sábado, 17 de outubro de 2020

"Morrer é ser iniciado". Dito da "Antologia Grega" glossado até aos nossos dias. Um contributo de Pedro Teixeira da Mota

                                             MORRER É SER INICIADO.
Este epigrama grego, preservado anonimamente na Antologia Grega, compilada por Meleagro, no séc. VIII, teve entre nós a fortuna de ser citado como epígrafe e depois glosado por Antero de Quental, Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa. Já os comentei em artigos no blogue, destacando, por exemplo, a interrogação de Joaquim de Araújo quanto ao onde se passa tal iniciação, e ao onde anda Antero. Mas hoje quero reflectir mais segundo a minha experiência interior.
O primeiro sentido que se sente é que "quando se morre é se iniciado", ou seja, a morte é uma iniciação, um começo de um nova vida, e sem dúvida que o é.
Já errado será deduzir que com a morte somos iniciados, no sentido de recebermos uma iniciação ou ficarmos iniciados, pois quando morremos só temos a certeza que a vida no corpo físico acabou (já que por vezes os que morreram nem tal têm ou se consciencializam), mas quanto à vida no além que se abre, pouca gente tem uma visão acertada ou clara dela, mesmo com espiritismos e esoterismos lidos ou praticados em vida...
Ora quando saímos do corpo físico, a consciência que levamos, que resulta do que desenvolvemos em vida e do que passa para tal plano, é fundamental, de tal modo que há seres que morrendo fisicamente continuam mortos consciencial e animicamente, enquanto outros, já mais despertos, sabem movimentar-se no além, conscientemente...
Quantos saberão movimentar-se no melhor sentido é ainda uma outra questão, pois muitos certamente ficarão nas margens mais próximas do mundo terreno, apenas nos planos astrais e não saberão elevar-se para os mundos espirituais.
                                                
                                        Mundos espirituais, por Bô Yin Râ.
Não equacionaremos por ora quem nos pode esperar após a desencarnação, mais ou menos rápida ou dolorosa, ou seja, se haverá familiares ou guias, mestre ou anjo a ajudar-nos, tal dependendo de novo do que fomos desenvolvendo de ligações durante a vida.
Sabemos como no Egipto e no Tibete se desenvolveram crenças em litanias de encaminhamentos das almas no além muito detalhadas, denominados bardo thodol (do tibetano, libertação no astral pela audição) e é bem possível que para alguns dos crentes tais percursos fossem depois prosseguidos até desembocarem nos níveis mais elevados que poderiam merecer, embora o facto de se ouvir já morto ou mesmo de saber de cor e acreditar na subida pelos meandros dos mundo subtis, com seus encontros com deuses pacíficos ou violentos, não corresponde forçosamente à capacidade de avançar conscientemente já em corpo espiritual.
Mais simples eram os iniciados órficos, pitagóricos e de alguns dos Mistérios da Antiguidade, quando apenas sabiam e afirmavam, por experiência ou doutrina, que eram espíritos imortais no caminho dos deuses ou de Deus.
Ora o segundo aspecto menos trabalhado e compreendido é o que está ligado com outra linha de força perene, a denominada Arte de bem morrer, que em quase todas as religiões teve os seus autores e livros, tal na Europa Erasmo de Roterdão, que tentavam preparar as pessoas para estarem prontas a deixarem a terra luminosamente quando fosse cortado o fio da vida terrena.
Terem pago as suas dívidas, arrependerem-se e repararem os males realizados, estarem desprendidos dos bens e posses, estarem de bem com toda a gente, orarem a Deus, amarem-no, eis algumas das linhas de força principais que me lembro de cor do ensino de Erasmo.
Ora além desta preparação geral há uma outra que é fundamental e que é saber morrer em vida. Saber morrer nos momentos de dor e sofrimento, ir fundo neles, observando as dores, a diminuição de vitalidade, de amor, de aspiração e mesmo assim continuar a crer e a querer o espírito, o divino, a verdade. Aceitando a dor ou mesmo a morte se ela tiver que vir já. Utilizando nenhum ou o menos possível de remédios, mas apenas a água, os banhos, os chás, a oração, alguma erva medicinal, o jejum, o sono, os sonhos, a meditação.
Quando conseguimos atravessar assim uma doença ou uma provação, então pode-se dar em nós verdadeiramente vivencialmente o epigrama Morrer é ser iniciado, pois ao sabermos morrer, em tal transe ou doença, podemos verdadeiramente vermos como mortos ou adormecido o corpo, e fora dele nós observando-o e para fora de nós saindo o nosso corpo subtil, ondulante e espirálico, qual génio desprendendo-se da lâmpada de Aladino.
O ser que se vê fora do corpo fica mais ciente da sua imortalidade e está menos sujeito a muitos aspectos negativizantes derivados da ignorância, do apego e do medo que controlam bastante as potencialidades das almas, que se identificam e limitam ao corpo físico e à sua mortalidade...
Saber morrer em vida, saber ir fundo nas doenças e provações, pode iniciar-nos no espírito, pode ser uma iniciação na consciência e caminho espiritual.
Eis o meu contributo, para o Morrer é ser iniciado, escrito neste dia 17-X-2020, quando de madrugada atravessei uma provação de saúde dolorosa mas que consegui enfrentar com calma, aceitação da morte e aspiração à verdade, aos mestres, aos anjos e a Deus...
E em comunhão com a Tradição espiritual anterior e futura, dei mais um testemunho sobre

                                          Morrer é ser iniciado.

Jazes deitado na cama

mas tu não és esse corpo.

De pé, e de fora, observas

E reconheces que  estás

tanto ali como fora dali

e então subitamente

desprendes de ti,

qual génio luminoso de Aladino

teu corpo subtil espiritual,

como num desabrochar de asa,

voluta elegante, geométrica e espirálica,

como um ghazal de amor imortal,

oferecido ao  espiritual e divino Graal.

