quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Os irmãos Santa Rita, trajectórias, interseccionismos e "O Mundo dos Meus Bonitos", de Augusto de Santa Rita...

Os irmãos Santa Rita, Guilherme e Augusto, destacaram-se no início do séc. XX e tinham em comum, como bem realçou João  Mendes Rosa, o génio e, na base dessa afinidade ígnea, encontraram e relacionaram-se com outros companheiros da aventura artística, literária, cultural, social, espiritual possível de então, o Modernismo. Se o percurso de Santa Rita Pintor foi curto (1889-1918), compreende-se tal pela intensidade com que viveu o génio ou daimon, em ambientes difíceis, deixando-nos apenas cerca de 40 obras, algumas simples esboços e morrendo precocemente aos 29 anos quando muito poderia ainda materializar-se da sua genialidade interior.
 A vida entusiástica no meio artístico parisiense, onde estuda de 1910 a 1914,  a  visão artística modernista e futurista que se consubstanciava no seu modo de vida  revolucionário e anti-burguês  e tendendo a impactar os outros, mais o consumo de drogas e álcool, e a desilusão ou frustração pela apreensão na própria tipografia da sua excepcional revista Portugal Futurista, em 1917, por atentar à moral da República,  precipitaram uma doença que o levou subitamente para o além, em Abril de 1918, com a agravante de ter pedido a seu irmão Augusto que queimasse as obras que estavam em casa, seja porque não as considerava suficientemente perfeitas, seja porque na sua incandescência quis ser queimado com elas, já que a sua arte era a sua própria vida.
Nestes nossos últimos anos, graças aos esforços do actual Guilherme de Santa Rita, João Mcdonnald, Fernando Rosa Dias, Luís Lyster Franco e João  Mendes
Rosa, entre outros, tem-se dinamizado bastante o seu conhecimento, descobrindo-se novas obras, investigando-se e aprofundando-se, aliás em sincronia com as celebrações dos centenários das revistas Orpheu, em cujo 2º número Santa Rita Pintor partilhou quatro das suas pinturas, da revista Exílio, de 1916 e a Portugal Futurista, já de 1917, esta realizada por obra e graça de Santa Rita Pintor e Almada Negreiros (fundadores do Comité Futurista de Lisboa, em 1916). A isto acresceu finalmente os 100 anos da morte de Santa Rita Pintor.
Quanto ao seu irmão Augusto de Santa Rita (1888-1956), tem sido o seu neto  Guilherme e eu que temos tentado divulgar a sua biografia e obra, lendo-a a certas luzes e partilhando algo do muito que de valioso ele nos deixou, ainda que não tenham surgido ainda reedições.
Amigo de Fernando Pessoa, uns meses mais velho do que ele, ambos colaboradores das revistas Águia, Exílio e Contemporânea, diferenciaram-se contudo nas suas linhas de criatividade mantendo porém certas afinidades e a amizade. E assim Augusto Santa Rita será um dos que acompanhará o corpo a enterrar de Fernando Pessoa em 1 de Dezembro de 1935. 
Viveu bem mais tempo, sempre ligado à infância, algo que irromperá em Fernando Pessoa no final da vida, e poetizando-a, frutificando-a em centenas de histórias, poemas e peças de teatro e marionetes com que presenteou jovens e seus pais, ao longo de muitos anos, quinze deles enquanto fundador e director do suplemento semanal do jornal o Século, o Pim Pam Pum, que encantou e educou muita gente, bem ilustrada por Eduardo Malta, Castané e ele próprio, e onde conheceu a sua mulher e paixão Graciette Branco.
Será só em 1956 que abandona o seu terrenal exílio (palavra-sensação-conceito muito afirmado por muitos dessa geração e assinalado em todas as revistas modernistas), já com setenta e tais anos, deixando contudo, ao contrário de Fernando Pessoa, uma vasta obra poética que por várias razões não teve o mesmo sucesso.
E contudo quem ler os seus livros encontra páginas ora muito belas, ora profundas, manifestando tanto a fina e extrema sensibilidade dos  Santa Rita como um bom intuir espiritual e até conhecimento esotérico, como transparece tanto nas iniciais Árias Rezas: Canções e Cantares, de 1912, e Praias do Mistério, de 1916, como sobretudo no Auto da Vida Eterna, de 1925, o qual mereceu de Fernando Pessoa um rasgado elogio, inédito até hoje, mas que já li ou transcrevi grande parte em conferências ou artigos, estando no Youtube algumas gravações sobre o esoterismo deste Auto, muito bem ilustrado por Eduardo Malta. 
 Após esta breve introdução vamos transcrever alguns poemas do seu livro O Mundo dos Meus Bonitos (obra que é apresentada de uma forma superficial como literatura infantil quando é para jovens e adultos), tanto por ter ilustrações de Cottinelli Telmo (1897-1948) na 1ª edição e de Manuel de Abreu Lima na 2ª (com bom prefácio de Vieira de Almeida que  «em 1920 pude ver o entusiasmo com que o ilustrava Cottinelli Telmo, ora desenhando pequenos frisos e figuras soltas, ora colando recortes de papel de cor», juntando assim a imagem artística à ideia e sentimento literário, como por tratar da infância (a  qual em grande parte foi comum com Santa Rita Pintor, embora não transparecendo na obra), como por em alguns dos poemas encontrarmos linhas de força perenes na sua obra e que reflectem uma certa Alma Portuguesa ou mesmo uma Tradição Espiritual Portuguesa, que ele tão bem realçou em 1916 na Justificação ou apresentação do nº 1 da sua revista Exílio, por Fernando Pessoa ainda mais realçada a propósito da geração de Orpheu na nota final desse número, único, da Exílio
 O Mundo dos meus Bonitos surge em 1922,  antecedendo como já dissemos o Auto da Vida Eterna elogiado por Fernando Pessoa  pelo seu pioneirismo de ser uma peça com doutrinas ocultistas bem integradas.
 É porém bem mais simples, um elogio, um dar graças a tudo o que na Infância o maravilhou, o impressionou, mas numa poesia muito bem sentida, sonorizada, colorida e interseccionada, ou seja, conglomerando e sintetizando diferentes planos do espaço e  do tempo, da natureza e da consciência, numa simultaneidade reveladora de uma visão mais profunda e alargada dos seres e das coisas, no caso os "bonitos" sendo os brinquedos da sua infância, ou tudo o que via  animado pela sua muito sensível  abertura e osmose à unicidade da existência, sem hiatos de continuidade antes numa fina ou subtil percepção das correntes de forças que interligam a multidimensionalidade dos seres, essências, movimentos, formas, cores, sons, coisas...
Oiçamos então alguns dos poemas, neste breve contributo  na véspera de um encontro sobre Santa Rita Pintor, a realizar a 18-I-2019, no Museu Regional da Guarda organizado por João Rosa Mendes  e no qual as pessoas  mencionadas no início participarão.  
Revisitando a sua infância, Augusto de Santa Rita interroga-se:

«Porque razão se sentia
Transpirar Aurora e Céu
E resumbrar melodia,
Qual se fora eco de um eco,
Em certo quadro de Greco,
Que um dia  viu num museu?!...

