sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Os "Sonetos" de Antero Quental, na edição de 1881, de Joaquim de Araújo. 2ª parte.

                              
Os Sonetos de Antero de Quental, na edição ainda pequena de 1881 (face aos Sonetos Completos, de 1886) e realizada a instâncias de Joaquim de Araújo na Biblioteca da Renascença (como já narrámos na 1ª parte deste pequeno ensaio), transmitem principalmente linhas de força do seu processo crítico de libertação de mistificações religiosas e de ilusões e medos humanos, numa demanda intensa e sentida da Verdade, filosófica e espiritualmente, proporcionadora sobretudo de desprendimento, estoicismo e serenidade.
                              
Vejamos brevemente o conteúdo ou argumento desses 21 sonetos em títulos e 28 na totalidade, escritos entre 1872 e 1880:
No 1º, Homo, ergue uma interrogação fantástica sobre o ser humano e a sua origem, visto por um lado como «parto da terra monstruoso; do húmus primitivo e tenebroso/ geração casual sem pai nem mãe», e por outro talvez descendente de Satanás ou de Jeová, ou de ninguém. Antero assinala a luta entre os darwinistas, os criacionistas e os gnósticos, apontando para um dualismo «misto infeliz de trevas e de brilho».
No 2º, Disputa em Família, com dois sonetos, no primeiro, Antero desmitifica a concepção humana primitiva e hebraica de «Jehová, o tirano, de mão tenaz e astuta, / Que mil anos nos trouxe arrebanhados» e liberta-se dessa «vã banalidade». No segundo soneto, depois de criticar a concepção cristã (que não é a de Jesus) do Deus Pai na 1ª quadra: «Mas o velho solitário,/ De coração austero e endurecido,/ Que um dia, de enjoado ou distraído, Deixou matar seu filho no Calvário», mostra o velho tirano sorrir "com riso estranho" perante as revoltas e mudanças que os humanos tentam contra ele, pois que antes de nascerem já ele sabia tudo isso...
O 3º, Mors-Amor, é sem dúvida um mais dos belos e poderosos sonetos de Antero de Quental, nele afirmando a sua inserção na tradição dos Cavaleiros do Amor: "E o corcel negro diz:«Eu sou a Morte!»/ Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor!»". Foi escrito algo inspiradamente em França, nas termas de Bellevue (onde se encontrava em hidroterapia de banhos a jacto, recomendados como eficazes para o seu "grande desarranjo nervoso geral e complicado" pelo famoso  mas por vezes algo pouco profundo Charcot,), interrogando-se em carta de 20 de Julho de 1877 a João Lobo de Moura:«Não sei bem o que quer dizer francamente, mas a execução agrada-me». Estava em sincronia com o Amor que subitamente despertara entre ele e uma senhora francesa, também nas termas, numa paixão que perdurou por algum tempo.
                              
