano e que deixam assim vir ao de cima a beatitude ou felicidade, ananda. Seja pelo amor, seja pelo trabalho bem realizado ou criativo, conforme o mestre Bô Yin Râ, muito  valorizava, e que todos já sentimos, por exemplo, ao concluir um trabalho, uma obra, ou ao chegar ao fim da semana bem trabalhada aos vários níveis. 

Concluamos, relembrando em outros nomes terminados em Ananda, tal Swami Vivekananda, o discípulo mais conhecido do tão místico e beatífico Paramahansa Ramakrishna (na imagem),  e o de Paramahansa Yogananda, cujo mestre Swami Sri Yuktesvar giri (na imagem final) explicou bem  Sat Chit Ananda no seu valioso livrinho, A Ciência Santa, (Holy Science, 1984) no qual em poucos sutras condensou grande sabedoria espiritual. Leiamos os sutras  16 a 21, do cap. II: «Existência, consciência e felicidade são os três desejos-aspirações.

Ananda, beatitude-felicidade, é o contentamento do coração atingido pelos caminho e meios sugeridos pelo salvador, o verdadeiro mestre (Sat Guru).

Chit, consciência verdadeira, causa a destruição completa de todas as perturbações e o erguer de todas as virtudes.

Sat, existência, é atingida pela realização da permanência da alma-espírito. 

Estas três qualidades constituem a natureza real do ser humano. 

Todos os desejos sendo satisfeitos, e todas as misérias removidas, a realização de Paramartha (o mais elevado objectivo) é alcançada.»

Embora haja talvez um certo exagero nos "todos" e "todas" empregados, realcemos "o contentamento do coração", nivel e sensibilidade que devemos cultivar, e que advém de estarmos a viver correctamente e tentando consciencializar-nos mais permanentemente possível do espírito.

Vencendo as negatividades ambientais, criativamente, que a ligação ao Bem (nomeadamente, através do lema da tradição espiritual portuguesa, talant de bien faire), ao Espírito, ao mestre, ao anjo, à Divindade e logo a Ananda, felicidade ou beatitude, viva e emane mais mais em nós e de nós, em nós ou laços de Amor, como fiéis cavaleiros e cavaleiras dele e do Dharma...