E porque motivo à Imagem
A que ia pedir a Deus...
Baixava uma branda aragem...
Lá donde, - não sabia! -
mas que entrementes parecia
Que vinha de longes céus?!»

Os versos finais do poema O Mundo dos meus Bonitos, que dão o título ao livro,  são também notáveis testemunhos do Templo que erguera no seu Coração e da intensidade e profundidade dos seus olhos, do seu ver até clarividente:
«Em tudo eu tinha o exemplo
Dos meus enlevos benditos!
Meu coração era um Templo
De imensos Génios e Mitos;
Meus olhos eram dois céus, 
Estranhos céus infinitos
Onde astros ainda contemplo...

E o meu olhar era o Deus
Do mundo dos meus bonitos!»
A Bíblia de um Pierrot é outro poema valioso, bem pintado por Cottineli Telmo e que nos remete até para Santa Rita Pintor, na sua famosa fotografia, reproduzida de início, qual Pierrot sonhador:

«Creio!... Creio no Céu do Mistério divino,
Num Céu de papelão...
E nas bruxas que à noite entram pela fechadura
Ao badalar de um sino!
E creio no Papão
Que ora está no telhado, ora na casa escura,
Para levar num saco o Pierrot-menino!

Pintura a óleo de Santa Rita Pintor, de 1912, publicada no Portugal Futurista, com o despertante e muito desafiante e pioneiro título "Perspectiva dinâmica de um quarto de acordar", bem afim do sexteto seguinte de seu irmão:

 Creio que há um Mistério estranho em meu jardim
Que não sou eu que o vejo e antes que ele me vê
Que eu nunca penso nele e ele é que pensa em mim!
Creio que em cada flor há um sonho por sonhar!
Creio que tudo aquilo em que eu creio, em mim crê,
Como creio que tudo há-de um dia acordar!

Creio que quando eu rufo em meu tambor doirado!
Cravos e girassóis despertam do seu sono!
Como creio que existe um espírito aureolado
E ungido de Segredo,
No cavalo de pau que um dia me foi dado!

Creio na misteriosa alma do meu brinquedo,
Na alma do meu bonito!
Pois se o ponho de lado, em seu lindo abandono,
Sua Ausência-imortal mergulha no Infinito
E eis que fica a sonhar com o Céu estrelado! 

Com receio que a Luz da Aurora se anteceda
Deixo a minha corneta ao acaso ficar
Sem tocar,
A sonhar...
Silenciosa!

Do roseiral em flor que orla minha alameda,
às vezes uma rosa 
Ocorre-me cortar;
Porém o meu desejo inquieta-se e não ousa
O Mistério tocar! »
 (...)

Também A Profecia Malabar  é bastante profunda, espirálica ou interseccionante do passado, presente e futuro, tal como o último poema do livro. Oiçamo-la completa e meditemo-la até: 
«O menino todo graça
Que em mim outrora existia,
Este adulto que hoje passa...
E esse velhinho um dia...

Em misterioso lugar,
Creio bem que alguma vez
Haverão de se encontrar
Reunidos todos três!

Porque detrás desse muro...
Para lá do meu Cuidado,
Não haverá nem passado,
Nem presente nem futuro.

E então aí! com que carinho,
Com que ternura e consolo,
O adulto, nesse lugar, 
Se há-de ver menino ao colo
De si próprio, já velhinho,
Consigo mesmo a brincar!»

A Alma das Coisas é uma das constantes da ascultação sensitiva poética de Augusto de Santa Rita, já presente bem clarividentemente no 3º poema da revista Exílio, e aqui de novo aflorada, embora mais imaginativa e levemente:
«A Alma das coisas existe!
Ora é alegre ora é triste;
Existe! Amor, acredita!

Íntimamente descrês,
Duvidas, mas tu não vês,
Sob este céu a esquisita

Expressão que tudo tem?!
Aquela montanha, além...
Aquele vale, acolá...

Tudo interrogando os céus!
Quase exclamando: - meu Deus! -
Como dizias: - Papá! -

Em voz tão débil e moça, 
Uma boneca de louça,
Que em pequena tiveste!

 Insistes em duvidar,
Murmuras sem hesitar:
- parece que endoidesceste!

Pois bem, redobra a surpresa
Ante a minha natureza
Que sempre põe maravilha

Em cada arrojada imagem:
 - A Alma desta paisagem
Ainda há-de ser tua filha!»

Na 2ª edição do O Mundo dos meus Bonitos, parte de um poema sobre Lisboa, com a ilustração de Manuel Abreu Lima, da janela sobre o rio e a barca vicentina, com os corvos vigilantes voando ao alto, tradição recentemente bem trabalhada pelo Projecto Vicente, coordenado por Mário Caeiro, ainda a decorrer muito criativamente em 2109.
Para terminar esta homenagem à poética do Mundo dos Meus Bonitos, onde perpassa também muito da Lisboa do início do séc. XX, onde tão genialmente os irmãos Santa Rita, Mário Sá Carneiro, Fernando Pessoa e Almada Negreiros respiraram, criaram e amaram, fiquemos com o último poema, Legenda, bem pleno do interseccionismo do espelho e da eternidade:

LOUVOR A DEUS... FIM! enfim.
DO MUNDO DOS MEUS BONITOS,
Mas como a este dar fim,
Se os mundos são infinitos?!

