sexta-feira, 2 de abril de 2021

"Ananda", significados: Felicidade, Alegria, Beatitude... Glossário de termos sânscritos importantes.

Ānanda significa beatitude, felicidade, alegria íntima, estado de amor intenso e provêm da raiz nandati, rejubilar. A partir da vivência antiquíssima de busca espiritual dos Yoguis e Ṛṣis,  nos ambientes harmoniosos orientais, surge nas iniciais Upanihads (1º milénio a. C.) o começo de uma intuição e doutrina de que a essência do ser, do espírito, Ātman, é caracterizada como Ananda, felicidade, beatitude.

Por exemplo, na Bhad-ārayaka Upanishad, da qual há uma valiosa tradução pelo amigo António Barahona, nomeadamente na IV. Brahama, 21, diz-se: «Assim como um homem ao abraçar a sua amada nada sabe mais do interior ou do exterior, assim uma pessoa ou ser (purusha) que abraça o seu Eu inteligente ou Espírito iluminado (prajna Atman) não sabe nada de exterior ou interior. Esta é verdadeiramente  a sua forma na qual realiza o seu desejo (kama), no qual o Eu Espiritual (atman) é o seu desejo, no qual está (ou fica) sem desejo, livre de qualquer tristeza.» 

Indica-se assim que quem consegue interiorizar-se suficientemente, quem aspira verdadeiramente ao espírito e se consegue desprender dos objectos dos sentidos e acontecimentos tanto mundanos como mundiais  pode conseguir ligar-se mais a ele e sentir um estado interior denominado felicidade, ananda, uma alegria íntima...

Também é valiosa a citação da Taittirīya Upanishad (III secção, 6ª lição), pois recua a felicidade não apenas a  um reconhecimento humano perante o seu espírito, mas considera-a mesmo como a essência primordial Divina: «Brahman, a Divindade, é Felicidade (Ānanda), pois verdadeiramente todos os seres nasceram de Ānanda e tendo nascido permanecem vivos pela Felicidade e no fim mergulham de novo na Felicidade». 

Mas é na Tejobindu Upanishad, já do séc. IV A. C., quanto a mim uma das mais originais e  certeiras Upanishads,  que encontramos uma mais plena aproximação e descrição do espírito e da sua beatitude, ainda que bastante advaita, ou seja, admitindo pouco a individualização do Atman e reconhecendo antes a identificação de Brahman a Atman, havendo portanto um só Espírito em todos os seres...

Por exemplo no Iº capítulo, verso 5: «Deita fora a preguiça e aprende o supremo segredo, que é sem suporte, subtil e de natureza de beatitude. Este é o mais elevado nível de Brahman, da Divindade.»

 A abordagem do Raja Yoga é bem original e profunda: verso 7: Controlar os sentidos graças à realização de que Brahman é tudo é denominada o verdadeiro controle (yama) e deve-se praticar continuamente». 8: «Niyama,  Observância, é a mais alta felicidade obtida pelo sábio graças à prática regular da Unidade e à rejeição do oposto».  36: «A partir do pensamento puro "Eu sou o Espírito Divino" (Brahman) e pela meditação no Om uma pessoa sente a felicidade mais elevada.» 

Ou nos versos já do cap. V.: «Eu sou por natureza própria consciência. Eu sou constituído de consciência e felicidade. Eu sou não-dual, de forma pura, conhecimento e amor plenos. Eu sou imutável, sem desejos ou irritação. Eu sou desprendido. Eu sou a essência única, ilimitada, totalmente consciência. Eu sou Beatitude sem limites, Beatitude existente e transcendente. Eu sou o Atman que se regozija em si mesmo. Eu sou Sat Chit Ananda, que é eterno, iluminante e puro.»