Do Diwan à Dara Shikoh, em Portugal: 1º poema, acerca do coração e do amor...

Dara Shikoh (1615-1659), numa miniatura mogol.

 Um poema escrito no dia da Estrela (no Tarot, arcano XVII),  17 de Outubro de 2020, das 14:30 às 14:35, por um Dara Shikok português, ou seja um seu admirador, amigo e companheiro... 

Alguém tirou o amor do meu coração
e ele ficou quase insensível e a sangrar.
Desconhecia ter tanto na cabeça para queimar,
até um buraco na fronte se abrir
e numa caixinha
as cinzas se depositarem,
enquanto os sonhos soltam as imagens
que dos sentidos e memórias se transmutarem...

  Sou
agora um recém nascido,
apenas com a Primavera a espreitar,
o corpo purificado e mais sensível
e a alma pronta a amar e a adorar.


Como a ave que busca a fonte
vou bater à porta da meditação:
quem me ouvirá, quem me abençoará?
O Amor está a voltar, a Face Amada a brilhar.

Amor, por Zurbaran.

sábado, 10 de outubro de 2020

The true about Syria, by José Bustani, from Brasil, 1º Director of the Organization for the Prohibition of Chemical Weapons

 Este texto, em inglês, escrito por um diplomata brasileiro de grande valor, José Bustani, foi censurado pelos Estados Unidos da América, o Reino Unido, a França e os aliados, de ser lido há poucos dias na Assembleia das Nações Unidas, porque desmascara as mentiras e crimes cometidos por essa coligação na Síria, inventando ataques quimicos e apoiando os terroristas que conseguiram destruir muito e matar milhares de pessoas. SE não fosse a Rússia a ajudar o legítimo governo da Síria e o seu exército a deterem oa avanços e mortandades,  neste momento a própria Europa estaria já muito ameaçada pelos jihadistas, que noutra ponta do Médio Oriente são apoiados e utilizados por um ambicioso e cruel ditador turco, Erdogan.

Como se vendeu muito o filme ardilosamente montado pelos tenebrosos White Helmets, ou Capacetes Brancos, para fazer crer a semi-zombie opinião pública ocidental (cada vez menos tida em conta de qualquer modo), que Bashar Assad e o governo sírio tinham feito ataques químicos que justificaram os bombardeamentos ferozes da coligação internacional, este texto é importante de se publicado, tanto mais que na própria Assembleia das Nações Unidas foi impedido ignobilmente de ser lido. Uma vergonha para António Guterres, completamente manietado, chantageado senão mesmo ameaçado....

TRANSCRIPT

«Mr Chairman, Ambassador Vassily Nebenzia, your excellencies, distinguished delegates, ladies and gentlemen,

My name is José Bustani. I am honoured to have been invited to present a statement for this meeting of the UN Security Council to discuss the Syrian chemical dossier and the Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons. As the OPCW’s first Director General, a position I held from 1997 to 2002, I naturally retain a keen interest in the evolution and fortunes of the Organisation. I have been particularly interested in recent developments regarding the Organisation’s work in Syria.

For those of you who are not aware, I was removed from office following a US-orchestrated campaign in 2002 for, ironically, trying to uphold the Chemical Weapons Convention. My removal was subsequently ruled to be illegal by the International Labour Organisation’s Administrative Tribunal, but despite this unpleasant experience the OPCW remains close to my heart. It is a special Organisation with an important mandate. I accepted the position of Director General precisely because the Chemical Weapons Convention was non-discriminatory. I took immense pride in the independence, impartiality, and professionalism of its inspectors and wider staff in implementing the Chemical Weapons Convention. No State Party was to be considered above the rest and the hallmark of the Organisation’s work was the even-handedness with which all Member States were treated regardless of size, political might, or economic clout.

Although no longer at the helm by this time, I felt great joy when the OPCW was awarded the Nobel Peace Prize in 2013 “for its extensive efforts to eliminate chemical weapons”. It was a mandate towards which I and countless other former staff members had worked tirelessly. In the nascent years of the OPCW, we faced a number of challenges, but we overcame them to earn the Organisation a well-deserved reputation for effectiveness and efficiency, not to mention autonomy, impartiality, and a refusal to be politicised. The ILO decision on my removal was an official and public reassertion of the importance of these principles.

More recently, the OPCW’s investigations of alleged uses of chemical weapons have no doubt created even greater challenges for the Organisation. It was precisely for this kind of eventuality that we had developed operating procedures, analytical methods, as well as extensive training programmes, in strict accordance with the provisions of the Chemical Weapons Convention. Allegations of the actual use of chemical weapons were a prospect for which we hoped our preparations would never be required. Unfortunately, they were, and today allegations of chemical weapons use are a sad reality.

It is against this backdrop that serious questions are now being raised over whether the independence, impartiality, and professionalism of some of the Organisation’s work is being severely compromised, possibly under pressure from some Member States. Of particular concern are the circumstances surrounding the OPCW’s investigation of the alleged chemical attack in Douma, Syria, on 7 April 2018. These concerns are emanating from the very heart of the Organisation, from the very scientists and engineers involved in the Douma investigation.

In October 2019 I was invited by the Courage Foundation, an international organisation that ‘supports those who risk life or liberty to make significant contributions to the historical record’, to participate in a panel along with a number of eminent international figures from the fields of international law, disarmament, military operations, medicine, and intelligence. The panel was convened to hear the concerns of an OPCW official over the conduct of the Organisation’s investigation into the Douma incident.

The expert provided compelling and documentary evidence of highly questionable, and potentially fraudulent conduct in the investigative process. In a joint public statement, the Panel was, and I quote, ‘unanimous in expressing [its] alarm over unacceptable practices in the investigation of the alleged chemical attack in Douma’. The Panel further called on the OPCW, ‘to permit all inspectors who took part in the Douma investigation to come forward and report their differing observations in an appropriate forum of the States Parties to the Chemical Weapons Convention, in fulfilment of the spirit of the Convention.’