Se Deus vive em meus escritos
E os meus escritos em mim,
O MUNDO DOS MEUS BONITOS
Como é que pode ter fim

Não, não tem! É um Poema
Em que está DEUS como lema,
Um Poema a eito e a esmo;

Flor que não se desfolha...
Voltai da vossa alma a folha,
Que o resto está em vós mesmo!»

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Da metafísica das nuvens e neblinas matinais lisboetas.

Dezassete fotografias tiradas na manhã de terça-feira, 15 de Janeiro de 2019, em Lisboa, face ao sul, e legendadas.
 
 Tal como nunca sabemos o que vamos sonhar de noite nem em que paisagens nos encontraremos, o mesmo se passa quanto ao como acordaremos e que paisagens atmosféricas ou tempo encontraremos e singraremos.
 Sem sabermos prever como será a nossa jornada ou que aprofundamentos realizaremos, embora do karma do passado descole o dharma do futuro, há contudo sinais, nuvens e céus que nos fazem prever ou então pensar que é possível algo de belo ou extraordinário acontecer em nós e nos céus...
 Tal como há céus tão azuis e lilazes, profundos e puros, também nos nossos sonhos e diálogos, compreensões e meditações, há tão grandes transparências luminosas, ou sincronias intercomunicativas, que o fogo do Amor se torna bem presente.
 Tal como as nuvens, modeladas ou não por devas e anjos, nos podem encantar, despertar e inspirar, também há certas pessoas e livros, mais afins nas tonalidades anímicas e criatividades, que despertam ou intensificam os nossos melhores potenciais humanos e espirituais...
 E tornamo-nos então eixos, árvores, torres,  zigurates,  chamas no altar do Amor da Terra erguido aos Céus e por ele nos derramando  em raios, cores e calores inspiradores...
 
 Os voos das almas e das nuvens, os seus diálogo flamejantes, ou mesmo os toques anímicos, são como auroras boreais na noite, ou súbitas passagens da sombra colorida do anjo diante de nós, convites a criatividades pelo Bem da Terra e da Humanidade...
 As aparições de neblinas são sempre surpreendentes, pois erguem-se como fantasmas ou tágides do leito do rio em miríades de gotas dissolvidas e sopradas por zéfiros, sílfides ou anjos entram pela cidade a dentro, espreitam à nossa janela, convidam-nos a extasiarmo-nos na sua diafinidade e a comungar na Unicidade da existência...
 Por entre a paisagem tornada branca, qual amnésia dos sonhos passadas algumas horas da nossa mente  mergulhar no real  quotidiano, emergem contudo eixos dos mundos, vultos firmes, árvores amadurecidas, aspirações determinadas, memórias ou reminiscências assumidas...
 Seres que crescem para o além, para o alto e que dialogam pela afinidade íntima, pela proximidade amorosa, pela viração que sopra e inspira, vencendo distâncias e dificuldades, desfocagens e dispersões, são árvores, são humanos...
 
 Troncos no Inverno despojados nos seus ramos de folhas, lembram-nos como devemos ser mais recolhidos e concentrados nesta estação do ano e aquecer-nos no fogo da aspiração, do esforço e do amor.
 Para podermos apesar do frio erguer-nos ao céu, a sós ou em diálogos de amor e de sabedoria, em actos precisos, em movimentos de convergência helicoidal ou espiral, que apenas pressentimos por entre as janelas abertas que se possam criar entre os mundos e seres diafinizando-os...
 A Divindade gera a multiplicidade para que esta em diálogo pacífico e criativo descubra e construa, viva e partilhe o amor e a Unidade primordial...
 Sabermos adentrar-nos na floresta encantada, no jardim maravilhoso implica sermos Cavaleiros e Cavaleiras do Amor prestes a defender a dama, a musa, a árvore, a floresta, a aldeia...
 Que anjos e espíritos da natureza, que ideias e sentimentos se podem manifestar nas nossas almas e visões, diálogos e encontros é sempre o desafio criativo expresso na tenção ou talento de bem agir, de bem pensar, de bem ser, de bem amar.
 Enquanto a neblina permanece, enquanto na noite imensa se estende, devemos soprar a chama do amor, pois tudo é possível na osmose libertadora e iluminadora entre seres e e mundos.
O piar das aves no meio da imensa neblina faz-nos lembrar como os seres também clamam pela luz divina e como devemos estar atentos aos súbitos momentos em que os céus e a terra se podem abrir e unir pelo anel da graça humana e no amor deixarem descobrir, desvendar o divino, a Divindade em nós...
Possamos então adentrar-nos ora na floresta encantada ora nas neblinas mais cerradas e difíceis, com o fogo do Graal ardendo bem luminosamente...

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Os "Sonetos" de Antero Quental, na edição de 1881, de Joaquim de Araújo. 2ª parte.

                              
Os Sonetos de Antero de Quental, na edição ainda pequena de 1881 (face aos Sonetos Completos, de 1886) e realizada a instâncias de Joaquim de Araújo na Biblioteca da Renascença (como já narrámos na 1ª parte deste pequeno ensaio), transmitem principalmente linhas de força do seu processo crítico de libertação de mistificações religiosas e de ilusões e medos humanos, numa demanda intensa e sentida da Verdade, filosófica e espiritualmente, proporcionadora sobretudo de desprendimento, estoicismo e serenidade.
                              
