«Filósofo,
místico, estratega político, boémio radical e guru geopolítico
russo, Aleksandr Dugin é notoriamente conhecido, mas poucos no Ocidente sabem muito dele. Descrito por alguns [erradamente...] como o cérebro do presidente russo
Vladimir Putin, Dugin é frequentemente retratado [manipuladoramente...] pelos meios de informação ocidentais
[russófobos] como uma figura rasputinesca, com um controle perigosamente assustador
sobre a elite política e intelectual da Rússia.
Embora pudesse ser verdade, como afirmam inúmeros
artigos, [mas não é...] que Dugin tenha muito a ver com a actual estratégia geopolítica da
Rússia na Ucrânia, menos exploradas são as crenças-ideias religiosas e
espirituais entretecidas na sua filosofia. Essas crenças-ideias são informadas,
por um lado, pelo perenialismo e pelo tradicionalismo esotérico do
intelectual francês René Guénon, que tentam sintetizar a metafísica
oriental com a filosofia ocidental e, por outro lado, pelo Cristianismo
Ortodoxo Russo.
A filosofia política de Dugin tem como objetivo a
criação de um mundo multipolar no qual os EUA não sejam mais a única
superpotência mundial. Ele também prevê uma quarta teoria política que
não seja capitalista, comunista ou fascista, mas uma compilação
totalmente nova que adote as boas facetas de todos os três sistemas.
Mas, ao contrário da maioria dos teóricos políticos, as suas crenças estão
imbuídas de hermenêutica oculta e mística. Aqueles que não se
familiarizarem com suas crenças-ideias espirituais estarão condenados a uma
compreensão superficial e sem alma de sua influência.
Entrevistei Dugin em fevereiro de 2022 - algumas semanas
antes da invasão russa na Ucrânia - e pedi que ele explicasse o seu
Cristianismo e como tal influenciou a sua filosofia. Esse é um tópico que
o interessa muito, e sua resposta refletiu a intensidade de seu
interesse.
Dugin disse-me que o seu caminho para o Cristianismo
se deu em três etapas importantes. A primeira foi o seu batismo quando
era criança, a pedido de sua bisavó. Mas não deu muita atenção à fé
enquanto crescia sob a influência de uma sociedade comunista e de um pai ateu.
O segundo estágio ocorreu aos 18 anos, quando
entrou num círculo de radicais russos clandestinos que pretendiam
rejeitar as máximas utópicas e os mitos do comunismo. Eles apresentaram
ao jovem Dugin o mundo alienígena do tradicionalismo esotérico por meio
de René Guénon (1886-1951) e Julius Evola (1898-1974), e tais
ensinamentos preencheram o seu vazio espiritual. O tradicionalismo
esotérico defende que todas as civilizações e povos devem retornar ao
espiritualismo dos seus arquétipos culturais tradicionais - os russos são
cristãos ortodoxos naturais, por exemplo. Para Dugin, foram Guénon e Evola
que lhe deram o alicerce a partir do qual começou a criticar a
modernidade e a analisar profundamente o Cristianismo Ortodoxo Russo.
René Guénon (1886-1951) e Julius Evola (1898-1974).
Dugin disse que, durante o final do período
soviético e nos primeiros cinco anos da década de 1990, não
conseguia conciliar a "verdadeira tradição com o cristianismo
intelectual" e que estava desanimado com a perspectiva dos crentes
cristãos seus contemporâneos. Por fim, entregou-se à humildade de
aceitar a Ortodoxia, submetendo-se à sua disciplina religiosa para ter
acesso aos sacramentos.
Essa submissão acabou levando-o ao terceiro estágio:
juntou-se a um pequeno ramo da Igreja Ortodoxa Russa, que, embora
ainda em comunhão com o Patriarca de Moscou, praticava o antigo rito das
reformas pré-Niceia. O velho rito atraiu a sua aspiração pela tradição e assemelha-se ao remanescente de tradicionalistas
católicos que prefere a liturgia, as disciplinas e os sacramentos anteriores
ao concílio Vaticano II. Dugin deixou-me claro que sentia uma grande
semelhança entre o seu retorno à Igreja e o do tradicionalista guenoniano
americano e sacerdote ortodoxo, Seraphim Rose (1934-1982), que foi
batizado como metodista e se converteu do ateísmo.
Alexandre Dugin explicou que escolheu o Cristianismo
Ortodoxo em vez do Catolicismo e do Protestantismo porque vê a Igreja
Ortodoxa como incorporada ao mito da Rússia e como parte de uma tradição
da qual ele não consegue se desvincular. Essa resposta levou a uma
pergunta mais complicada: como concilia o absolutismo dogmático do
Cristianismo com a abordagem aberta em relação às religiões orientais
adotada pelo tradicionalismo esotérico, que poderia ser visto como
indiferentismo-relativismo paraa mente ortodoxa?