Dentro dos yogis e filósofos que vivenciaram, aprofundaram e comentaram os ensinamentos das Upanishads, um dos mais sábios, Rāmānuja, que era não-dualista (advaita) e simultaneamente dualista ou dvaita, ou seja, reconhecia haver uma individualização no Atman e que ele não era apenas uma noção ilusória de posse da única individualidade existente, Brahman,  apoiando-se em textos do Vedānta, considerava que Brahman não é Ānanda, mas é o Sujeito, a Divindade, que goza a Felicidade, realçando assim o Eu, o Sujeito Divino, no fundo a matriz e arquétipo de todos os sujeitos ou individualidades emanadas Dele.

Na obra traduzida e comentada por mim, Aṣṭāvakra Gītā, o Cântico da Consciência Suprema, a felicidade surge mais frequentemente expressa pelo  sinónimo sukham, prazer, delícia, embora o seu verso I.10 seja forte no uso da expressão Ānanda, impulsionando-nos na nossa religação à essência interior, luminosa e beatífica: «Tu és essa Inteligência desperta (Bodhaḥ) e Felicidade acima de todas as Felicidades (Ānanda-paramānandaḥ). Vive pois feliz».

Também na Chāndogya Upanishad, num diálogo no IV. 10.5, vemos o discípulo perguntar às chamas de Agni, o Fogo: «Eu compreendo que Brahman é a vida ou a força vital (Prana), mas não que é a alegria e o espaço”. Então disseram-lhe: “A alegria é o mesmo que o espaço. Brahman é a força da vida (prana), Brahman é alegria (Kam), Brahman é espaço em expansão (Kham)”. Então explicaram-lhe o que era o prana e o espaço (akasa).» 

Neste diálogo há uma recomendação de sentirmos mais o espaço infinito como Felicidade, de algum modo pedindo-nos que não estejamos tão presos ao corpo, à mente, ao que nos rodeia, mas que tentemos sentir-nos como seres espirituais bem mais vastos que o corpo e a mente, expandindo-nos livremente acima dos níveis mais terrenos e astrais...

Neste sentido de expansão consciencial para além do corpo físico e do cérebro os Yogis e Vedânticos indianos discerniram cinco corpos (koshas) ou agregados no ser humano, o mais elevado sendo precisamente o ananda mayakosha, o corpo de manifestação de felicidade ou beatitude, e seria de algum toque nele ou de maior ligação a ele, a fonte da felicidade em nós, ou então também um acrescer dele. Nas nossas práticas espirituais e em certos encontros de almas luminosas esta ananda pode brotar fortemente...

Para os não dualistas, os que vêm e valorizam apenas Uma (Ek) Consciência, a Divina, absoluta, o Brahman, ela é ananda, e quando abandonamos o ego podemos senti-la. Não será tanto um nível nosso, mas a Realidade última e Unidade fundacional de tudo e todos.

Mas na realidade, fora dos paraísos artificiais de ashrams, comunidades ou seitas, ou de auto-ilusões de se estar iluminado, a conquista de tal consciência de Unidade Divina ou mais simplesmente de felicidade é uma luta constante contra a dor, o sofrimento, o apego, a desilusão, o ego, as ambições, as limitações e brota mais da nossa aspiração de sermos felizes criativamente, vencendo obstáculos e permitindo que o fogo do amor e do espírito, o atman, se manifeste e irradie em nós, gerando harmonia, alegria e felicidade...

Na tradição monástica e yogi muitos foram os que escolheram ou receberam o seu nome iniciático terminado em Ananda, indicando-se como tal felicidade estaria neles... Conheci vários na Índia, com quem convivi, meditei, aprendi, dialoguei: Swami Kaivalyananda, Swami Purnananda, Swami Ritajananda (este em Retz, Paris), Sat Chit Ananda Dhar, Swami Ranganathananda, etc.

Sat Chit Ananda foi mesmo considerada uma das melhores definições ou caracterizações do ser humano: Sat= Ser, verdadeiro. Chit= Conhecimento, consciência. Ananda= Felicidade, beatitude. E assim Meditei muitas vezes nesta frase: "eu sou Sat Chit Ananda", ou só Sat Chit Ananda,  e ela é sem dúvida um bom mantra para  ajudar a elevar-nos da identificação corporal e à personalidade, e a sairmos das preocupações e atracções dispersivas exteriores. E logo a concentrar-nos, ou sintonizarmos mais com a nossa dimensão e entidade espiritual. E é esta que nos transmite a verdade felicidade a que aspiramos, sendo o seu íntimo ou fonte a Divindade, ainda que na vivência de cooperação e união com os seres e a natureza tal felicidade também brote naturalmente...