Vejamos brevemente o conteúdo ou argumento desses 21 sonetos em títulos e 28 na totalidade, escritos entre 1872 e 1880:
No 1º, Homo, ergue uma interrogação fantástica sobre o ser humano e a sua origem, visto por um lado como «parto da terra monstruoso; do húmus primitivo e tenebroso/ geração casual sem pai nem mãe», e por outro talvez descendente de Satanás ou de Jeová, ou de ninguém. Antero assinala a luta entre os darwinistas, os criacionistas e os gnósticos, apontando para um dualismo «misto infeliz de trevas e de brilho».
No 2º, Disputa em Família, com dois sonetos, no primeiro, Antero desmitifica a concepção humana primitiva e hebraica de «Jehová, o tirano, de mão tenaz e astuta, / Que mil anos nos trouxe arrebanhados» e liberta-se dessa «vã banalidade». No segundo soneto, depois de criticar a concepção cristã (que não é a de Jesus) do Deus Pai na 1ª quadra: «Mas o velho solitário,/ De coração austero e endurecido,/ Que um dia, de enjoado ou distraído, Deixou matar seu filho no Calvário», mostra o velho tirano sorrir "com riso estranho" perante as revoltas e mudanças que os humanos tentam contra ele, pois que antes de nascerem já ele sabia tudo isso...
O 3º, Mors-Amor, é sem dúvida um mais dos belos e poderosos sonetos de Antero de Quental, nele afirmando a sua inserção na tradição dos Cavaleiros do Amor: "E o corcel negro diz:«Eu sou a Morte!»/ Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor!»". Foi escrito algo inspiradamente em França, nas termas de Bellevue (onde se encontrava em hidroterapia de banhos a jacto, recomendados como eficazes para o seu "grande desarranjo nervoso geral e complicado" pelo famoso  mas por vezes algo pouco profundo Charcot,), interrogando-se em carta de 20 de Julho de 1877 a João Lobo de Moura:«Não sei bem o que quer dizer francamente, mas a execução agrada-me». Estava em sincronia com o Amor que subitamente despertara entre ele e uma senhora francesa, também nas termas, numa paixão que perdurou por algum tempo.
                              
No 4º, À Virgem Santíssima, com um sonho-visão do seu olhar piedoso, afirma a sua devoção ao Eterno Feminino, de graça, misericórdia, suavidade, e mesmo já de perdão, ternura e paz para a hora derradeira humana. Antero sublima o amor humano natural ao torná-lo capaz de captar um tipo ou nível de beleza mais elevado e subtil: «Não era o vulgar brilho da beleza,/ Nem o ardor banal da mocidade.../ Era outra luz, era outra suavidade,/ Que até nem sei se as há na natureza...». Foi enviado por Antero ainda nos seus 30 anos a João Lobo de Moura, em 12-IV-1872, com a explicação «foi composto por um monge da Idade Média (aí pelo século XIII) na solidão soave-austera do Monte Cassino, um contemporâneo talvez do autor misterioso da Imitação de Cristo, e é dirigido à Virgem-cheia-de-graça do sentimento cristão, a que mais tarde um pagão ilustre deu o nome de Eterno Feminino», tendo redigido e enviado na mesma ocasião um de inspiração budista ou neo-búdica, intitulado Nirvana, que será um dos seis do Elogio da Morte, desta edição de 1881, mas já sem título.
No 5º, Elogio da Morte, o mais longo com seis sonetos, Antero, com o seu sentimento e pensamento, vai explorar o vácuo infinito e a morte, impulsionado pelo Inconsciente ou Absoluto, vencendo os medos e sentindo amor pela «Morte! irmã do Amor e da Verdade»,
comparando-a à Beatriz de Dante, guia no além da alma, «irmã co-eterna da minha alma» e, vendo escritos nos olhos fixos dela os lemas do Ideal, confia: «Dormirei no teu seio inalterável,/ Na comunhão da paz universal,/ Morte libertadora e inviolável». 
No último dos seis sonetos do ciclo apresenta a sublimação filosófica do medo da morte num justificado amor corajoso, que o leva até a afirmar: «Talvez seja pecado procurar-te, / Mas não sonhar contigo e adorar-te,/ Não-ser, que és o Ser único absoluto».
Estes seis sonetos tiveram diversas avatarizações ou manifestações, e assim um deles, o segundo, "Na floresta dos sonhos, dia a dia", escrito e enviado em 12 de Abril de 1872 a Lobo Moura, com uma extensa justificação, fora intitulado Nirvana aquando da sua publicação em Fevereiro de 1875 na Revista Ocidental, que Jaime Batalha Reis e ele tinham criado. Mas na edição de 1881, Antero, mais amadurecido e conhecedor, retirou-lhe o título, incluiu-o apenas no Elogio da Morte, e dará o nome de Nirvana a um outro e penúltimo soneto, mais filosófico, sendo a comparação entre os dois instrutiva quanto à evolução da sua compreensão do nirvana e dos fins últimos dos seres e do universo. 
Neste sentido Antero considerará, em carta a António Azevedo de Castelo Branco de Abril de 1875, estes poemas, escritos «sem a menor tristeza ou desalento, antes com paz íntima e profunda confiança» e sob a influência da doença e na reflexão da morte, como «uma espécie de Filosofia idealista da Morte (...) mostrando como o pensamento se eleva gradualmente desde uma impressão toda negativa até à mais alta idealidade, compreensiva e plácida».
No 6º soneto, Divina Comédia, passada a desmistificação do sinistro Jeová e da morte, aquele uma vã banalidade ou espectro tirânico, esta confrontando-a corajosamente e vendo-a antes como entrada no seio da paz do Não-ser Absoluto e primordial, Antero de Quental põe em causa os Deuses de outras religiões criados pelos homens e mostra que teve presente a obra de Dante nestes sucessivos sonetos, em especial os do Elogio da Morte, ao qual podemos chamar mesmo viagem iniciática, tanto mais que leva como epígrafe inicial: «Morrer é ser iniciado», frase da Antologia Grega que além de Joaquim de Araújo também Fernando Pessoa glosou no seu bem esotérico poema Iniciação e não só. Na carta ao seu grande amigo António de Azevedo Castelo Branco, de 17-X-1875, Antero envia-lhe quatro destes sonetos e explica que o pensamento ou sentimento que os inspirou corresponde, ao fim de milhares de anos, ao tão pouco que sabermos de Deus, uma verdade ainda bem actual no séc. XXI face a tanta ignorância e fanatismo das pessoas de religiões.
                                 
