Os
irmãos Santa Rita, Guilherme e Augusto, destacaram-se no início do
séc. XX e tinham em comum, como bem realçou João Mendes Rosa, o
génio e, na base dessa afinidade ígnea, encontraram e relacionaram-se com outros companheiros da aventura artística, literária, cultural, social, espiritual possível de então, o Modernismo. Se o percurso de Santa
Rita Pintor foi curto (1889-1918), compreende-se tal pela intensidade com que
viveu o génio ou daimon, em ambientes difíceis, deixando-nos apenas cerca de 40 obras, algumas
simples esboços e morrendo precocemente aos 29 anos quando muito
poderia ainda materializar-se da sua genialidade interior.
A vida entusiástica no meio artístico parisiense, onde estuda de 1910 a 1914, a visão artística modernista e futurista que se consubstanciava no seu modo de vida
revolucionário e anti-burguês e tendendo a impactar os outros, mais o consumo de drogas e álcool, e a desilusão ou frustração pela apreensão na própria tipografia
da sua excepcional revista
Portugal Futurista, em 1917, por atentar à moral da República, precipitaram
uma doença que o levou subitamente para o além, em Abril de 1918, com a agravante de ter
pedido a seu irmão Augusto que queimasse as obras que estavam em
casa, seja porque não as considerava suficientemente perfeitas, seja
porque na sua incandescência quis ser queimado com elas, já que a sua arte era a sua própria vida.
Nestes nossos últimos anos, graças aos esforços do actual Guilherme de Santa Rita, João Mcdonnald, Fernando Rosa Dias, Luís Lyster Franco e João Mendes Rosa, entre outros, tem-se dinamizado bastante o seu conhecimento, descobrindo-se novas obras, investigando-se e aprofundando-se, aliás em sincronia com as celebrações dos centenários das revistas Orpheu, em cujo 2º número Santa Rita Pintor partilhou quatro das suas pinturas, da revista Exílio, de 1916 e a Portugal Futurista, já de 1917, esta realizada por obra e graça de Santa Rita Pintor e Almada Negreiros (fundadores do Comité Futurista de Lisboa, em 1916). A isto acresceu finalmente os 100 anos da morte de Santa Rita Pintor.
Nestes nossos últimos anos, graças aos esforços do actual Guilherme de Santa Rita, João Mcdonnald, Fernando Rosa Dias, Luís Lyster Franco e João Mendes Rosa, entre outros, tem-se dinamizado bastante o seu conhecimento, descobrindo-se novas obras, investigando-se e aprofundando-se, aliás em sincronia com as celebrações dos centenários das revistas Orpheu, em cujo 2º número Santa Rita Pintor partilhou quatro das suas pinturas, da revista Exílio, de 1916 e a Portugal Futurista, já de 1917, esta realizada por obra e graça de Santa Rita Pintor e Almada Negreiros (fundadores do Comité Futurista de Lisboa, em 1916). A isto acresceu finalmente os 100 anos da morte de Santa Rita Pintor.
Quanto
ao seu irmão Augusto de Santa Rita (1888-1956), tem sido o seu neto Guilherme e eu que temos tentado divulgar a sua biografia e obra, lendo-a a certas
luzes e partilhando algo do muito que de valioso ele nos deixou, ainda que não tenham surgido ainda reedições.
Amigo
de Fernando Pessoa, uns meses mais velho do que ele, ambos colaboradores das revistas Águia, Exílio e Contemporânea, diferenciaram-se contudo nas suas
linhas de criatividade mantendo porém certas afinidades e a amizade. E
assim Augusto Santa Rita será um dos que acompanhará o corpo a enterrar de Fernando Pessoa em 1 de Dezembro de 1935.
Viveu bem
mais tempo, sempre ligado à infância, algo que irromperá em Fernando Pessoa no final da vida, e poetizando-a, frutificando-a em centenas de histórias, poemas e peças de
teatro e marionetes com que presenteou jovens e seus pais, ao longo
de muitos anos, quinze deles enquanto fundador e director do suplemento semanal do jornal o Século, o
Pim Pam Pum, que encantou e educou muita gente, bem
ilustrada por Eduardo Malta, Castané e ele próprio, e onde conheceu a sua mulher e paixão Graciette Branco.
Será
só em 1956 que abandona o seu terrenal exílio (palavra-sensação-conceito muito afirmado por muitos dessa geração e assinalado em todas as revistas modernistas), já com setenta e
tais anos, deixando contudo, ao contrário de
Fernando Pessoa, uma vasta obra poética que por várias razões não teve o mesmo sucesso.