I was personally so disturbed by the testimony and evidence presented to the Panel, that I was compelled to make a public statement. I quote: “I have always expected the OPCW to be a true paradigm of multilateralism. My hope is that the concerns expressed publicly by the Panel, in its joint consensus statement, will catalyse a process by which the Organisation can be resurrected to become the independent and non-discriminatory body it used to be.”

The call for greater transparency from the OPCW further intensified in November 2019 when an open letter of support for the Courage Foundation declaration was sent to Permanent Representatives to the OPCW to, ‘ask for [their] support in taking action at the forthcoming Conference of States Parties aimed at restoring the integrity of the OPCW and regaining public trust.’

The signatories of this petition included such eminent figures as Noam Chomsky, Emeritus Professor at MIT; Marcello Ferrada de Noli, Chair of the Swedish Doctors for Human Rights; Coleen Rowley, whistle-blower and a 2002 Time Magazine Person of the Year; Hans von Sponeck, former UN Assistant Secretary-General; and Film Director Oliver Stone, to mention a few.

Almost one year later, the OPCW has still not responded to these requests, nor to the ever-growing controversy surrounding the Douma investigation. Rather, it has hidden behind an impenetrable wall of silence and opacity, making any meaningful dialogue impossible. On the one occasion when it did address the inspectors’ concerns in public, it was only to accuse them of breaching confidentiality. Of course, Inspectors – and indeed all OPCW staff members – have responsibilities to respect confidentiality rules. But the OPCW has the primary responsibility – to faithfully ensure the implementation of the provisions of the Chemical Weapons Convention (Article VIII, para 1).

The work of the Organisation must be transparent, for without transparency there is no trust. And trust is what binds the OPCW together. If Member States do not have trust in the fairness and objectivity of the work of the OPCW, then its effectiveness as a global watchdog for chemical weapons is severely compromised.

And transparency and confidentiality are not mutually exclusive. But confidentiality cannot be invoked as a smoke screen for irregular behaviour. The Organisation needs to restore the public trust it once had and which no one denies is now waning. Which is why we are here today.

It would be inappropriate for me to advise on, or even to suggest how the OPCW should go about regaining public trust. Still, as someone who has experienced both rewarding and tumultuous times with the OPCW, I would like to make a personal plea to you, Mr Fernando Arias, as Director General of the OPCW. The inspectors are among the Organisation’s most valuable assets. As scientists and engineers, their specialist knowledge and inputs are essential for good decision making. Most importantly, their views are untainted by politics or national interests. They only rely on the science. The inspectors in the Douma investigation have a simple request – that they be given the opportunity to meet with you to express their concerns to you in person, in a manner that is both transparent and accountable.

This is surely the minimum that they can expect. At great risk to themselves, they have dared to speak out against possible irregular behaviour in your Organisation, and it is without doubt in your, in the Organisation’s, and in the world’s interest that you hear them out. The Convention itself showed great foresight in allowing inspectors to offer differing observations, even in investigations of alleged uses of chemical weapons (paras 62 and 66 of Part II, Ver. Annex). This right, is, and I quote, ‘a constitutive element supporting the independence and objectivity of inspections’. This language comes from Ralf Trapp and Walter Krutzsch’s “A commentary on Verification Practice under the CWC”, published by the OPCW itself during my time as DG.

Regardless of whether or not there is substance to the concerns raised about the OPCW’s behaviour in the Douma investigation, hearing what your own inspectors have to say would be an important first step in mending the Organisation’s damaged reputation. The dissenting inspectors are not claiming to be right, but they do want to be given a fair hearing. As one Director General to another, I respectfully request that you grant them this opportunity. If the OPCW is confident in the robustness of its scientific work on Douma and in the integrity of the investigation, then it has little to fear in hearing out its inspectors. If, however, the claims of evidence suppression, selective use of data, and exclusion of key investigators, among other allegations, are not unfounded, then it is even more imperative that the issue be dealt with openly and urgently.

This Organisation has already achieved greatness. If it has slipped, it nonetheless still has the opportunity to repair itself, and to grow to become even greater. The world needs a credible chemical weapons watchdog. We had one, and I am confident, Mr Arias, that you will see to it that we have one again.

Thank you.»

Um discurso, simples, apelando à demanda da verdade e a uma organização imparcial e não mentirosa quanto ao controle do emprego de armas químicas e a vergonha mundial das Nações Unidas ao impedi-la de ser lida... Entretando  ainda no 2021 há que destacar o apoio aos criminosos dos Barretes Brancos a BBC, inglesa, da British Brainwashing Corporation, completamente submetida, ou seja, vendida ao imperialismo anglo-saxónico... Contudo a destruição da Siria e a remoção de Bashar Assad gorou-se, graças sobretudo ao apoio grende da Rússia sábia de Putin, e do Irão.

sábado, 19 de setembro de 2020

A biografia de Antero de Quental, flamejante, por Cândido Figueiredo, in "Homens e Letras", de 1881.

 Cândido Figueiredo nasceu em Lobão da Beira, freguesia de Tondela, a 19 de Setembro de 1846. Foi filólogo, escritor e até orientalista pois, chegou a ser membro da Sociedade Asiática de Paris e autor de pequenos estudos sobre a literatura e a cultura indiana. Com Luciano Cordeiro, foi um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, e presidiu também à Academia das Ciências por mais de uma vez, duas das instituições com maior relevância na história da cultura em Portugal, tendo ainda pertencido a outras. Foi político e governante, desempenhando bem vários cargos. Dirigiu a revista literária A Folha, de 1873, com João Penha, Guerra Junqueiro e Gonçalves Crespo, e onde Antero de Quental colaborou. E o Cenáculo, de 1875, onde Antero também partilhou as suas energias poderosas poéticas. A sua obra mais conhecida e reeditada foi o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de 1899. Partiu da Terra com 79 anos, em 1925. Em 1881 publicara Homens e Letras. Galeria de Poetas Contemporâneos, onde traça esbocetos de trinta e sete escritores, dando ainda no fim a biografia e bibliografia deles, e neles destacaremos Camilo, Alberto Pimentel, Gomes Leal, João de Deus, Joaquim de Araújo, Jaime de Séguier, Conde de Monsaraz, Junqueiro, João Penha, Sousa Viterbo, Antero de Quental, Tomás Ribeiro, Fernando Leal e Cristóvão Aires, etc., e será desta obra que extrairemos a sua biografia do Antero bem flamejante...
                            