No 7º, No Turbilhão, Antero está só e vê em sonho e visões, numa espiral, os espectros dos seus «pensamentos, fantasmas de mim mesmo e da minha alma» e interroga-se sobre quem são, quem é ele. Antero de Quental, a meio desta jornada iniciática filosófica, está só, consigo e a sua psique. Será sempre um mistério se os terá mesmo visto no seu olho espiritual ou se apenas imaginalmente sentiu e intuiu alguns aspectos subtis dos pensamentos e sentimentos, almas e espírito, mas de facto a consciência e certeza firme no espírito e nos espíritos não surge suficientemente em Antero de Quental.
No 8º Quia Aeternus, de 1875, dedicado a Joaquim de Araújo, Antero regista que todavia mesmo os que tentam sacudir «o jugo da divina tirania» mas folgam em orgias podem subitamente empalidecer e tremer. É como que um aviso apocalíptico, na aventura libertadora mas por vezes desregrada tanto da humanidade como anteriana, do espectro de Jeová poder surgir a qualquer momento. 
Anote-se que o encobrimento da verdadeira realidade de Deus pelo arremedo de Jeová será causador de uma carência ontológico-teológica no ser humano ocidental e também de que há de facto uma ordem cósmica, ética mesma. O título do poema vem da expressão usada por S. Agostinho de Hipona, patients quia eternus, "paciente porque eterno", em relação a Deus. Aqui, algo ironicamente utilizada...
No 9º soneto, Mors Liberatrix, escrito em Outubro de 1878 e logo publicado na revista Renascença, de Joaquim Araújo, a quem enviara, Antero avança mais na linha dos Cavaleiros do Amor (à qual pertenceram entre nós Duarte Galvão, Damião de Goes, Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Bocage, entre outros) glosando o soneto Mors-Amor, e na mão do «cavaleiro vestido de armas pretas,/brilha uma espada, feita de cometas,/ que rasga a escuridão, como um luzeiro» que avança no "curso aventureiro", com "o gládio de luz" que "é a espada da Verdade" Firo, mas salvo... Prosto e desbarato, / Mas consolo... Subverto, mas resgato.../ E, sendo a Morte, sou a Liberdade.» Antero corajosamente vê a morte como a suprema libertadora.
                                
No 10º, O Inconsciente, Antero trabalha com originalidade o conceito de Inconsciente, desenvolvido por Edouard von Hartmann (mas cuja obra ainda pouco conhecia  quando o escreve em 1874), para quem significava a caracterização do Absoluto, devida à impossibilidade de Ele ter uma consciência, que forçosamente o limitaria. Consciência Absoluta corresponderia a Inconsciência Absoluta. Antero não vai tão longe, humaniza-o e equipara-o a um espectro que o acompanha e que, chamado pelos humanos há dez mil anos por Deus, não sabe como se chama, estando portanto  inconsciente de Si mesmo. 
Neste soneto e no intitulado Logos, muito semelhantes, há um tentar sondar dos vários níveis e faces com que a voz da Consciência, o génio, o Espírito em nós, a ideia de Deus, o Absoluto se podem manifestar. É a um nível muito íntimo e profundo que tais reverberações do Divino se manifestam e em formas certamente bem subtis e difíceis de se cingir e definir pelo pensamento discursivo e filosófico. No vídeo final abordei o tema no fluir da palavra-logos no momento...
No 11ª, Consulta, de 1880, ergue-se genialmente a uma espécie de reminiscência, a um exercício espiritual de auscultação e diálogo com o seu passado, memórias, seres, vozes, e mesmo com «a mais feliz, a mais serena», mas todas lhe respondem que não vale a pena ter nascido. Antero mostra-se mais do que exigente, desiludido, ou mesmo incapaz de sentir a riqueza perene de pessoas, seres, momentos e sem alcançar também a certeza da imortalidade e sem sentir firme o Amor (imortal) vivido e manifestado em si, ao longo da sua vida.
No 12º, Espiritualismo, Antero mostra-se algo pessimista pois dá um dos títulos mais valiosos que poderia coroar e inspirar um soneto, a dois que são bem desanimadores: no primeiro, a Dúvida, como vento de morte e ruína empecenhou a criação divina e já «só uma flor humilde e misteriosa,/ Como um vago protesto da existência,/ Desabrocha no fundo da consciência». No segundo, essa flor imaculada vai morrer também e «no vácuo eterno se esvairá disperso,/ Como o alento final dum moribundo,/ Como o último suspiro do Universo». 
Contudo, podemos ver nestes sonetos aproximações ao final da manifestação cósmica, ao misterioso retorno ao Não-ser primordial; e indubitavelmente, Antero foi dos nossos poetas e filósofos quem mais cogitou, sentiu e poetizou tal elevado nível, certamente inacessível ao ser humano encarnado e durante a manifestação, apesar de tanta gente falar no vazio e no nirvana. 
Todavia, nas suas obras em prosa principais, A Filosofia da Natureza dos Naturalistas e as Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX, afirmou com relativa força o panpsiquismo, a imortalidade espiritual, no fundo valorizando a presença do Absoluto (Inconsciente ou Divindade) enquanto Princípio ideal, Ser, Logos, Amor, Justiça e Bem na história humana e cósmica, ou mesmo como Espírito no ser humano.
               
No 13º, Anima Mea, Antero de Quental, num volta a face, apresenta-nos a morte nos seus aspectos mais repulsivos ou terríficos, como serpente, fúnebre bacante, demente, impudente, loba faminta. E o que ela quer não é o corpo que ninguém quer dar, mas apenas a alma. E a resposta de Antero é genial: « - A minha alma já morreu». Genial, porque é como se Antero tivesse matado a morte, morrendo antes. Como não pensarmos em Fausto, ou sobretudo no dito grego "Morrer é ser iniciado"?
Como iniciado no caminho da realização espiritual e da cavalaria do Amor, da Justiça e da Liberdade Antero já tinha morto o seu ego, personalidade e alma inferior, animal e terrena. Talvez por isso se possa compreender e justificar o seu suicídio. Antero não foi apanhado pela morte, pois de certo modo morrera já a sua alma e apenas libertou o espírito (com o que restava da alma, ou com alma que o envolvia) do corpo físico. Todavia, intuíra ou previra ele bem o que seria o além, como se encontraria ou sobreviveria ele no além, se haveria mesmo a dissolução libertadora ou não? Mistérios... 
No 14º, Estoicismo, uma linha de força bem importante em toda a vida de Antero, o que podemos esperar neste confronto com as ilusões religiosas e os medos da morte, senão a afirmação de firmeza perante as adversidades? Pois Antero vai-se dualizar, por um lado atribuindo ao espírito de eterna negação exterior a destruição das primaveras da sua alma, fazendo com que o seu coração se sinta só e na escuridão. Antero então critica o coração cobarde e egoísta e recomenda-lhe «Deixa aos tímidos, deixa aos sonhadores/ A esperança vã, seus vãos fulgores.../sabe tu encarar sereno o abismo». 
Antero surge de novo como um iniciado falando ao seu coração, ao seu lado humano e até intimo, recomendando-lhe a virtude do estoicismo, da serenidade, perante as trevas e o não universal. Não é assim o Cosmos ou Universo, na sua multidimensionalidade espiritual e divina, mas Antero ficou algo preso num umbral que Fernando Pessoa também sentiu difícil e poetizou, ambos não tendo talvez feito suficientemente irradiar a luz do espírito. Todavia enfrentou-o corajosamente, estoicamente, até que anos depois, por circunstâncias várias, partiu, tanto inquieto como sereno, para o abismo misterioso do além...
No 15º, O Convertido, antecipa no título o que Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra e outros fizeram, e pensaremos que a conversão que ele recomendará será mais à austera libertação de todas as alienações. Mas não, pois Antero reconhecendo a possibilidade de se arrepender dos desmandos e o seu coração se tornar contrito e querer voltar à paz, os métodos que ele anuncia e utiliza são ironizados; «amortalhei na fé o pensamento,/ E achei a paz na inércia e no esquecimento.../ Só me falta saber se Deus existe!» Antero critica as conversões que frequentemente são falsas, mero amortalhar do livre pensamento e da lucidez investigadora.
 