No 4º, À Virgem Santíssima, com um sonho-visão do seu olhar piedoso, afirma a sua devoção ao Eterno Feminino, de graça, misericórdia, suavidade, e mesmo já de perdão, ternura e paz para a hora derradeira humana. Antero sublima o amor humano natural ao torná-lo capaz de captar um tipo ou nível de beleza mais elevado e subtil: «Não era o vulgar brilho da beleza,/ Nem o ardor banal da mocidade.../ Era outra luz, era outra suavidade,/ Que até nem sei se as há na natureza...». Foi enviado por Antero ainda nos seus 30 anos a João Lobo de Moura, em 12-IV-1872, com a explicação «foi composto por um monge da Idade Média (aí pelo século XIII) na solidão soave-austera do Monte Cassino, um contemporâneo talvez do autor misterioso da Imitação de Cristo, e é dirigido à Virgem-cheia-de-graça do sentimento cristão, a que mais tarde um pagão ilustre deu o nome de Eterno Feminino», tendo redigido e enviado na mesma ocasião um de inspiração budista ou neo-búdica, intitulado Nirvana, que será um dos seis do Elogio da Morte, desta edição de 1881, mas já sem título.
No 5º, Elogio da Morte, o mais longo com seis sonetos, Antero, com o seu sentimento e pensamento, vai explorar o vácuo infinito e a morte, impulsionado pelo Inconsciente ou Absoluto, vencendo os medos e sentindo amor pela «Morte! irmã do Amor e da Verdade»,
comparando-a à Beatriz de Dante, guia no além da alma, «irmã co-eterna da minha alma» e, vendo escritos nos olhos fixos dela os lemas do Ideal, confia: «Dormirei no teu seio inalterável,/ Na comunhão da paz universal,/ Morte libertadora e inviolável». 
No último dos seis sonetos do ciclo apresenta a sublimação filosófica do medo da morte num justificado amor corajoso, que o leva até a afirmar: «Talvez seja pecado procurar-te, / Mas não sonhar contigo e adorar-te,/ Não-ser, que és o Ser único absoluto».
Estes seis sonetos tiveram diversas avatarizações ou manifestações, e assim um deles, o segundo, "Na floresta dos sonhos, dia a dia", escrito e enviado em 12 de Abril de 1872 a Lobo Moura, com uma extensa justificação, fora intitulado Nirvana aquando da sua publicação em Fevereiro de 1875 na Revista Ocidental, que Jaime Batalha Reis e ele tinham criado. Mas na edição de 1881, Antero, mais amadurecido e conhecedor, retirou-lhe o título, incluiu-o apenas no Elogio da Morte, e dará o nome de Nirvana a um outro e penúltimo soneto, mais filosófico, sendo a comparação entre os dois instrutiva quanto à evolução da sua compreensão do nirvana e dos fins últimos dos seres e do universo. 
Neste sentido Antero considerará, em carta a António Azevedo de Castelo Branco de Abril de 1875, estes poemas, escritos «sem a menor tristeza ou desalento, antes com paz íntima e profunda confiança» e sob a influência da doença e na reflexão da morte, como «uma espécie de Filosofia idealista da Morte (...) mostrando como o pensamento se eleva gradualmente desde uma impressão toda negativa até à mais alta idealidade, compreensiva e plácida».
No 6º soneto, Divina Comédia, passada a desmistificação do sinistro Jeová e da morte, aquele uma vã banalidade ou espectro tirânico, esta confrontando-a corajosamente e vendo-a antes como entrada no seio da paz do Não-ser Absoluto e primordial, Antero de Quental põe em causa os Deuses de outras religiões criados pelos homens e mostra que teve presente a obra de Dante nestes sucessivos sonetos, em especial os do Elogio da Morte, ao qual podemos chamar mesmo viagem iniciática, tanto mais que leva como epígrafe inicial: «Morrer é ser iniciado», frase da Antologia Grega que além de Joaquim de Araújo também Fernando Pessoa glosou no seu bem esotérico poema Iniciação e não só. Na carta ao seu grande amigo António de Azevedo Castelo Branco, de 17-X-1875, Antero envia-lhe quatro destes sonetos e explica que o pensamento ou sentimento que os inspirou corresponde, ao fim de milhares de anos, ao tão pouco que sabermos de Deus, uma verdade ainda bem actual no séc. XXI face a tanta ignorância e fanatismo das pessoas de religiões.
                                 