Correspondeu-se e encontrou-se algumas vezes com Antero, e publicou as cartas num livro, com as de mais 84 escritores, estando a primeira datada de 1.V.1870, onde Antero, quatro anos mais velho que Cândido, faz uma crítica justa ao Tasso que este acabara de dar à luz, pela falta de naturalidade das personagens, quase abstracções e generalidades filosóficas, e sugere-lhe seguir o exemplo de Goethe e Balzac. Em 27.X.1874, Antero escreve-lhe de Lisboa a agradecer a visita que recebera solicitando-lhe colaboração para o Cenáculo e confessa-lhe estar doente e que «só pode dar adesão platónica, de que V. Ex.ª fará o uso que entender, e que eu tratarei, assim mo permitam os meus achaques, de transformar em adesão efectiva, assim que me cumpre».
Em Maio de 1876, Antero escreve a agradecer o opúsculo sobre Escolas Rurais, que leu, elogiando-o pois «quem trabalha por esta causa, trabalha por uma coisa eminentemente séria, e V. Ex.ª, escrevendo o seu opúsculo, deu mais uma prova de que o seu espírito está virado para o lado grave das questões modernas».
Quanto à última carta conhecida, e publicada por Ana Maria Almeida Martins, na sua incontornável edição da Cartas, é de 1881 e é a biografia e bibliografia escrita por Antero, que Cândido Figueiredo lhe pedira para vir a figurar nos Homens e Letras, saído em 1881, tal como sucederá, com pequenas alterações justificadas. Leiamos então (e agradeço à amiga Cláudia Lopes a sua transcrição) a biografia de Antero de Quental por outro escritor da época, bastante mais instalado na sociedade que o nosso peregrino idealista revolucionário e espiritual..
                                               

                                   ANTERO DE QUENTAL
«É um dos mais definidos caracteres da moderna geração literária. A sua passagem por Coimbra deixou vestígios indeléveis e gratos na tradição académica. A academia de Coimbra renova-se incessantemente, mas há nomes lendários que ela transmite de geração para geração, como coetâneos e imperecíveis. Para exemplo, João de Deus, João Penha, Antero de Quental.
Alto, nervoso, excêntrico, barba serrada e loira, cabeleira solta aos ventos do Penedo da Saudade, Antero tinha a solenidade austera e a unção mística de um profeta: a palavra caía-lhe dos lábios, sibilina, apocalíptica; e os confrades e neófitos ouviam-no como se ouvia um vidente em épocas de crença e de profecias. Nesses momentos, se a noite corria branda, se o céu se constelava de safiras, se a fonte do Castanheiro, os olivedos do Penedo da Saudade e as laranjeiras do Cidral suspiravam acordes umas harmonias flébeis, ele, o profeta, erguia o braço musculoso e esguio, e trovejava poemas, clamando:

A galope! A galope! À fantasia
armemos uma tenda em cada estrela.

E depois, julgando-se de facto domiciliado na via Láctea, ou no primeiro andar de alguma constelação luminosa, conversava familiarmente com o infinito, tomava o imenso ao colo, beijocando-o como a uma criança, dava piparotes na eternidade, das estrelas fazia avelórios para missangas caprichosas; e, em seguida, como alquimista experto, dava aquelas continhas de vidro a natureza argentina, expunha as estrelas na sua joalharia, recomendando-as aos aeronautas como legítimos botões de prata do colete do Padre Eterno. Único.
Antero de Quental, pela rigidez do seu carácter, e pela autoridade da sua palavra, de uma gravidade excêntrica, deu vida, calor e convicções a uma sociedade secreta, - o Raio. - destinada a derrubar da reitoria universitária o Basílio Alberto [de Sousa Pinto, 1º], visconde de S. Jerónimo.
A sede desta maçonaria era ao ar livre, entre os arvoredos do Penedo da Meditação; e os irmãos reuniam-se em sabbats misteriosos, nas vésperas de feriado; e, sobre as cinzas fumegantes de um cigarro de Xabrégas, juravam com solenidade o destronamento do rei Basílio.
E o rei Basílio caiu.
Ao mesmo tempo, Antero de Quental ensaiava forças para um novo destronamento: o do rei Castilho.
Este chamou a si toda a velha guarda; e, entre Lisboa e Coimbra, feriu-se a mais rude peleja de que há memória desde o rei Ataces até ao rei Castilho. Acerca da vitória e dos resultados da memoranda pugna, opinaram diversamente os historiadores e cronistas daqueles obscuros tempos. Segundo as opiniões mais autorizadas e fidedignas, parece que Eduardo Vidal continuou a fazer versos românticos. Teófilo Braga deixou de fazer versos líricos, e Antero de Quental achou quem lhe comprasse as Odes Modernas.
O leitor pio não imagina o espanto, a cara azeda, os arrepios, que as Odes Modernas produziram no bom indígena. Aquilo foi um banho de chuva na morna epiderme de uma vestal. Uma convulsão eléctrica percorreu os nervos sensíveis da meiga e pálida literatura nacional.
Os noticiaristas, os poetas, os gramáticos, os folhetinistas, que seguiam todos placidamente o seu caminho, paravam de súbito, como se lhes rebentasse aos pés uma bomba de dinamite. E discretiaram consoante as posses de cada qual. Ouviu-se muita coisa sensata, e ouviu-se muita tolice: é costume tocarem-se os extremos.
Mas as Odes Modernas representam apenas uma fase do génio poético de Antero de Quental.
As demais fases, denuncia-as na sua Beatrice, o seu volume de poesias líricas, e a moderna colecção dos seus sonetos.
                                       