No 16º, Sepultura Romântica, Antero de Quental avança com a dissolução do seu coração em impalpável pó. Não fala nem no corpo nem na alma, apenas no coração «com suas lutas, seu cansado anseio/Seu louco amor, dissolva-se no seio/ Desse infecundo, desse amargo mar». Seria bom intuirmos como sentia Antero o mar de Vila de Conde, ou o dos Açores, que pode estar referido no primeiro quarteto, e se o amargo mar do último verso do soneto já diz respeito ao mar cósmico da ilusão, do samsara, indiano e budista. Dando o nome de Sepultura Romântica, Antero parece querer, mais do que inserir este soneto num estilo e período literário, sepultar a sua fase juvenil romântica que tão belos poemas gerara mas que pouco lhe deixara de chama permanente e de auto-visão espiritual.
                         
No 17º soneto, intitulando-o Logos, Antero dará ao princípio de Inteligência do Universo uma interpretação original pois torna-o seja uma espécie de génio pessoal, o seu daimon, seja a sua alma espiritual, seja um super-ego: «Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim/ E o que é mais, dentro em mim - que me rodeias/ Com um nimbo de afectos e ideias,/ Que são o meu princípio, meio e fim...» É um "estranho ser" (se és ser, interroga ele) que o leva a regiões ora de encanto ora de pavor. Mas ainda que admitindo que «és um reflexo apenas da minha alma», vai erguê-lo a uma espécie de fonte de inspiração, embora não sentindo nele a dimensão feminina, a Musa, a Fravashi dos místicos persas, tão bem trabalhada imaginalmente nos nossos dias por Henry Corbin: «Falo-te, calas... calo, e vens atento.../ És um pai, um irmão, e é um tormento/ Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!».
É um soneto cheio de opostos, de teses e antíteses, não e sim, mas no qual Antero assume o Logos como sendo o seu génio intelectual, que adora apesar de lhe chamar tirano, mas que não é já nada o Deus Jehová bíblico e exterior, antes apontando para uma consciência interior ética bem desabrochada, a tal Voz da Consciência que Antero de Quental tanto valorizará sempre, o Logos em nós...
No 18º soneto Ignotus, o último criado por Antero uns meses antes de ele e Joaquim Araújo terem o parto do livrinho, nascido de uma noite sem dormir, deparamo-nos com o ser religioso de Antero bradando aos céus, demandando o Espírito, e de novo, tal como quando interrogou o Homem em si mesmo, o deus Jehová e os deuses, a resposta é que não sabem quem são, ainda não se encontraram.
Significativamente, se Antero caracteriza inicialmente o Espírito como enchendo a solidão e depois como antigo, e portanto algo limitadamente, no terceto final, afirma-o desde toda a eternidade na busca sem se encontrar. Há aqui uma descrença em Antero de se encontrar a essência, a verdade, a realidade. Sabemos contudo que frequentemente Antero afirmou e por certa vivência («pensando muito e escutando docilmente o segredar da consciência, pude emergir do pessimismo que me entenebrecia a existência e recuei no caminho da negação absoluta em que estava precipitado»), que o pessimismo era apenas um ponto de partida e passagem e não de chegada, pois existe o mundo espiritual e moral onde «a harmonia, a liberdade e o optimismo são tão inerentes»...
O 19º soneto é dedicado ao seu grande amigo João de Deus, poeta lírico de amor e da natureza, e intitulado o Circo, após a odisseia de busca em vão do Espírito e de Deus, mostra-nos Antero de Quental a confessar a reminiscência de ter vivido no mundo espiritual harmonioso leve e belo até que um vento o fez rolar e cair e entrar numa fera: «É assim que rujo entre os leões agora!». Este soneto é muito importante, ao afirmar a preexistência das almas, ou mesmo o dom da reminiscência do mundo espiritual e divino donde provimos, tão enaltecido pelos pitagóricos, neo-platónicos e outros iniciados. 
O soneto, apesar de terminar na horizontalidade da vida animal e humana, denominado mesmo de Circo, porque nessa arena se domesticam ou amestram as feras, é um dos que mais transmite uma linha energético-consciencial bem vertical e ascensional, pois afirma a nossa origem espiritual e de algum modo a necessidade de domarmos ou amestrarmos os nossos instintos mais animais, egoístas ou mesmo violentos.
                     