No 7º, No Turbilhão, Antero está só e vê em sonho e visões, numa espiral, os espectros dos seus «pensamentos, fantasmas de mim mesmo e da minha alma» e interroga-se sobre quem são, quem é ele. Antero de Quental, a meio desta jornada iniciática filosófica, está só, consigo e a sua psique. Será sempre um mistério se os terá mesmo visto no seu olho espiritual ou se apenas imaginalmente sentiu e intuiu alguns aspectos subtis dos pensamentos e sentimentos, almas e espírito, mas de facto a consciência e certeza firme no espírito e nos espíritos não surge suficientemente em Antero de Quental.
No 8º Quia Aeternus, de 1875, dedicado a Joaquim de Araújo, Antero regista que todavia mesmo os que tentam sacudir «o jugo da divina tirania» mas folgam em orgias podem subitamente empalidecer e tremer. É como que um aviso apocalíptico, na aventura libertadora mas por vezes desregrada tanto da humanidade como anteriana, do espectro de Jeová poder surgir a qualquer momento. 
Anote-se que o encobrimento da verdadeira realidade de Deus pelo arremedo de Jeová será causador de uma carência ontológico-teológica no ser humano ocidental e também de que há de facto uma ordem cósmica, ética mesma. O título do poema vem da expressão usada por S. Agostinho de Hipona, patients quia eternus, "paciente porque eterno", em relação a Deus. Aqui, algo ironicamente utilizada...
No 9º soneto, Mors Liberatrix, escrito em Outubro de 1878 e logo publicado na revista Renascença, de Joaquim Araújo, a quem enviara, Antero avança mais na linha dos Cavaleiros do Amor (à qual pertenceram entre nós Duarte Galvão, Damião de Goes, Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Bocage, entre outros) glosando o soneto Mors-Amor, e na mão do «cavaleiro vestido de armas pretas,/brilha uma espada, feita de cometas,/ que rasga a escuridão, como um luzeiro» que avança no "curso aventureiro", com "o gládio de luz" que "é a espada da Verdade" Firo, mas salvo... Prosto e desbarato, / Mas consolo... Subverto, mas resgato.../ E, sendo a Morte, sou a Liberdade.» Antero corajosamente vê a morte como a suprema libertadora.
                                
No 10º, O Inconsciente, Antero trabalha com originalidade o conceito de Inconsciente, desenvolvido por Edouard von Hartmann (mas cuja obra ainda pouco conhecia  quando o escreve em 1874), para quem significava a caracterização do Absoluto, devida à impossibilidade de Ele ter uma consciência, que forçosamente o limitaria. Consciência Absoluta corresponderia a Inconsciência Absoluta. Antero não vai tão longe, humaniza-o e equipara-o a um espectro que o acompanha e que, chamado pelos humanos há dez mil anos por Deus, não sabe como se chama, estando portanto  inconsciente de Si mesmo. 
Neste soneto e no intitulado Logos, muito semelhantes, há um tentar sondar dos vários níveis e faces com que a voz da Consciência, o génio, o Espírito em nós, a ideia de Deus, o Absoluto se podem manifestar. É a um nível muito íntimo e profundo que tais reverberações do Divino se manifestam e em formas certamente bem subtis e difíceis de se cingir e definir pelo pensamento discursivo e filosófico. No vídeo final abordei o tema no fluir da palavra-logos no momento...
No 11ª, Consulta, de 1880, ergue-se genialmente a uma espécie de reminiscência, a um exercício espiritual de auscultação e diálogo com o seu passado, memórias, seres, vozes, e mesmo com «a mais feliz, a mais serena», mas todas lhe respondem que não vale a pena ter nascido. Antero mostra-se mais do que exigente, desiludido, ou mesmo incapaz de sentir a riqueza perene de pessoas, seres, momentos e sem alcançar também a certeza da imortalidade e sem sentir firme o Amor (imortal) vivido e manifestado em si, ao longo da sua vida.
No 12º, Espiritualismo, Antero mostra-se algo pessimista pois dá um dos títulos mais valiosos que poderia coroar e inspirar um soneto, a dois que são bem desanimadores: no primeiro, a Dúvida, como vento de morte e ruína empecenhou a criação divina e já «só uma flor humilde e misteriosa,/ Como um vago protesto da existência,/ Desabrocha no fundo da consciência». No segundo, essa flor imaculada vai morrer também e «no vácuo eterno se esvairá disperso,/ Como o alento final dum moribundo,/ Como o último suspiro do Universo». 
Contudo, podemos ver nestes sonetos aproximações ao final da manifestação cósmica, ao misterioso retorno ao Não-ser primordial; e indubitavelmente, Antero foi dos nossos poetas e filósofos quem mais cogitou, sentiu e poetizou tal elevado nível, certamente inacessível ao ser humano encarnado e durante a manifestação, apesar de tanta gente falar no vazio e no nirvana. 
Todavia, nas suas obras em prosa principais, A Filosofia da Natureza dos Naturalistas e as Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX, afirmou com relativa força o panpsiquismo, a imortalidade espiritual, no fundo valorizando a presença do Absoluto (Inconsciente ou Divindade) enquanto Princípio ideal, Ser, Logos, Amor, Justiça e Bem na história humana e cósmica, ou mesmo como Espírito no ser humano.
               