A Beatrice é um delicioso poema de amor enflorado por um idealismo transcendente e casto.
Se eu fosse crítico, diria que os sonetos de Antero de Quental, valendo muito, valem menos que a Beatrice. [E com efeito, quanto amor perpassa pela Beatrice...]
Um dia, no escritório de uma revista literária que eu dirigia em 1875, o marquês de Sousa Holstein fazia umas objecções amigáveis à condescendência, com que eu publicara naquele periódico uns versos, meio libertinos, de um rapaz inteligente.
Nessa ocasião, trouxe-me o carteiro um soneto de um colaborador efectivo da mesma revista. Relanceei os olhos pelo soneto, e respondi às objecções do marquês:
- Aqui tem a expiação do meu delito: é um soneto firmado por um dos nossos colaboradores mais distintos. Intitula-se Plena gratiœ, e é dedicado à Virgem Santíssima, Senhora nossa.
- De quem é?
- Adivinhe.
- Sei lá! pelo assunto e pela ingenuidade da dedicatória, parece ser de estudante de seminário ou de colaborador gratuito e eventual da Nação; mas, colaborador distinto... não sei.
- Pois saiba que é de um socialista, de um republicano, talvez de um ateu.
- Então é troça.
- Pois não é. Veja. É um soneto respeitoso, grave e sério, como é sério e grave o seu autor, Antero de Quental.
E era assim. Este e outros sonetos que constituem a aludida colecção, desorientariam os mais perspicazes glosadores, se entre nós houvesse a exegese literária, como a há na Alemanha, na Inglaterra, e na Itália, onde as obras de Goethe, Shakespeare e Dante são o texto das mais eruditas prelecções críticas, literárias e históricas.
Se cada obra de um poeta correspondesse sempre a um fenómeno psicológico, eu diria que os sonetos de Antero de Quental denunciavam uma indefinida preocupação de espírito, um mal-estar nervoso, uma excitação que não cede ao chá de tília nem ao brometo de potássio; uma misantropia egoísta de filósofo incompreendido.
No entanto, os que o tratam de perto protestam contra esta interpretação, e continuam a reconhecer no poeta um espírito vigoroso e juvenil, uma sistematização racional de factos e teorias, uma inteligência desanuviada e ampla. Pelo menos, quem nas mais calmosas noites de verão cruzasse a praça da Alegria, em Lisboa, poderia, cosendo-se cautelosamente com as sombras das acácias, assistir de perto às mais cintilantes discussões, aos mais lúcidos discursos, aos melhores ditos, de que possa ufanar-se o mais selecto cenáculo de homens de espírito e talento.
No cenáculo da [praça da] Alegria entra apenas Antero, João de Deus, e poucos mais.
O que sairá daquelas discussões e daqueles conluios? A república? Um poema? O nihilismo? A aniquilação do café Martinho? Uma opereta cómica? Uma guilhotina?
Dicant paduani.» 

                                                         
Eis uma curta biografia, com graça e fidedignidade ao Antero de Quental estudantil, amoroso e revolucionário, com um bom juízo crítico quanto à pedrada no charco que fora a publicação das Odes Modernas, algo como posteriormente, embora mais literariamente e sem o socialismo revolucionário, a revista Orpheu, mas com alguma relativa ou leve incompreensão ou desvalorização da demanda filosófico-espiritual de Antero, nomeadamente espelhada na afirmação de que «os sonetos de Antero de Quental denunciavam uma indefinida preocupação de espírito, um mal-estar nervoso, uma excitação que não cede ao chá de tília nem ao brometo de potássio; uma misantropia egoísta de filósofo incompreendido.» Melhor fora se escrevesse: uma intensa e ansiosa demanda da alma em busca da Luz da Verdade e da Divindade e das certezas anímico-espirituais que ela faculta e que, ainda que afectasse os seus nervos, por si mesmo frágeis, não o impedia de continuar a pesquisar, a meditar à sua maneira de filósofo e poeta e não tanto de iniciado.
Terminemos com a parte final da carta autobiográfica de Antero de Quental, que serviu para notícia no apêndice dos Homens e Letras, mas não sendo ali transcrita:
«A doença impede-me de dar seguimentos a trabalhos mais vastos e completos, que havia projectado, e provavelmente morrerei sem ter podido dizer mon dernier mot. Mas quem se gaba de o ter dito? Pouquíssimos, o incompleto e o imperfeito são sorte comum. Vale mais não dar importância a estas (no fundo e filosoficamente) ninharias e saber morrer na paz do Senhor.»


Este anteriano "Na paz do Senhor", na paz de Deus, na paz profunda, divina, significaria entregar-se à Divindade: - Fiz o que pude; mais não posso. Faça-se a Vossa vontade. Ou mesmo o seu coração finalmente descansar na mão de Deus, como ficou no último dos seus Sonetos completos? Ou seria mais: - Saberei morrer na paz com que Jesus morreu crucificado?
Terá assim
Antero entrado, ao despir-se voluntariamente da veste corporal já desgastada,  no misterioso Além, independentemente da sua alma desiludida  com uma certa Paz luminosa de entrega ao Divino?
Muita luz e amor para Antero de Quental no seu corpo espiritual....
Escrito no dia 19.IX.2020, nos 174 anos do nascimento
de Cândido Figueiredo. Para ele, também muita luz e amor. Possam até ambos encontrarem-se luminosamente nos mundos espirituais. Amen, Aum...
                                                            
                                                Pintura dos mundos espirituais, por Bô Yin Râ

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Antero de Quental jovem e a Mulher, no "A Propósito de umas poesias de D. Henriqueta Elisa", 1864.

