segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Diálogo com Aleksandr Dugin:"Política Externa como Guerra Espiritual", por Edward Stawiarski, 25.XII.2023, e aperfeiçoado nesta edição em português.

                                   

Política Externa como Guerra Espiritual: Diálogo com Aleksandr Dugin, por Edward Stawiarski.   25.12.2023. Pelo seu interesse quanto ao embate entre o ser espiritual e a modernidade anti-tradicional, foi extraído da rede social alternativa vk.com, e  melhorado nesta edição em língua portuguesa.

«Filósofo, místico, estratega político, boémio radical e guru geopolítico russo, Aleksandr Dugin é notoriamente conhecido, mas poucos no Ocidente sabem muito dele. Descrito por alguns [erradamente...] como o cérebro do presidente russo Vladimir Putin, Dugin é frequentemente retratado [manipuladoramente...] pelos meios de informação ocidentais [russófobos] como uma figura rasputinesca, com um controle perigosamente assustador sobre a elite política e intelectual da Rússia.
Embora pudesse s
er verdade, como afirmam inúmeros artigos, [mas não é...] que Dugin tenha muito a ver com a actual estratégia geopolítica da Rússia na Ucrânia, menos exploradas são as crenças-ideias religiosas e espirituais entretecidas na sua filosofia. Essas crenças-ideias são informadas, por um lado, pelo perenialismo e pelo tradicionalismo esotérico do intelectual francês René Guénon, que tentam sintetizar a metafísica oriental com a filosofia ocidental e, por outro lado, pelo Cristianismo Ortodoxo Russo.
A filosofia política de Dugin tem como
objetivo a criação de um mundo multipolar no qual os EUA não sejam mais a única superpotência mundial. Ele também prevê uma quarta teoria política que não seja capitalista, comunista ou fascista, mas uma compilação totalmente nova que adote as boas facetas de todos os três sistemas. Mas, ao contrário da maioria dos teóricos políticos, as suas crenças estão imbuídas de hermenêutica oculta e mística. Aqueles que não se familiarizarem com suas crenças-ideias espirituais estarão condenados a uma compreensão superficial e sem alma de sua influência.
Entrevistei Dugin em
fevereiro de 2022 - algumas semanas antes da invasão russa na Ucrânia - e pedi que ele explicasse o seu Cristianismo e como tal influenciou a sua filosofia. Esse é um tópico que o interessa muito, e sua resposta refletiu a intensidade de seu interesse.
                                      
Dugin disse-me que o seu caminho para o Cristianismo se deu em três etapas importantes. A primeira foi o seu batismo quando era criança, a pedido de sua bisavó. Mas não deu muita atenção à fé enquanto crescia sob a influência de uma sociedade comunista e de um pai ateu.
O segundo
estágio ocorreu aos 18 anos, quando  entrou num círculo de radicais russos clandestinos que pretendiam rejeitar as máximas utópicas e os mitos do comunismo. Eles apresentaram ao jovem Dugin o mundo alienígena do tradicionalismo esotérico por meio de René Guénon (1886-1951) e Julius Evola (1898-1974), e tais ensinamentos  preencheram o seu vazio espiritual. O tradicionalismo esotérico defende que todas as civilizações e povos devem retornar ao espiritualismo dos seus arquétipos culturais tradicionais - os russos são cristãos ortodoxos naturais, por exemplo. Para Dugin, foram Guénon e Evola que lhe deram o alicerce a partir do qual começou a criticar a modernidade e a analisar profundamente o Cristianismo Ortodoxo Russo.
                                                                  
                                                    René Guénon (1886-1951) e Julius Evola (1898-1974).
Dugin disse que, durante o final do período soviético e nos primeiros cinco anos da década de 1990, não conseguia conciliar a "verdadeira tradição com o cristianismo intelectual" e que estava desanimado com a perspectiva dos crentes cristãos seus contemporâneos. Por fim, entregou-se à humildade de aceitar a Ortodoxia, submetendo-se à sua disciplina religiosa para ter acesso aos sacramentos.

Essa submissão acabou levando-o ao terceiro estágio: juntou-se a um pequeno ramo da Igreja Ortodoxa Russa, que, embora ainda em comunhão com o Patriarca de Moscou, praticava o antigo rito das reformas pré-Niceia. O velho rito atraiu a sua aspiração pela tradição e assemelha-se ao remanescente de tradicionalistas católicos que prefere a liturgia, as disciplinas e os sacramentos anteriores ao concílio Vaticano II. Dugin deixou-me claro que sentia uma grande semelhança entre o seu retorno à Igreja e o do tradicionalista guenoniano americano e sacerdote ortodoxo, Seraphim Rose (1934-1982), que foi batizado como metodista e se converteu do ateísmo.
                                    