Dugin respondeu que Evola e Guénon o ensinaram a
respeitar as diferentes religiões sagradas e a não comparar as
diferenças entre elas, mas sim compará-las com a Modernidade. Tudo que é
antimoderno é bom, disse Dugin; ver as diferentes tradições religiosas em
união com esse princípio permite que ele reconcilie tradições não
cristãs e não ortodoxas. No entanto, ele admite, de forma paradoxal, a
crença-ideia de que é preciso concordar totalmente com os ensinamentos da sua
religião cristã, incluindo o seu ênfase de que todas as outras religiões
estão erradas [algo discutível...]. Dugin indicou que ele contorna esse difícil problema
encontrando pontos em comum ecuménicos. E afirmou que, por exemplo, se
um católico vive plenamente a sua tradição religiosa, então é possível
encontrar pontos em comum com outras religiões tradicionais, numa
oposição mútua à Modernidade.
Dugin disse que sua abordagem para promulgar sua
filosofia de antiliberalismo e eurasianismo não é tão focada no
Cristianismo quanto as suas outras ideias. O seu objetivo sempre foi criar
uma linguagem filosófica que seja universalmente adaptável a todas as
religiões, culturas e povos, independentemente das suas crenças
religiosas. Para fazer isto, ele apela à ideia de Guénon de uma
luta comunitária contra o mundo moderno. (E neste sentido bem mais longe foi ainda Jules Evola, com o seu valioso livro Revolta contra o Mundo Moderno).
Na opinião de Aleksandr Dugin, o Cristianismo é uma religião sagrada entre muitas existentes no que ele chama de "um tempo historicamente escatológico e apocalíptico" e, portanto, ele não deveria estar a lutar contra outras religiões, mas contra a Modernidade. Todas as forças devem ser usadas "para lutar contra a realidade ocidental escatológica moderna", que, segundo ele, não é apenas anticristã, mas também, em suas raízes, contra a tradição ocidental (ou seja, contra si mesma) e, portanto, ameaça todos os paradigmas religiosos.
Tendo permitido que Dugin deixasse claro que adota uma abordagem ampla e ecuménica, eu diria que, na verdade, ele enfatiza mais o cristianismo e o seu papel na luta contra a modernidade ocidental do que gosta, por razões pragmáticas, de declarar publicamente. Dugin baseia-se fortemente na visão cristã do Apocalipse [um falso texto de S. João, provindo de imaginativos zelotas cristãos] e acredita que estamos a viver na era do Anticristo. Esta visão é essencialmente cristã e é por isso que Dugin expressa com veemência a ideia de que os cristãos devem combater a modernidade ocidental. É importante mencionar aqui que ele vê o inimigo como a modernidade ocidental, não o Ocidente em si, e que o cristianismo desempenhará um papel importante na derrota desse inimigo.
A civilização cristã não existe mais, na opinião
de Dugin. Ele explica que essa desintegração ocorreu em vários estágios.
A primeira foi o Grande Cisma, em 1053, do qual ele vê os dois
ramos autênticos da Igreja Cristã, a Oriental e a Romana.
Em seguida, a Igreja Ocidental tornou-se mais
individualista e preparou um caminho para o liberalismo. De acordo com
alguns, como Alain de Benoist, o cristianismo, por meio de um defeito
inerente em sua concepção da salvação individual da alma, introduziu o
perigo do individualismo no pensamento ocidental. Aqui, Dugin tem o
cuidado de enfatizar a sua discordância com essa visão. Apesar de sua
ênfase na salvação individual, "o cristianismo não destruiu o espírito
comunitário", tal como é visto na Igreja Ortodoxa Oriental, disse Dugin. Em
vez de ser uma criação do cristianismo, o liberalismo é a sua perversão.
A queda da Igreja Romana Ocidental no liberalismo
seguiu o padrão da promoção da [filosofia do] nominalismo por Guilherme de Ockham e
pelos monges franciscanos no final da Idade Média, padrão que, segundo
Dugin, criou uma "antropologia protoliberal e uma sociedade
protoliberal" e culminaria no seu apogeu no protestantismo. Esse
protestantismo e a sua ética de trabalho levaram ao capitalismo, conforme
descrito por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo (1903), e ao que Dugin chamou de criação de "uma sociedade
totalmente secular e hedonista". Essa sociedade, na visão de Dugin,
destruiu a religião, deu início a um estado puro de degenerações
pós-culturais e está a tornar-se um mundo tecnológico pós-humano [ou transhumanista-infrahumanista, anti-ordem natural cósmica].
