quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Suzuki Shôsan (1579-1655), um samurai e mestre, e o embate com o Cristianismo evangelizador. Com contributo de Armando Martins Janeira.

                                                              

 O mestre espiritual japonês Suzuki Shôsan (5-II-1579 a 28-VII-1655), foi um valoroso samurai ou guerreiro  em algumas batalhas do começo do período Edo, que a partir dos seus quarenta e dois, em 1621, retirou-se e tornou-se monge, considerando-se e  a partir de dado momento um jigo-jisho, iluminado por si mesmo, sem o ser através de um mestre, fundando a  sua própria síntese do Shugendo, do Budismo da Terra Pura e do Zen, gerando o Nio Zen, atraindo muitos seguidores e dinheiro, fundando cerca de trinta e dois templos, e sendo por isso associado modernamente  a um embrião de ideologia capitalista no budismo japonês.

Nos seus livros e ensinamentos valorizava a vivência do dia a dia, e o destemor em relação à morte e, para isso a contemplação assimiladora de uma estátua de Buddha (seja a feroz, de Fudo, seja a dos Nion, os guardiões do Dharma que se encontram à entrada dos  dos templos), a repetição invocadora do mantra de Amitabha Buddha (nembutsu namo amida bu, namo amida bu), bem como a animação-fortificação da energia subtil interna ou ki, e o cultivo de uma mente leve e optimista, eram muito importantes. 

Escreveu alguns livros, dois deles sobre a "nova" religião no Japão, Deusu Mondo, As Perguntas e Respostas sobre o Deus Cristão, e em 1642, Ha Kirishitan, 破切支丹, Cortar com o Cristianismo ou Refutação do Cristianismo, onde explica o Cristianismo assim: «O cristianismo venera um grande Buda sob o nome de Deus, que é o Senhor do Céu e da Terra. Este Buda apareceu na terra dos Bárbaros do Sul (Namban) há mil e seiscentos anos e deu consolação ao povo. O nome deste Buda em forma pessoal é Jesus Cristo. Os cristãos afirmam que aqueles que não conhecem a sua doutrina e que adoram Budas indignos como Amitaba ou Gautama são néscios». 

                                        

E depois, começa a questionar argutamente  algumas certezas ou dogmas cristãos: «Porque razão Deus não apareceu em todas as nações para a todas as salvar indiscriminadamente? Porque permite Deus a outros Buddhas [que Jesus] pregar diferentes doutrinas? Como pode um homem ser sacrificado para o bem dos homens e ser Senhor do Céu e da Terra? Se Deus é omnipotente e perfeito por que razão criou um universo imperfeito? Porque criou o mal? Como pode Deus ser Todo Misericordioso se permitiu durante os cinco mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo que todos os seres humanos fossem para o inferno? E como é possível ser bom e castigar com sofrimentos?».

Estas perguntas são certamente muito certeiras em realçar conceitos e aspectos imperfeito ou mesmo absurdos em que o Catolicismo se deixou cair a partir do erro de se considerar a única religião verdadeira, a exemplo do exclusivismo e supremacia do Jehova tribal, criador do Paraíso e da Serpente, ou que Jesus, filho, ou ungido, único de Deus, era a única via de iluminação ou salvação. Saibamos humildemente meditar e comungar com os místicos e mestres que acima dos dogmas vivem as realidades espirituais e divinas....

Entre nós, quem refere Shosan e transcreveu estas passagens no seu valioso Impacte Português sobre a civilização Japonesa foi Armando Martins Janeira, tendo acrescentado este sábio comentário: «Estas observações, críticas, são semelhantes às formuladas no Ocidente, o que mostra a agudeza de Shosan, que não tinha quaisquer conhecimentos dos problemas da teodiceia. Outros raciocínios de Shosan são derivados da sua crença budista: Porque Deus não deu alma aos animais (no budismo todos os animais e até coisas têm alma) e deu alma ao homem dotado do poder fazer mal? Tudo no mundo tem uma causa - como pode o milagre ir contra a lei da causalidade? Os cristãos insistem na ideia da existência e incitam a pensar e a sentir; deste modo repetem o ciclo infinito do sofrimento e da ilusão [maya]; se Deus é uma presença real e criou um universo real, o ciclo do ser humano é também real e por isso não pode tender para o último fim, o nada. Daqui em diante Shôsan embrenha-se na exposição e argumentação  budista que não tentamos seguir.

A argumentação de Shosan era desenvolvida com notável habilidade e era largamente admirada. A sua posição era radicalmente racional, criticava o cristianismo como se fosse apenas um sistema filosófico, tal como fazem hoje os cristãos ao criticar o budismo.

Pelo que fica exposto vê-se quão imensamente longe um do outro estavam o pensamento religioso japonês e ocidental no chamado "Século Cristão"». 

                                    

Anote-se que algumas das afirmações de Shosan também as podemos criticar fundamentadamente: Porque havemos de crer que a manifestação é apenas sofrimento e ilusão? Ou porque é que o fim para que tende a manifestação é o nada, ou vazio e não uma maior plenitude dos seres? E Amitabha Buddha não se tornou para os budistas uma espécie de Deus, aparecendo a quem o invocasse no momento da morte e vivendo na Terra pura ou Sukhavati onde recebia os seus fiéis para os instruir e poderem voltar a Terra como Bodhisatvas e futuros Budas, parecendo assim validar a realidade da Terra e da manifestação, desvalorizada contudo antes como ilusão e sofrimento?

Embora haja muitas contradições e insuficiências no Cristianismo, o mesmo se passa no Budismo, e temos que, por nós próprios, vivenciar e descobrir os mistérios da alma e espírito, dos mestres e mundos espirituais e da Fonte ou Divindade, e desenvolvermos vidas criativas e amorosas, que melhorem a Humanidade e o Planeta, unindo fraternalmente o Oriente e o Ocidente e sabendo realçar e comungar  a melhor ecologia, sabedoria e Divindade que neles se manifestar...