Alexandre Dugin explicou que escolheu o Cristianismo Ortodoxo em vez do Catolicismo e do Protestantismo porque vê a Igreja Ortodoxa como incorporada ao mito da Rússia e como parte de uma tradição da qual ele não consegue se desvincular. Essa resposta levou a uma pergunta mais complicada: como  concilia  o absolutismo dogmático do Cristianismo com a abordagem aberta em relação às religiões orientais adotada pelo tradicionalismo esotérico, que poderia ser visto como indiferentismo-relativismo paraa mente ortodoxa?
                                 
Dugin respondeu que Evola e Guénon o ensinaram a respeitar as diferentes religiões sagradas e a não comparar as diferenças entre elas, mas sim compará-las com a Modernidade. Tudo que é antimoderno é bom, disse Dugin; ver as diferentes tradições religiosas em união com esse princípio permite que ele reconcilie tradições não cristãs e não ortodoxas. No entanto, ele admite, de forma paradoxal, a crença-ideia de que é preciso concordar totalmente com os ensinamentos da sua religião cristã, incluindo o seu ênfase de que todas as outras religiões estão erradas [algo discutível...]. Dugin indicou que ele contorna esse difícil problema encontrando pontos em comum ecuménicos. E afirmou que, por exemplo, se um católico vive plenamente a sua tradição religiosa, então é possível encontrar pontos em comum com outras religiões tradicionais, numa oposição mútua à Modernidade.
                                         
Dugin disse que sua abordagem para promulgar
sua filosofia de antiliberalismo e eurasianismo não é tão focada no Cristianismo quanto as suas outras ideias. O seu objetivo sempre foi criar uma linguagem filosófica que seja universalmente adaptável a todas as religiões, culturas e povos, independentemente das suas crenças religiosas. Para fazer isto, ele apela à ideia de Guénon de uma luta comunitária contra o mundo moderno. (E neste sentido bem mais longe foi ainda Jules Evola, com o seu valioso livro Revolta contra o Mundo Moderno).

Na opinião de Aleksandr Dugin, o Cristianismo é uma religião sagrada entre muitas existentes no que ele chama de "um tempo historicamente escatológico e apocalíptico" e, portanto, ele não deveria estar a lutar contra outras religiões, mas contra a Modernidade. Todas as forças devem ser usadas "para lutar contra a realidade ocidental escatológica moderna", que, segundo ele, não é apenas anticristã, mas também, em suas raízes, contra a tradição ocidental (ou seja, contra si mesma) e, portanto, ameaça todos os paradigmas religiosos.

Tendo permitido que Dugin deixasse claro que adota uma abordagem ampla e ecuménica, eu diria que, na verdade, ele enfatiza mais o cristianismo e o seu papel na luta contra a modernidade ocidental do que gosta, por razões pragmáticas, de declarar publicamente. Dugin  baseia-se fortemente na visão cristã do Apocalipse [um falso texto de S. João, provindo de imaginativos zelotas cristãos] e acredita que estamos a viver na era do Anticristo. Esta visão é essencialmente cristã e é por isso que Dugin expressa com veemência a ideia de que os cristãos devem combater a modernidade ocidental. É importante mencionar aqui que ele vê o inimigo como a modernidade ocidental, não o Ocidente em si, e que o cristianismo desempenhará um papel importante na derrota desse inimigo.

A civilização cristã não existe mais, na opinião de Dugin. Ele explica que essa desintegração ocorreu em vários estágios. A primeira foi o Grande Cisma, em 1053, do qual ele vê os dois ramos autênticos da Igreja Cristã, a Oriental e a Romana.
Em seguida, a Igreja Ocident
al tornou-se mais individualista e preparou um caminho para o liberalismo. De acordo com alguns, como Alain de Benoist, o cristianismo, por meio de um defeito inerente em sua concepção da salvação individual da alma, introduziu o perigo do individualismo no pensamento ocidental. Aqui, Dugin tem o cuidado de enfatizar a sua discordância com essa visão. Apesar de sua ênfase na salvação individual, "o cristianismo não destruiu o espírito comunitário", tal como é visto na Igreja Ortodoxa Oriental, disse Dugin. Em vez de ser uma criação do cristianismo, o liberalismo é a sua perversão.
A queda da Igreja Romana Ocidental no li
beralismo seguiu o padrão da promoção da [filosofia do] nominalismo por Guilherme de Ockham e pelos monges franciscanos no final da Idade Média, padrão que, segundo Dugin, criou uma "antropologia protoliberal e uma sociedade protoliberal" e culminaria no seu apogeu no protestantismo. Esse protestantismo e a sua ética de trabalho levaram ao capitalismo, conforme descrito por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1903), e ao que Dugin chamou de criação de "uma sociedade totalmente secular e hedonista". Essa sociedade, na visão de Dugin, destruiu a religião, deu início a um estado puro de degenerações pós-culturais e está a tornar-se um mundo tecnológico pós-humano [ou transhumanista-infrahumanista, anti-ordem  natural cósmica].
Foi nesse momento que sugeri a Dugin u
m motivo de optimismo:  a partir de uma perspectiva reprodutiva e demográfica, parece que o secularismo pode acabar diminuindo, pois as famílias religiosas têm mais filhos do que as ateias. No entanto, Dugin rejeitou esse meu optimismo, considerando-o um exemplo da falsa esperança anglo-saxónica de que um número maior de pessoas resolverá por si só os problemas espirituais. Os cristãos, argumentou ele, deveriam concentrar-se em salvar almas [embora já Erasmo no séc. XVI dizia que os cristãos antes de querem converter turcos ou lapões (e isto por indicações do seu confabulator Damião de Goes) deveriam converter-se verdadeira ou profundamente.]
                                          