Estamos quase no fim, e na ordenação dos sonetos o 20º e penúltimo leva o nobre título, tão desenvolvido no Budismo, de Nirvana. Embora nunca possamos ter a plena noção de como Antero via ou compreendia o Budismo só pelos poemas ou mesmo também pelas cartas, este soneto ajuda-nos. Em 1880 Antero de Quental via ou ideava o Nirvana, pelo menos num dos seus aspectos ou sentidos, como a consciência de que o universo é ilusório e vazio, mesmo nas coisas naturais «à bela luz da vida», pois tal como começa o soneto: «Para além do universo luminoso/ Cheio de formas, de rumor, de lida,/ De forças, de desejos e de vida,/Abre-se como um vácuo poderoso». 
É uma visão negativa directa do nirvana, que significando originalmente a morte - extinção da sede de existência, da separatividade, da ignorância e do sofrimento é aqui atingido por uma visão do mundo imóvel do Não-ser, a qual cria em relação ao mundo da manifestação tédio por ele ele ser ilusório e vazio. Antero de Quental nesta conclusão não afirma o panteísmo nem o panpsiquismo, que serão conhecimentos ou realizações conquistados posteriormente, embora o último soneto desta edição dardeje algo do misterioso Espírito omnipresente. 
Para exemplificarmos outra visão ou aproximação ao Nirvana de Antero, oiçamo-lo numa carta ao jovem poeta Carlos de Lemos, de 5-II-1888: «O Nirvana não é passivo, não é inerte e puramente contemplativo é, pelo contrário, essencialmente activo; somente essa actividade já não é apaixonada, porque cessou de ser egoísta. É, por assim dizer, impessoal. Se os meus sonetos valem alguma coisa, valem sobretudo por dizerem isto, ou, pelo menos, por deixarem entrever isto (...)»
O último soneto, significativamente o 21º, a última carta do Tarot, poderá desenhar a síntese que Antero conseguira até então, restando-lhe ainda dez anos de vida, cinco dos quais consagrados nos restantes sonetos que realizará, saindo em 1886 a edição completa deles, e os outros cinco anos para ultimar em prosa o seu testamento, as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, que sairá a partir de Fevereiro de 1890, na Revista de Portugal, um ano antes de morrer.
Transcendentalismo é seu título e, dedicado ao seu grande amigo Joaquim Pedro d'Oliveira Martins,  observamos nele uma visão e mensagem próxima do soneto final da edição dos Sonetos Completos de 1886, na qual o seu coração descansará na mão de Deus. 
Contudo sabemos que Transcendentalismo  foi escrito em 1876 e o seu conteúdo significava então para Antero quando o enviou em 5 de Julho para João Lobo de Moura «um salmo, uma efusão religiosa, porque está ali com efeito a minha religião, o meu culto da existência suprasensível, sem o qual não sei o que seria desta minha pobre existência sensível (helas! trop!). O meu misticismo dia a dia se consolida mais, como sentimento e como doutrina». Antero afirmava assim um transcendentalismo impessoal ou, como explica na carta, estar a progredir através de estudos comparativos das religiões e aplicando um «critério metafísico» ao Cristianismo.
 Oiçamos os tercetos finais:
          «Não é no vasto mundo — por imenso
           Que ele pareça à nossa mocidade —
           Que a alma sacia o seu desejo intenso... 


           Na esfera do invisível, do intangível,
           Sobre desertos, vácuo, soledade,
           Voa e paira o espírito impassível!»
                         
O soneto, embora escolhido para coroa final do livro, ressente-se todavia de parecer ser mais uma construção intelectual do que uma descrição duma experiência real de tais níveis, provavelmente mais  vistos como cósmicos do que individuais, onde "espírito que voa e paira impassível". E ficamos até com alguma dúvida se está apenas  afirmar o Espírito absoluto a voar e pairar, se antes o espírito individualizado, ou mesmo se os dois....
Este espírito sendo individual, se impassível já estivesse no seu revestimento anímico, desprendido de tudo, então vibraria ou no seu nirvana de desaparecimento inefável, extinta a separatividade e ilusão do eu, ou então, estando individuado e imortalizado, desfruta do amor e da beatitude, como espírito ligado ao Ser Divino, criativamente agindo no Cosmos multidimensional, visão e concepção esta última que Antero de Quental influenciado pelo Inconsciente e o Budismo não afirmou tanto.
Demos então muitas graças pela demanda espiritual de  Antero de Quental nos Sonetos e tentemos  despertar mais e aprofundar a nossa auto-consciência espiritual e religação Divina, na linha da Tradição Espiritual Universal e Portuguesa, onde Antero de Quental brilha pioneiramente...
Segue-se o 2º vídeo de comentário resumido aos sonetos finais da antologia de 1881, como sabemos devida à amizade e diligência de Joaquim de Araújo, que aliás  lhe merecera considerá-lo como o seu herdeiro, pobre (no que ganharia de direitos), dos Sonetos. Saibamos continuá-los em oitavas superiores, luminosa e amorosamente...
             

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Os "Sonetos" de Antero Quental, na edição de 1881, de Joaquim de Araújo. 1ª parte.

Nos primeiros dias de 1881 saía à luz na cidade do Porto, uma pequena edição de Sonetos de Antero de Quental, na Biblioteca da Renascença, por seu amigo e poeta Joaquim de Araújo (Penafiel, 1858-1917, Sintra). Um in-8º de 36 páginas, composto na Imprensa Portugueza e contendo 28 sonetos.
A génese da obra deduz-se da correspondência entre Joaquim de Araújo e Antero de Quental nos meses que antecedem a publicação, Joaquim de Araújo vivendo no Porto e Antero de Quental em Lisboa, na rua da Fé, coligindo o Tesouro Poético da Infância, que só virá porém à luz em 1883 e contendo o seu belo poema As Fadas, que já foi tema de um nosso artigo.
                                 