Também na Kena Upanishad temos uma aproximação valiosa, no mantra IV, da segunda parte, pratibodhaviditaṃ matam amṛtatvaṃ hi vindate | ātmanā vindate vīryaṃ vidyayā vindate'mṛtam. E, seguindo mais a linha dual de Madva (1238-1317), também conhecido como Ananda Tirtha (Vau de Felicidade), numa tradução diremos: «Quando [a Divindade] é percepcionada intuitiva e directamente e há meditação constante obtém-se o estado imortal (amrita). Pelas acções e a graça do Eu espiritual obtém-se a intensificação da força da felicidade (viryam)».

Já Shankara (700-750), o expoente máximo da linha advaita ou não dual, traduz assim este verso, dando-nos outro ângulo de visão e realização: «Sabe-se de Brahman, quando é conhecido como o que testemunha cada estado de consciência e através disso atinge-se a imortalidade. Pelo seu Eu alcança-se força, e pelo conhecimento, imortalidade.»

As duas diferentes vias de nos alinharmos mais com a Divindade e a sua força e felicidade aqui propostas são de certo modo ora vê-Lo como o Ser que testemunha todos os estados de consciência, o observador puro, ora aceitá-lo como um ser pessoal que pela meditação e graça pode ser mais sentido e religado, com Ananda e devoção, bhakti, a brotarem

"Graça, estado de graça" no qual, de quando em quando, nos sentimos mais por várias circunstâncias luminosas estarem a coexistir na nossa vida do quotidiano e que deixam assim vir ao de cima a beatitude ou felicidade, ananda. Seja pelo amor, seja pelo trabalho bem realizado ou criativo, conforme o mestre Bô Yin Râ, muito  valorizava, e que todos já sentimos, por exemplo, ao concluir um trabalho, uma obra, ou ao chegar ao fim da semana bem trabalhada aos vários níveis. 

Concluamos, relembrando em outros nomes terminados em Ananda, tal Swami Vivekananda, o discípulo mais conhecido do tão místico e beatífico Paramahansa Ramakrishna (na imagem),  e o de Paramahansa Yogananda, cujo mestre Swami Sri Yuktesvar giri (na imagem final) explicou bem  Sat Chit Ananda no seu valioso livrinho, A Ciência Santa, (Holy Science, 1984) no qual em poucos sutras condensou grande sabedoria espiritual. Leiamos os sutras  16 a 21, do cap. II: «Existência, consciência e felicidade são os três desejos-aspirações.

Ananda, beatitude-felicidade, é o contentamento do coração atingido pelos caminho e meios sugeridos pelo salvador, o verdadeiro mestre (Sat Guru).

Chit, consciência verdadeira, causa a destruição completa de todas as perturbações e o erguer de todas as virtudes.

Sat, existência, é atingida pela realização da permanência da alma-espírito. 

Estas três qualidades constituem a natureza real do ser humano. 

Todos os desejos sendo satisfeitos, e todas as misérias removidas, a realização de Paramartha (o mais elevado objectivo) é alcançada.»

Embora haja talvez um certo exagero nos "todos" e "todas" empregados, realcemos "o contentamento do coração", nivel e sensibilidade que devemos cultivar, e que advém de estarmos a viver correctamente e tentando consciencializar-nos mais permanentemente possível do espírito.

Vencendo as negatividades ambientais, criativamente, que a ligação ao Bem (nomeadamente, através do lema da tradição espiritual portuguesa, talant de bien faire), ao Espírito, ao mestre, ao anjo, à Divindade e logo a Ananda, felicidade ou beatitude, viva e emane mais mais em nós e de nós, em nós ou laços de Amor, como fiéis cavaleiros e cavaleiras dele e do Dharma...

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