E
contudo quem ler os seus livros encontra páginas ora muito belas,
ora profundas, manifestando tanto a fina e extrema sensibilidade dos Santa Rita como um bom intuir espiritual e até conhecimento esotérico,
como transparece tanto nas iniciais Árias Rezas: Canções e Cantares, de 1912, e Praias do Mistério, de 1916, como sobretudo no Auto da Vida Eterna, de 1925, o qual mereceu de Fernando Pessoa
um rasgado elogio, inédito até hoje, mas que já li ou transcrevi grande parte em conferências ou artigos, estando no Youtube algumas gravações sobre o esoterismo deste Auto, muito bem ilustrado por Eduardo Malta.
Após
esta breve introdução vamos transcrever alguns poemas do seu
livro O Mundo dos Meus Bonitos (obra que é apresentada de uma forma superficial como literatura infantil quando é para jovens e adultos), tanto por ter ilustrações de Cottinelli Telmo (1897-1948) na 1ª edição e de Manuel de Abreu Lima na 2ª (com bom prefácio de Vieira de Almeida que «em 1920 pude ver o entusiasmo com que o ilustrava Cottinelli Telmo, ora desenhando pequenos frisos e figuras soltas, ora colando recortes de papel de cor», juntando assim a imagem artística
à ideia e sentimento literário, como por tratar da infância (a qual em grande parte foi comum com Santa Rita Pintor, embora não transparecendo na obra), como por em alguns dos poemas encontrarmos
linhas de força perenes na sua obra e que reflectem uma certa Alma Portuguesa ou mesmo uma Tradição Espiritual Portuguesa,
que ele tão bem realçou em 1916 na Justificação ou apresentação
do nº 1 da sua revista Exílio, por Fernando Pessoa ainda mais realçada a propósito da geração de Orpheu na nota
final desse número, único, da Exílio.
O Mundo dos meus Bonitos surge em 1922, antecedendo como já dissemos o Auto da Vida Eterna elogiado por Fernando Pessoa pelo seu pioneirismo de ser uma peça com doutrinas ocultistas bem integradas.
É porém bem mais simples, um elogio, um dar graças a tudo o que na Infância o maravilhou, o impressionou, mas numa poesia muito bem sentida, sonorizada, colorida e interseccionada, ou seja, conglomerando e sintetizando diferentes planos do espaço e do tempo, da natureza e da consciência, numa simultaneidade reveladora de uma visão mais profunda e alargada dos seres e das coisas, no caso os "bonitos" sendo os brinquedos da sua infância, ou tudo o que via animado pela sua muito sensível abertura e osmose à unicidade da existência, sem hiatos de continuidade antes numa fina ou subtil percepção das correntes de forças que interligam a multidimensionalidade dos seres, essências, movimentos, formas, cores, sons, coisas...
O Mundo dos meus Bonitos surge em 1922, antecedendo como já dissemos o Auto da Vida Eterna elogiado por Fernando Pessoa pelo seu pioneirismo de ser uma peça com doutrinas ocultistas bem integradas.
É porém bem mais simples, um elogio, um dar graças a tudo o que na Infância o maravilhou, o impressionou, mas numa poesia muito bem sentida, sonorizada, colorida e interseccionada, ou seja, conglomerando e sintetizando diferentes planos do espaço e do tempo, da natureza e da consciência, numa simultaneidade reveladora de uma visão mais profunda e alargada dos seres e das coisas, no caso os "bonitos" sendo os brinquedos da sua infância, ou tudo o que via animado pela sua muito sensível abertura e osmose à unicidade da existência, sem hiatos de continuidade antes numa fina ou subtil percepção das correntes de forças que interligam a multidimensionalidade dos seres, essências, movimentos, formas, cores, sons, coisas...
Oiçamos então alguns dos poemas, neste breve contributo na véspera de um encontro sobre Santa Rita Pintor, a realizar a 18-I-2019, no Museu Regional da Guarda organizado por João Rosa Mendes e no qual as pessoas mencionadas no início participarão.
Revisitando a sua infância, Augusto de Santa Rita interroga-se:
«Porque razão se sentia
Transpirar Aurora e Céu
E resumbrar melodia,
Qual se fora eco de um eco,
Em certo quadro de Greco,
Que um dia viu num museu?!...
E porque motivo à Imagem
A que ia pedir a Deus...
Baixava uma branda aragem...
Lá donde, - não sabia! -
mas que entrementes parecia
mas que entrementes parecia
Que vinha de longes céus?!»
Os versos finais do poema O Mundo dos meus Bonitos, que dão o título ao livro, são também notáveis testemunhos do Templo que erguera no seu Coração e da intensidade e profundidade dos seus olhos, do seu ver até clarividente:
«Em tudo eu tinha o exemplo
Dos meus enlevos benditos!