Foi nesse momento que sugeri a Dugin um motivo de
optimismo: a partir de uma perspectiva reprodutiva e demográfica, parece que o
secularismo pode acabar diminuindo, pois as famílias religiosas têm mais
filhos do que as ateias. No entanto, Dugin rejeitou esse meu optimismo, considerando-o um exemplo da falsa esperança anglo-saxónica de que um
número maior de pessoas resolverá por si só os problemas espirituais. Os
cristãos, argumentou ele, deveriam concentrar-se em salvar almas [embora já Erasmo no séc. XVI dizia que os cristãos antes de querem converter turcos ou lapões (e isto por indicações do seu confabulator Damião de Goes) deveriam converter-se verdadeira ou profundamente.]
Dugin acredita que os ocidentais, em particular,
têm a obrigação de combater a força do Anticristo - a modernidade - já
que foi o Ocidente que criou a modernidade. Ele descreve essa luta como
uma guerra espiritual na qual "não devemos vender as nossas almas ao
Anticristo", mas estar dispostos a "lutar até o fim e morrer para vencer
com Cristo".
A disposição de lutar contra a modernidade é mais
importante do que a probabilidade de vitória, disse Dugin. Deus "aprova-nos" e salvará os que forem testados na batalha espiritual. Essa
luta deve ser dirigida para o que Guénon chamou de "Reino da
Quantidade", que, segundo Dugin, se manifesta hoje como "liberalismo,
cultura LGBT, inteligência artificial, bancos e capitalismo".
As dramáticas declarações religiosas de Aleksander Dugin
certamente evocam ideias milenares. Em minha opinião, no entanto, elas
são os [ou dos] exemplos mais claros do poder da fé cristã que anima a sua
filosofia política e espiritual radical.
A vitória nessa batalha espiritual contra a
modernidade abriria caminho para a "quarta teoria política" de Dugin,
que suplantaria os três sistemas políticos da modernidade: fascismo,
comunismo e democracia liberal. A quarta teoria desconstruiria cada um
desses sistemas apenas nos seus elementos positivos, e as respectivas combinações
seriam moldadas de acordo com as tradições de cada civilização. A
política nesse sistema não seria focada no materialismo individual, na
luta de classes ou no nacionalismo, mas sim no que o filósofo alemão
Martin Heidegger chamou de Dasein, ou ser em sua particularidade [ou no devir da sua specificidade].
Como os Estados Unidos controlam uma força
esmagadora no mundo, vivemos em um mundo unipolar. Dugin acredita que
essa hegemonia deve ser quebrada para permitir diferentes "polos" da
civilização mundial. Os exemplos incluem os polos islâmico, eurasiano
(russo) e chinês, cada um incorporado a sua própria tradição
civilizacional. Essa multipolaridade é uma alternativa ao globalismo;
ela permitirá a diversidade sociológica e acabará com o absolutismo
político em favor do relativismo cultural.
A Ucrânia representa o Ocidente liberal, na
opinião de Dugin. Isso está perfeitamente representado no apoio ou endossamento por
Dugin de uma carta-epístola, escrita pelo oligarca cristão devoto e executivo
dos meios de informação Konstantin Malofeev [n.1974], que descreve a entrada russa no Donbass
como "um novo estágio na vida de uma Rússia milenar". Malofeev continua
descrevendo Kiev como tendo sido "levada [ou tornada] cativa pelas forças do
inferno". Com base nessa avaliação, ele considera o conflito como um meio de
restaurar a justiça histórica numa "terra sagrada para todo o povo
russo", e que é o catalisador de "uma nova grande Rússia". Após a
publicação dessa carta, o Departamento de Justiça dos EUA apresentou
acusações contra Malofeev por tentar, violando as sanções, criar novos
meios de comunicação em vários países europeus. O FBI também emitiu uma
declaração dizendo que Malofeev "continua a administrar uma rede de
propaganda pró-Putin e recentemente descreveu a invasão militar da
Ucrânia pela Rússia em 2022 como uma "guerra santa'".
A carta de Malofeev demonstra como os russos e como
Dugin veem o conflito na Ucrânia: como uma guerra santa que expurgará a
modernidade da esfera eurasiática e acabará com o que René Guénon descreveu
como Kali Yuga - o conceito hindu para uma era decadente de conflitos e
pecado. É essa a profunda motivação religiosa e espiritual que está por trás da
campanha da Rússia na Ucrânia a qual tem sido perigosamente ignorada pelos
analistas ocidentais forçando-os a interpretar mal os motivos russos.
Na medida em que Dugin influencia [muito relativamente...] Putin e outros
líderes russos, essa influência é profundamente religiosa e enquadra os acontecimentos como uma batalha entre as ideologias da modernidade e do
tradicionalismo. A conclusão deste conflito terá, sem dúvida,
consequências inimagináveis sobre a religião, a cultura e a geopolítica
nos próximos anos. A filosofia de Alexandre Dugin [e certamente entretecida na da sua filha Daria Platonova Dugina, com quem muito dialogou] está a deixar a sua marca ou cunho no
mundo, bem diante de nossos olhos.»
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