Antero de Quental, em Junho de 1864, ano em que se formou em Direito, publicou no jornal  O Século XIX, de Penafiel, onde colaborava com muita regularidade, usando até o pseudónimo Bacharel José, e que era dos seus grandes amigos António Joaquim de Araújo e Germano Vieira de Meireles,   duas poesias de uma senhora, D. Henriqueta Elisa, antecedidas dum  texto juvenil tão delicado, idealista e cavaleiresco para não dizer romântico, e igualmente espiritual e cósmico, acerca da Mulher, e em especial da poetisa, da mulher que escreve, que resolvemos, dado não  se encontrar ainda na web,  transcrevê-lo do volume I, das Prosas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1923, de um exemplar que pertenceu a António Alvim, familiar de António de Azevedo Castelo Branco, grande amigo de Antero. 
A Propósito de umas poesias de D. Henriqueta Elisa.
«Um nome de uma mulher purifica a página onde se escreve, como uma só planta de aloés purifica uma floresta inteira.
Os dedos grosseiros da crítica não têm que ver com estas finíssimas, impalpáveis teias de seda, suspendidas entre flores, onde o céu deposita as pérolas dos seus rocios da madrugada. São invioláveis como o mistério, porque são misteriosas como a verdadeira beleza estas poesias, que as mulheres escrevem como nós choramos - quando as mulheres sabem chorar... como nós escrevemos.
- Basta ter um coração. Um coração feminino! Não há princípio de estética transcendental, a mostrar-nos o caminho do belo, como esta bússola de oiro sempre virada para o Norte misterioso do sentimento.
A ideia do homem corre desatinada, como folha solta da árvore, impelida por aquele vento rijo e frio que se chama a Dúvida.
Mas a intuição da mulher, como pomba que voa direita ao ninho, sem bem ver, sem bem saber como, atina logo com a corrente de ar que a há-de levar ao último horizonte da harmonia.
Quem adivinha é a alma: a Sibila da humanidade, que prediz as quedas e as tristezas do coração! A feiticeira do mundo, que deita as sortes e ensina o caminho da felicidade perdida!
Como é flor tudo o que cai da amendoeira em chegando a primavera, assim é poesia e beleza a chuva de flores ou lágrimas, que a alma, sacudida pela inspiração, deixa cair sobre o solo duro da vida.
Ora na mulher tudo é alma. Um seu cabelo que o vento levasse correndo pelo espaço, seria isso bastante para encher o Universo de mais espíritos do que sonharam Milton e Klopstok. Um seu olhar, se o céu se despovoasse de seus anjos, seria o bastante a povoá-lo de novo das suas miríades.
Eu creio de fé na beleza destas poesias, que as mulheres escrevem com mão trémula, todas inclinadas sobre os ecos mais íntimos do coração. A minha Poética, por mais larga que seja, tentando avaliar a extensão daquele éter puríssimo, parece-me então tão disforme como um anão pesado e curto, que pretendesse medir, pela medida dos seus passos, a distância que separa dois astros no céu.
"Não batas numa mulher, nem mesmo com um ramo de flores" - dizia a doce mas profunda sabedoria do Oriente. Ora a crítica é um molho de espinhos.
Sintamos a beleza destas poesias e não as discutamos. A arte, que discute e pensa e estuda, pode deslumbrar-nos com a irrupção dos seus esplendores - mas só o coração nos sabe fazer chorar. -
Entre um frase e uma lágrima quem hesitará?...
Uma lágrima é a melhor poesia.
É esse o soberano poema da mulher - a Piedade.»
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Seguiam-se no jornal O Século XIX os dois poemas, dos quais o "Guia dos Túmulos", lemos e comentamos em dois vídeos de 5:00 e 20:00 gravados no Youtube, o segundo dos quais se encontra no fim deste artigo. 

 
Deste tão belo escrito juvenil de Antero realçaremos o que ele diz do coração e da alma, certamente muito espontaneamente, e como tais níveis interiores do ser exigem um cultivo especial: o coração, para ele sinónimo de sentimentos e intuições, e sensível como bússola  do Belo e, podemos acrescentar, do Bem e Verdadeiro, é em si a porta para um dos objectivos principais da vida: despertar e manter o coração sensível e flamejante, ou seja, ardente de amor, como nos sugere a pintura de Zurbaran...
Quanto à alma feminina que adivinha ou intui, a sibila, maga, meiga  ou feiticeira,  a partir do seu sentimento, intuição e amor, por contraposição ao pensamento, à racionalidade e à dúvida do homem,  expande-se mais ora na entrega e no abraço ora nas dimensões subtis próprias, ora no  campo unificado de energia, éter, consciência que une todos os seres, ora nas profundezas da sua intimidade, onde escuta a voz interior ou os ecos que a inspiram, por estes modo todos sendo verdadeiramente medianeira entre a terra e o céu, como lhe chamará Antero de Quental noutro dos seus três textos femininos, A Influência da Mulher na Civilização, escrito em 1860-61.
O texto é de grande beleza, embora traga já presente uma linha sofrida da mulher (quem sabe antevendo animicamente a sua frustração de não ter encontrado mais almas femininas afins ou mesmo a alma gémea), certamente real: a Mulher como Pietas, Piedade, Compaixão.
 Mas será tal o soberano poema da Mulher, interrogamos? E se for a Mulher como Amor, Amante, Despertante, Unificante? Ou ainda a Musa e inspiradora? 
Há tantas faces da Divindade no Feminino que se podem avatarizar ou espelhar em cada mulher que não nos auto-limitemos nem nos deixemos assexuar pelas novas tendências globalistas desindividualizantes e anti-naturais...
Muito bela a sua visão de que um cabelo ou olhar da Mulher levado pelo vento ou éter possa ter tantos efeitos luminosos no planeta, uma teoria que nos nossos dias de realce da inter-relacionalidade de todos os seres, ou do campo unificado de energia consciência, ganha cada vez mais aspirantes. 
Do idealismo que inspira e anima a visão poética da Mulher por Antero, podemos ainda admitir realisticamente que um olhar dela possa despertar o anjo ou as qualidades angélicas ou de Amor num ser ou nos seres...
Que esta missão de aumentar a piedade e o amor, e religar a terra e o céu, o corpo e o espírito, os grupos e países entre si, possa desenvolver-se cada mais harmoniosamente em, e graças a, todas as mulheres e almas da Terra e dos Céus, por onde peregrina Antero de Quental neste seu dia de anos e de entrada no mundo psico-espiritual. Algo que a cada dia  8 de Março, dia da Mulher, podemos sintonizar mais para a Mulher poder ter cada vez mais uma vida livre e saudável e uma entrada maior na sua consciência íntima de ser espiritual e de amor, criativamente...
Muita Luz e Amor divinos, dos grandes seres e da Divindade, nas mulheres e na Henriqueta Elisa, nele e em todos......