(Fotografámos o exemplar que foi do distinto bibliófilo, tradutor e historiador Dr. Fernandes Tomás.)
Assim, nos primeiros dias de Outubro de 1880, Antero de Quental, numa noite mal dormida, redige e envia a Joaquim de Araújo o soneto Ignotus, e no qual quem busca o espírito ignoto acaba por receber dele a desconcertante ou interpelante resposta: - "Também eu ando à busca de mim mesmo"... 
Mas será numa carta de meados do mês de Outubro, depois de agradecer os poemas enviados por Joaquim de Araújo para a projectada antologia infantil, ou tesouro poético, e dizer-lhe: «Os versinhos que me mandou são encantadores. É pena que sejam tão tristes e funéreos de assunto. Num livrinho para a infância, que é como quem diz para a alegria descuidosa, convém fugir daquele tom», que Antero refere pela primeira vez o projecto editorial: «Quanto aos meus Sonetos, eu cuidei que Você os publicava sem o menor sacrifício, com os lucros da [revista] Renascença e como brinde aos assinantes da mesma. Diz-me você agora que os destina à venda, ao público, na esperança de reaver o dinheiro que já lhe custa a composição. Neste caso, eu antes lhe daria o conselho que não fizesse tal publicação, que só pode fazer-lhe perder mais dinheiro ainda. Você é muito criança [Joaquim contava com 22 anos] e literato, e na candura destes dois caracteres, imagina que o pública se importa com os sonetos e que vai devorar a edição dum folheto de versos que ele não compreende. É uma ilusão. O folheto ficará sem venda, e Você perderá o seu dinheiro, coisa que eu não posso consentir. Assim pois, desista de tal publicação, que é o partido mais prudente. Não cuide que está obrigado para comigo a fazê-la. Nem por sombras...»
Será a 28 de Outubro de 1880, após a resposta esclarecedora de Joaquim Araújo, da qual não temos registo, que Antero confirma a adesão ao projecto: «Vamos aos Sonetos. Em vista das explicações que me dá, quanto aos elementos financeiros da publicação já nada tenho a objectar. Agora o que desejo é que o livrinho, além de ter na capa «edição da Renascença» leve dentro a Advertência que envio. A razão desta exigência é a seguinte: Eu não publico coisa alguma vai em 8 anos. Depois de tal silêncio, aparecer agora com um folheto de 28 Sonetos é ridículo, e, com efeito, eu não faria tal publicação. Mas deixa de o ser no momento em que não sou eu que o faço essa publicação, em que não é minha a iniciativa. É o que porão a claro a Advertência dos editores e a inscrição na capa. De resto, autorizo-o a modificar a redacção da Advertência, se, como está, não lhe parecer bem nalguma coisa. »
Em seguida dá algumas indicações de dedicatórias, corrige erros de provas e escreve: «Aí vai a lista completa [sonetos], segundo a definitiva ordem que adopto. Ponha os que faltam nos lugares competentes». A 3 de Novembro ainda escreve a Joaquim de Araújo: «Deve ter recebido uma carta minha e juntamente as provas. Foi tudo no mesmo correio. Não posso passar sem ver ainda uma última prova»
                                      
E a obra sairia nos primeiros dias de 1881, conforme está assinalado na capa, embora o frontispício indique 1880. No fim do livrinho a programada Advertência tornara-se uma Nota, assinada pela Redacção da Renascença, ou seja o jovem de Penafiel Joaquim de Araújo, na qual se explica que provindo de colaborações dos jornais Harpa e Renascença e de outras dispersos por várias publicações « (...) pondo desta forma ao alcance dos apreciadores a série completa dos Sonetos filosóficos até hoje produzidos pelo grande poeta das Odes Modernas, depois da aparição da segunda edição deste livro.» A primeira, e a segunda edição muito remodelada das idealistas e revolucionárias Odes Modernas, tinham sido dadas aos adeptos em 1865 e 1875.
                    
Numa carta não datada de Janeiro a Joaquim de Araújo, Antero confessará o seu agrado estético e anímico: «A edição dos Sonetos pareceu-nos muito bem e o melhor possível. Elegante e fina sem pretensão. Digo nós, porque foi esta também a opinião do João [de Deus] a quem mandei um exemplar. Creio que precisarei, ao todo, de uns 40 exemplares, para oferecer a várias pessoas.»
E como os ofereceria ou apresentava aos amigos ou conhecidos, perguntaremos? 
Vejamos um: A Gabriel Pereira, arqueólogo e etnógrafo, escreve já a 20 de Março: «Tomo a liberdade de enviar a V. Ex.ª um exemplar do volumezinho de Sonetos meus, que um amigo se lembrou de editar. É um poesia lúgubre e fantástica, que se ressente talvez demasiado das preocupações e sentimentos habituais do autor, para poder agradar a quem olhar a vida por outro prisma menos escuro».
                       
Ora eu, neste ano de 2018, depois de uma leitura rápida da obra num dos bancos do jardim da Estrela, e de ter dado uma volta pelo mesmo, alimentando até os patos, resolvi ao findar do dia comentar resumidamente os sonetos, gravando um vídeo de 23 minutos que vai até ao soneto Consulta.
                               
Eis a lista dos sonetos: Homo, Disputa em Família (2 sonetos), Mors-Amor, à Virgem Santíssima, Elogio da Morte (6), Divina Comédia, No Turbilhão, Quia aeternus ([Paciente] porque eterno), Mors Liberatrix (Morte Libertadora), O Inconsciente, Consulta. E foram os comentados brevemente neste 1º vídeo. No próximo, os restantes: Espiritualismo (2), Anima Mea, Estoicismo, O Convertido, Sepultura Romântica, Logos, Ignotus, No Circo, Nirvana, Transcendentalismo. 
Anote-se que já partilhei num breve artigo (para a página Antero de Quental, escritor, no Facebook), a forte crítica de Teófilo Braga à pessoa e poesia de Antero, exarada na revista Era Nova, nº 7, 1881, desconhecendo-se a reacção de Antero, não só pessoalmente como ideologicamente. Contudo ele não deve ter sido apanhado desprevenido pois uns meses antes numa carta a Oliveira Martins já considerara quão torcido era Teófilo de Braga. Não obstante, na crítica à  "voluptuosidade da morte" tinha alguma razão Teófilo, aliás até confirmada por Antero ao classificar a sua poesia como algo "lúgubre" na carta a Gabriel Pereira.
Nesse sentido auto-crítico e evolutivo da alma e da poesia sabemos que o retiro em Vila de Conde, que se inicia poucos meses depois do livro, em finais de Agosto, vai-lhe permitir aprofundar até onde pode os seus anseios filosóficos de psicodinamismo que unifique a imanência e a transcendência do Ser, sendo valioso destacarmos nestes sonetos publicados as linhas de força que já fermentavam nele, embora ainda longe da acção harmonizadora ou inspiradora do grande Oceano e das duas crianças de Germano Meireles adoptadas a quem tanto se afeiçoou...
                         
A evolução espiritual de Antero, nas suas fases, características e realizações, terá sempre mistérios a desafiarem-nos...
Na parte final do vídeo, estou já a ler na penumbra um ou outro verso de nosso Antero...
Pax, Lux, Amor!