No 13º, Anima Mea, Antero de Quental, num volta a face, apresenta-nos a morte nos seus aspectos mais repulsivos ou terríficos, como serpente, fúnebre bacante, demente, impudente, loba faminta. E o que ela quer não é o corpo que ninguém quer dar, mas apenas a alma. E a resposta de Antero é genial: « - A minha alma já morreu». Genial, porque é como se Antero tivesse matado a morte, morrendo antes. Como não pensarmos em Fausto, ou sobretudo no dito grego "Morrer é ser iniciado"?
Como iniciado no caminho da realização espiritual e da cavalaria do Amor, da Justiça e da Liberdade Antero já tinha morto o seu ego, personalidade e alma inferior, animal e terrena. Talvez por isso se possa compreender e justificar o seu suicídio. Antero não foi apanhado pela morte, pois de certo modo morrera já a sua alma e apenas libertou o espírito (com o que restava da alma, ou com alma que o envolvia) do corpo físico. Todavia, intuíra ou previra ele bem o que seria o além, como se encontraria ou sobreviveria ele no além, se haveria mesmo a dissolução libertadora ou não? Mistérios... 
No 14º, Estoicismo, uma linha de força bem importante em toda a vida de Antero, o que podemos esperar neste confronto com as ilusões religiosas e os medos da morte, senão a afirmação de firmeza perante as adversidades? Pois Antero vai-se dualizar, por um lado atribuindo ao espírito de eterna negação exterior a destruição das primaveras da sua alma, fazendo com que o seu coração se sinta só e na escuridão. Antero então critica o coração cobarde e egoísta e recomenda-lhe «Deixa aos tímidos, deixa aos sonhadores/ A esperança vã, seus vãos fulgores.../sabe tu encarar sereno o abismo». 
Antero surge de novo como um iniciado falando ao seu coração, ao seu lado humano e até intimo, recomendando-lhe a virtude do estoicismo, da serenidade, perante as trevas e o não universal. Não é assim o Cosmos ou Universo, na sua multidimensionalidade espiritual e divina, mas Antero ficou algo preso num umbral que Fernando Pessoa também sentiu difícil e poetizou, ambos não tendo talvez feito suficientemente irradiar a luz do espírito. Todavia enfrentou-o corajosamente, estoicamente, até que anos depois, por circunstâncias várias, partiu, tanto inquieto como sereno, para o abismo misterioso do além...
No 15º, O Convertido, antecipa no título o que Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra e outros fizeram, e pensaremos que a conversão que ele recomendará será mais à austera libertação de todas as alienações. Mas não, pois Antero reconhecendo a possibilidade de se arrepender dos desmandos e o seu coração se tornar contrito e querer voltar à paz, os métodos que ele anuncia e utiliza são ironizados; «amortalhei na fé o pensamento,/ E achei a paz na inércia e no esquecimento.../ Só me falta saber se Deus existe!» Antero critica as conversões que frequentemente são falsas, mero amortalhar do livre pensamento e da lucidez investigadora.
 

No 16º, Sepultura Romântica, Antero de Quental avança com a dissolução do seu coração em impalpável pó. Não fala nem no corpo nem na alma, apenas no coração «com suas lutas, seu cansado anseio/Seu louco amor, dissolva-se no seio/ Desse infecundo, desse amargo mar». Seria bom intuirmos como sentia Antero o mar de Vila de Conde, ou o dos Açores, que pode estar referido no primeiro quarteto, e se o amargo mar do último verso do soneto já diz respeito ao mar cósmico da ilusão, do samsara, indiano e budista. Dando o nome de Sepultura Romântica, Antero parece querer, mais do que inserir este soneto num estilo e período literário, sepultar a sua fase juvenil romântica que tão belos poemas gerara mas que pouco lhe deixara de chama permanente e de auto-visão espiritual.
                         