                            

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Antero de Quental e as causas enfraquecedoras da sua caminhada para a Luz, por Catarino Cardoso. "Alma Nova", 1926.

  Nuno Catarino Cardoso (1887-1969), escritor, investigador e compilador de antologias poéticas, num artigo Antero de Quental. II O Seu Físico (reproduzido no fim) para a revista Alma Nova, de 15-VIII-1926, descreve brevemente os seus traços fisionómicos, onde destaca os  olhos azuis e cabelos fulvos, e afirma de chofre que ele era um doente, justificando tal em confissões epistolares de Antero, pois os  nervos e pensamentos escapavam-lhe do controle, e a vontade por vezes não levava o corpo à acção desejada.  Transcreve  extractos de umas cinco cartas, mas certamente ainda poderia encontrar bem mais, pois Antero em algumas linhas de muitas cartas, sobretudo a partir dos trinta anos, queixava-se regularmente dos seus males, embora isso não o impedisse de desenvolver actividades, investigações, poemas, textos e valiosos diálogos.
Conclui apressada e mal ou exageradamente: «tendo quase horror pelo semelhante, minado pela doença e pelo pessimismo, supondo a Pátria perdida, o fim de Antero, dificilmente, vencidos os últimos escrúpulos morais, podia ser diferente do que foi». 
Na verdade, Antero de Quental tinha bastante amor pelo seu semelhante e sobretudo pelos seus amigos, familiares (e altamente pelas duas crianças de Germano Meireles que adoptara), valorizara sempre muito alcançar-se o amor desinteressado pela Humanidade, e embora observasse a gravidade da situação política portuguesa, não era tal razão suficiente para se matar. 
Quanto ao vencer os escrúpulos morais, os que a educação religiosa e mesmo a ético-filosófica lhe ofereciam para preservar a inviolabilidade da vida, e que o levaram algumas vezes a comentar que era contra o suicídio, convém lembrar que tanto o seu amor e destemor com a morte foram sempre grandes e por isso mais do que vencer escrúpulos morais tratou-se provavelmente apenas de ter sentido que chegara a hora de partir, de voluntariamente abandonar um corpo já demasiado desgastado e pouco capaz de lhe servir de veículo adequado a um ser do seu quilate psico-espiritual, embora certamente fiquem sempre dúvidas quanto às últimas desilusões ou compreensões que o impulsionaram para tal acto, e se ele pensava subsistir individualmente, ou se dissolveria no Absoluto ou no Nada, ou ainda se adormeceria cristãmente na mão de Deus, como ficou a rezar o soneto final dos seus Sonetos Completos...
Passa Nuno Catarino Cardoso depois em análise algumas das explicações propostas por médicos e pensadores para os padecimentos psicosomáticos de Antero de Quental, desde o estrangulamento do piloro (segundo Manuel Bento de Sousa), a um temperamento com algum histerismo, como Charcot diagnosticou, ou às fobias que Sousa Martins lhe diagnosticou, ou à doença da vontade, que Fidelino Figueiredo considerou, inclinando-se mais  para ser um fóbico, algo que nos parece incorrecto, pois Antero era forte e corajoso, um líder nos tempos universitários, embora houvesse vários momentos ou épocas em que estava mais fraco ou em que pensamentos, sentimentos e actos não se interligavam como ele gostaria ou desejaria.
 Quanto às causas de tal, para além da doença que começa a padecer no anos de 1877, e da genética familiar, também a sua actividade poética e filosófica desindividualizante, na qual recebeu influências de leituras e desenvolveu algumas linhas de força enfraquecedoras da boa ligação ou fluída entre corpo saudável, aura equilibrada, alma com optimismo e amor (e faltou-lhe a mulher, mesmo gostando muito da mãe), espírito imortal e abertura ou aspiração à Divindade. Mesmo assim muito lutou, intuindo aspectos valiosos de panpsiquismo, tal como algumas das cartas bem nos patenteiam.
Onde finalmente Catarino Cardoso se corrige e redime é quando escreve: «sempre estóico e quase sempre coerente consigo mesmo», continuando já de modo mais fraco «o drama da vida deles resume-se em duas linhas por ele escritas: Viver não foi em vão, se isto é a Vida, nem foi demais o desengano e a dor».
Como se pode resumir o drama de uma vida, ou de qualquer vida, ou em especial do genial Antero, em duas linhas? Como pode escamotear a realidade ao citar esse extracto de um dos mais luminosos  sonetos, o Solemnia Verba, quando o que estão lá são três linhas, começando assim: «Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão ...»?
 Saibamos realizar a mais alta evolução psíquica e espiritual possível e que a Luz e o Amor Divinos estejam bem vivos na alma imortal de Antero de Quental e nos seres que mais gostam dele....

Suzuki Shôsan (1579-1655), um samurai e mestre, e o embate com o Cristianismo evangelizador. Com contributo de Armando Martins Janeira.