Dugin acredita que os ocidentais, em particular, têm a obrigação de combater a força do Anticristo - a modernidade - já que foi o Ocidente que criou a modernidade. Ele descreve essa luta como uma guerra espiritual na qual "não devemos vender as nossas almas ao Anticristo", mas estar dispostos a "lutar até o fim e morrer para vencer com Cristo".
A disposição de
lutar contra a modernidade é mais importante do que a probabilidade de vitória, disse Dugin. Deus "aprova-nos" e salvará os que forem testados na batalha espiritual. Essa luta deve ser dirigida para o que Guénon chamou de "Reino da Quantidade", que, segundo Dugin, se manifesta hoje como "liberalismo, cultura LGBT, inteligência artificial, bancos e capitalismo".
                                             
As dramáticas declarações religiosas de Aleksander Dugin certamente evocam ideias milenares. Em minha opinião, no entanto, elas são os [ou dos] exemplos mais claros do poder da fé cristã que anima a sua filosofia política e espiritual radical.
A vitória nessa batalha es
piritual contra a modernidade abriria caminho para a "quarta teoria política" de Dugin, que suplantaria os três sistemas políticos da modernidade: fascismo, comunismo e democracia liberal. A quarta teoria desconstruiria cada um desses sistemas apenas nos seus elementos positivos, e as respectivas combinações seriam moldadas de acordo com as tradições de cada civilização. A política nesse sistema não seria focada no materialismo individual, na luta de classes ou no nacionalismo, mas sim no que o filósofo alemão Martin Heidegger chamou de Dasein, ou ser em sua particularidade [ou no devir da sua specificidade].
                    
Como os Estados Unidos controlam uma força esmagadora no mundo, vivemos em um mundo unipolar. Dugin acredita que essa hegemonia deve ser quebrada para permitir diferentes "polos" da civilização mundial. Os exemplos incluem os polos islâmico, eurasiano (russo) e chinês, cada um incorporado a sua própria tradição civilizacional. Essa multipolaridade é uma alternativa ao globalismo; ela permitirá a diversidade sociológica e acabará com o absolutismo político em favor do relativismo cultural.
                               
A Ucrânia representa o Ocidente liberal, na opinião de Dugin. Isso está perfeitamente representado no apoio ou endossamento por Dugin de uma carta-epístola, escrita pelo oligarca cristão devoto e executivo dos meios de informação Konstantin Malofeev [n.1974], que descreve a entrada russa no Donbass como "um novo estágio na vida de uma Rússia milenar". Malofeev continua descrevendo Kiev como tendo sido "levada [ou tornada] cativa pelas forças do inferno". Com base nessa avaliação, ele considera o conflito como um meio de restaurar a justiça histórica numa "terra sagrada para todo o povo russo", e que é o catalisador de "uma nova grande Rússia". Após a publicação dessa carta, o Departamento de Justiça dos EUA apresentou acusações contra Malofeev por tentar, violando as sanções, criar novos meios de comunicação em vários países europeus. O FBI também emitiu uma declaração dizendo que Malofeev "continua a administrar uma rede de propaganda pró-Putin e recentemente descreveu a invasão militar da Ucrânia pela Rússia em 2022 como uma "guerra santa'".
                          
A carta de Malofeev demonstra como os russos e como Dugin veem o conflito na Ucrânia: como uma guerra santa que expurgará a modernidade da esfera eurasiática e acabará com o que René Guénon descreveu como Kali Yuga - o conceito hindu para uma era decadente de conflitos e pecado. É essa a profunda motivação religiosa e espiritual que está por trás da campanha da Rússia na Ucrânia a qual tem sido perigosamente ignorada pelos analistas ocidentais forçando-os a interpretar mal os motivos russos.
Na medida em que Dugin influencia [muito
relativamente...] Putin e outros líderes russos, essa influência é profundamente religiosa e enquadra os acontecimentos como uma batalha entre as ideologias da modernidade e do tradicionalismo. A conclusão deste conflito terá, sem dúvida, consequências inimagináveis sobre a religião, a cultura e a geopolítica nos próximos anos. A filosofia de Alexandre Dugin [e certamente entretecida na da sua filha Daria Platonova Dugina, com quem muito dialogou] está a deixar a sua marca ou cunho no mundo, bem diante de nossos olhos.»

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