No 17º soneto, intitulando-o Logos, Antero dará ao princípio de Inteligência do Universo uma interpretação original pois torna-o seja uma espécie de génio pessoal, o seu daimon, seja a sua alma espiritual, seja um super-ego: «Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim/ E o que é mais, dentro em mim - que me rodeias/ Com um nimbo de afectos e ideias,/ Que são o meu princípio, meio e fim...» É um "estranho ser" (se és ser, interroga ele) que o leva a regiões ora de encanto ora de pavor. Mas ainda que admitindo que «és um reflexo apenas da minha alma», vai erguê-lo a uma espécie de fonte de inspiração, embora não sentindo nele a dimensão feminina, a Musa, a Fravashi dos místicos persas, tão bem trabalhada imaginalmente nos nossos dias por Henry Corbin: «Falo-te, calas... calo, e vens atento.../ És um pai, um irmão, e é um tormento/ Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!».
É um soneto cheio de opostos, de teses e antíteses, não e sim, mas no qual Antero assume o Logos como sendo o seu génio intelectual, que adora apesar de lhe chamar tirano, mas que não é já nada o Deus Jehová bíblico e exterior, antes apontando para uma consciência interior ética bem desabrochada, a tal Voz da Consciência que Antero de Quental tanto valorizará sempre, o Logos em nós...
No 18º soneto Ignotus, o último criado por Antero uns meses antes de ele e Joaquim Araújo terem o parto do livrinho, nascido de uma noite sem dormir, deparamo-nos com o ser religioso de Antero bradando aos céus, demandando o Espírito, e de novo, tal como quando interrogou o Homem em si mesmo, o deus Jehová e os deuses, a resposta é que não sabem quem são, ainda não se encontraram.
Significativamente, se Antero caracteriza inicialmente o Espírito como enchendo a solidão e depois como antigo, e portanto algo limitadamente, no terceto final, afirma-o desde toda a eternidade na busca sem se encontrar. Há aqui uma descrença em Antero de se encontrar a essência, a verdade, a realidade. Sabemos contudo que frequentemente Antero afirmou e por certa vivência («pensando muito e escutando docilmente o segredar da consciência, pude emergir do pessimismo que me entenebrecia a existência e recuei no caminho da negação absoluta em que estava precipitado»), que o pessimismo era apenas um ponto de partida e passagem e não de chegada, pois existe o mundo espiritual e moral onde «a harmonia, a liberdade e o optimismo são tão inerentes»...
O 19º soneto é dedicado ao seu grande amigo João de Deus, poeta lírico de amor e da natureza, e intitulado o Circo, após a odisseia de busca em vão do Espírito e de Deus, mostra-nos Antero de Quental a confessar a reminiscência de ter vivido no mundo espiritual harmonioso leve e belo até que um vento o fez rolar e cair e entrar numa fera: «É assim que rujo entre os leões agora!». Este soneto é muito importante, ao afirmar a preexistência das almas, ou mesmo o dom da reminiscência do mundo espiritual e divino donde provimos, tão enaltecido pelos pitagóricos, neo-platónicos e outros iniciados. 
O soneto, apesar de terminar na horizontalidade da vida animal e humana, denominado mesmo de Circo, porque nessa arena se domesticam ou amestram as feras, é um dos que mais transmite uma linha energético-consciencial bem vertical e ascensional, pois afirma a nossa origem espiritual e de algum modo a necessidade de domarmos ou amestrarmos os nossos instintos mais animais, egoístas ou mesmo violentos.
                     