                                                              

 O mestre espiritual japonês Suzuki Shôsan (5-II-1579 a 28-VII-1655), foi um valoroso samurai ou guerreiro  em algumas batalhas do começo do período Edo, que a partir dos seus quarenta e dois, em 1621, retirou-se e tornou-se monge, considerando-se a partir de dado momento um jigo-jisho, iluminado por si mesmo, sem o ser através de um mestre, fundando a  sua própria síntese do Shugendo, do Budismo da Terra Pura e do Zen: o Nio Zen, atraindo muitos seguidores e dinheiro, fundando cerca de trinta e dois templos, e sendo por isso associado modernamente  a um embrião de ideologia capitalista no budismo japonês.
Nos seus livros e ensin
amentos valorizava a vivência do dia a dia, e o destemor em relação à morte e, para isso a contemplação assimiladora de uma estátua de Buddha (seja a feroz, de Fudo, seja a dos Nion, os guardiões do Dharma que se encontram à entrada dos  dos templos), a repetição invocadora do mantra de Amitabha Buddha (nembutsu namo amida bu, namo amida bu), bem como a animação-fortificação da energia subtil interna ou ki, e o cultivo de uma mente leve e optimista, eram muito importantes.
                                   
Escreveu alguns livros, dois acerca d
a "nova" religião no Japão, Deusu Mondo, As Perguntas e Respostas sobre o Deus Cristão, e em 1642, Ha Kirishitan, 破切支丹, Cortar com o Cristianismo ou Refutação do Cristianismo, onde explica o Cristianismo assim: «O cristianismo venera um grande Buda sob o nome de Deus, que é o Senhor do Céu e da Terra. Este Buda apareceu na terra dos Bárbaros do Sul (Namban) há mil e seiscentos anos e deu consolação ao povo. O nome deste Buda em forma pessoal é Jesus Cristo. Os cristãos afirmam que aqueles que não conhecem a sua doutrina e que adoram Buddhas indignos como Amitabha ou Gautama são néscios». 

                                        

Questiona então argutamente  algumas certezas ou dogmas cristãos: «Porque razão Deus não apareceu em todas as nações para a todas as salvar indiscriminadamente? Porque permite Deus a outros Buddhas [que Jesus] pregar diferentes doutrinas? Como pode um homem ser sacrificado para o bem dos homens e ser Senhor do Céu e da Terra? Se Deus é omnipotente e perfeito por que razão criou um universo imperfeito? Porque criou o mal? Como pode Deus ser Todo Misericordioso se permitiu durante os cinco mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo que todos os seres humanos fossem para o inferno? E como é possível ser bom e castigar com sofrimentos?».
Estas perguntas são certamente muito certeir
as em realçar conceitos e aspectos imperfeito ou mesmo absurdos em que o Catolicismo se deixou cair a partir do erro de se considerar a única religião verdadeira, a exemplo do exclusivismo e supremacia do Jehova tribal, criador do Paraíso e da Serpente, ou que Jesus, filho, ou ungido, único de Deus, era a única via de iluminação ou salvação. Saibamos humildemente meditar e comungar com os místicos e mestres que acima dos dogmas vivem as realidades espirituais e divinas....
                             
Entre nós, qu
em refere Shosan e transcreveu estas passagens no seu valioso Impacte Português sobre a civilização Japonesa foi Armando Martins Janeira, tendo acrescentado este sábio comentário: «Estas observações, críticas, são semelhantes às formuladas no Ocidente, o que mostra a agudeza de Shosan, que não tinha quaisquer conhecimentos dos problemas da teodiceia. Outros raciocínios de Shosan são derivados da sua crença budista: Porque Deus não deu alma aos animais (no budismo todos os animais e até coisas têm alma) e deu alma ao homem dotado do poder fazer mal? Tudo no mundo tem uma causa - como pode o milagre ir contra a lei da causalidade? Os cristãos insistem na ideia da existência e incitam a pensar e a sentir; deste modo repetem o ciclo infinito do sofrimento e da ilusão [maya]; se Deus é uma presença real e criou um universo real, o ciclo do ser humano é também real e por isso não pode tender para o último fim, o nada. Daqui em diante Shôsan embrenha-se na exposição e argumentação budista que não tentamos seguir.
A argumentação de Shosan era desenvolvida com notável habilidade e era largamente admirada. A sua posição era radicalmente racional, criticava o cristianismo como se fosse apenas um sistema filosófico, tal como fazem hoje os cristãos ao criticar o budismo.
Pelo que fica exposto vê-se quão imensamente longe um do outro estavam o pensamento religioso japonês e ocidental no chamado "Século Cristão"».
                                      
Anote-se que certas afirm
ações de Shosan também podem ser criticadas fundamentadamente: Porque havemos de crer que a manifestação é apenas sofrimento e ilusão? Porque é que o fim para que tende a manifestação é o nada, ou vazio e não uma maior plenitude dos seres? E Amitabha Buddha não se tornou para os budistas uma espécie de Deus, aparecendo a quem o invocasse no momento da morte e vivendo na Terra pura ou Sukhavati onde recebia os seus fiéis para os instruir e poderem voltar a Terra como Bodhisatvas e futuros Budas, parecendo assim validar a realidade da Terra e da manifestação, desvalorizada contudo antes como ilusão e sofrimento?
Embora ha
ja várias contradições e insuficiências no Cristianismo, o mesmo se passa no Budismo, e temos que, por nós próprios, no diálogo com outros, vivenciar e descobrir os mistérios da alma e espírito, dos mestres e mundos espirituais e da Fonte ou Divindade, e desenvolver vidas criativas e amorosas, que melhorem a Humanidade e o Planeta, unindo fraternalmente o Oriente e o Ocidente e sabendo realçar e comungar  a melhor ecologia, sabedoria e Divindade que neles se manifestar...