Meu coração era um Templo
De imensos Génios e Mitos;
Meus olhos eram dois céus,
Estranhos céus infinitos
Onde astros ainda contemplo...
E o meu olhar era o Deus
Do mundo dos meus bonitos!»
A
Bíblia de um Pierrot é outro poema valioso, bem pintado por Cottineli Telmo e que nos remete até para Santa Rita Pintor, na sua famosa fotografia, reproduzida de início, qual Pierrot sonhador:
«Creio!...
Creio no Céu do Mistério divino,
Num
Céu de papelão...
E
nas bruxas que à noite entram pela fechadura
Ao
badalar de um sino!
E
creio no Papão
Que
ora está no telhado, ora na casa escura,
Para
levar num saco o Pierrot-menino!
Creio
que há um Mistério estranho em meu jardim
Que
não sou eu que o vejo e antes que ele me vê
Que
eu nunca penso nele e ele é que pensa em mim!
Creio
que em cada flor há um sonho por sonhar!
Creio
que tudo aquilo em que eu creio, em mim crê,
Como
creio que tudo há-de um dia acordar!
Creio
que quando eu rufo em meu tambor doirado!
Cravos
e girassóis despertam do seu sono!
Como
creio que existe um espírito aureolado
E
ungido de Segredo,
No
cavalo de pau que um dia me foi dado!
Creio
na misteriosa alma do meu brinquedo,
Na
alma do meu bonito!
Pois
se o ponho de lado, em seu lindo abandono,
Sua
Ausência-imortal mergulha no Infinito
E
eis que fica a sonhar com o Céu estrelado!
Com receio que a Luz da Aurora se anteceda
Deixo a minha corneta ao acaso ficar
Sem tocar,
A sonhar...
Silenciosa!
Do roseiral em flor que orla minha alameda,
às vezes uma rosa
Ocorre-me cortar;
Porém o meu desejo inquieta-se e não ousa
O Mistério tocar! »
(...)
Também A Profecia Malabar é bastante profunda, espirálica ou interseccionante do passado, presente e futuro, tal como o último poema do livro. Oiçamo-la completa e meditemo-la até:
«O menino todo graça
Que em mim outrora existia,
Este adulto que hoje passa...
E esse velhinho um dia...
Em misterioso lugar,
Creio bem que alguma vez
Haverão de se encontrar
Reunidos todos três!
Porque detrás desse muro...
Para lá do meu Cuidado,
Não haverá nem passado,
Nem presente nem futuro.
E então aí! com que carinho,
Com que ternura e consolo,
O adulto, nesse lugar,
Se há-de ver menino ao colo
De si próprio, já velhinho,
Consigo mesmo a brincar!»
A Alma das Coisas é uma das constantes da ascultação sensitiva poética de Augusto de Santa Rita, já presente bem clarividentemente no 3º poema da revista Exílio, e aqui de novo aflorada, embora mais imaginativa e levemente:
«A Alma das coisas existe!
Ora é alegre ora é triste;
Existe! Amor, acredita!
Íntimamente descrês,
Duvidas, mas tu não vês,
Sob este céu a esquisita
Expressão que tudo tem?!
Aquela montanha, além...
Aquele vale, acolá...
Tudo interrogando os céus!
Quase exclamando: - meu Deus! -
Como dizias: - Papá! -
Em voz tão débil e moça,
Uma boneca de louça,
Que em pequena tiveste!
Insistes em duvidar,
Murmuras sem hesitar:
- parece que endoidesceste!
Pois bem, redobra a surpresa
Ante a minha natureza
Que sempre põe maravilha
Em cada arrojada imagem:
- A Alma desta paisagem
Ainda há-de ser tua filha!»
Para terminar esta homenagem à poética do Mundo dos Meus Bonitos, onde perpassa também muito da Lisboa do início do séc. XX, onde tão genialmente os irmãos Santa Rita, Mário Sá Carneiro, Fernando Pessoa e Almada Negreiros respiraram, criaram e amaram, fiquemos com o último poema, Legenda, bem pleno do interseccionismo do espelho e da eternidade:
LOUVOR A DEUS... FIM! enfim.
DO MUNDO DOS MEUS BONITOS,
Mas como a este dar fim,
Se os mundos são infinitos?!
Se Deus vive em meus escritos
E os meus escritos em mim,
O MUNDO DOS MEUS BONITOS
Como é que pode ter fim
Não, não tem! É um Poema
Em que está DEUS como lema,
Um Poema a eito e a esmo;
Flor que não se desfolha...
Voltai da vossa alma a folha,
Que o resto está em vós mesmo!»
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