Estamos quase no fim, e na ordenação dos sonetos o 20º e penúltimo leva o nobre título, tão desenvolvido no Budismo, de Nirvana. Embora nunca possamos ter a plena noção de como Antero via ou compreendia o Budismo só pelos poemas ou mesmo também pelas cartas, este soneto ajuda-nos. Em 1880 Antero de Quental via ou ideava o Nirvana, pelo menos num dos seus aspectos ou sentidos, como a consciência de que o universo é ilusório e vazio, mesmo nas coisas naturais «à bela luz da vida», pois tal como começa o soneto: «Para além do universo luminoso/ Cheio de formas, de rumor, de lida,/ De forças, de desejos e de vida,/Abre-se como um vácuo poderoso». 
É uma visão negativa directa do nirvana, que significando originalmente a morte - extinção da sede de existência, da separatividade, da ignorância e do sofrimento é aqui atingido por uma visão do mundo imóvel do Não-ser, a qual cria em relação ao mundo da manifestação tédio por ele ele ser ilusório e vazio. Antero de Quental nesta conclusão não afirma o panteísmo nem o panpsiquismo, que serão conhecimentos ou realizações conquistados posteriormente, embora o último soneto desta edição dardeje algo do misterioso Espírito omnipresente. 
Para exemplificarmos outra visão ou aproximação ao Nirvana de Antero, oiçamo-lo numa carta ao jovem poeta Carlos de Lemos, de 5-II-1888: «O Nirvana não é passivo, não é inerte e puramente contemplativo é, pelo contrário, essencialmente activo; somente essa actividade já não é apaixonada, porque cessou de ser egoísta. É, por assim dizer, impessoal. Se os meus sonetos valem alguma coisa, valem sobretudo por dizerem isto, ou, pelo menos, por deixarem entrever isto (...)»
O último soneto, significativamente o 21º, a última carta do Tarot, poderá desenhar a síntese que Antero conseguira até então, restando-lhe ainda dez anos de vida, cinco dos quais consagrados nos restantes sonetos que realizará, saindo em 1886 a edição completa deles, e os outros cinco anos para ultimar em prosa o seu testamento, as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, que sairá a partir de Fevereiro de 1890, na Revista de Portugal, um ano antes de morrer.
Transcendentalismo é seu título e, dedicado ao seu grande amigo Joaquim Pedro d'Oliveira Martins,  observamos nele uma visão e mensagem próxima do soneto final da edição dos Sonetos Completos de 1886, na qual o seu coração descansará na mão de Deus. 
Contudo sabemos que Transcendentalismo  foi escrito em 1876 e o seu conteúdo significava então para Antero quando o enviou em 5 de Julho para João Lobo de Moura «um salmo, uma efusão religiosa, porque está ali com efeito a minha religião, o meu culto da existência suprasensível, sem o qual não sei o que seria desta minha pobre existência sensível (helas! trop!). O meu misticismo dia a dia se consolida mais, como sentimento e como doutrina». Antero afirmava assim um transcendentalismo impessoal ou, como explica na carta, estar a progredir através de estudos comparativos das religiões e aplicando um «critério metafísico» ao Cristianismo.
 Oiçamos os tercetos finais:
          «Não é no vasto mundo — por imenso
           Que ele pareça à nossa mocidade —
           Que a alma sacia o seu desejo intenso... 


           Na esfera do invisível, do intangível,
           Sobre desertos, vácuo, soledade,
           Voa e paira o espírito impassível!»
                         
O soneto, embora escolhido para coroa final do livro, ressente-se todavia de parecer ser mais uma construção intelectual do que uma descrição duma experiência real de tais níveis, provavelmente mais  vistos como cósmicos do que individuais, onde "espírito que voa e paira impassível". E ficamos até com alguma dúvida se está apenas  afirmar o Espírito absoluto a voar e pairar, se antes o espírito individualizado, ou mesmo se os dois....
Este espírito sendo individual, se impassível já estivesse no seu revestimento anímico, desprendido de tudo, então vibraria ou no seu nirvana de desaparecimento inefável, extinta a separatividade e ilusão do eu, ou então, estando individuado e imortalizado, desfruta do amor e da beatitude, como espírito ligado ao Ser Divino, criativamente agindo no Cosmos multidimensional, visão e concepção esta última que Antero de Quental influenciado pelo Inconsciente e o Budismo não afirmou tanto.
Demos então muitas graças pela demanda espiritual de  Antero de Quental nos Sonetos e tentemos  despertar mais e aprofundar a nossa auto-consciência espiritual e religação Divina, na linha da Tradição Espiritual Universal e Portuguesa, onde Antero de Quental brilha pioneiramente...
Segue-se o 2º vídeo de comentário resumido aos sonetos finais da antologia de 1881, como sabemos devida à amizade e diligência de Joaquim de Araújo, que aliás  lhe merecera considerá-lo como o seu herdeiro, pobre (no que ganharia de direitos), dos Sonetos. Saibamos continuá-los em oitavas superiores, luminosa e amorosamente...
             

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