quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Antero de Quental e o casamento como via de superação e iluminação. A carta a Jaime de Magalhães Lima, de Maio de 1889.

O mistério perene das potencialidades da união entre o homem e a mulher foi por Antero de Quental sentido mais romanticamente enquanto jovem, e vários poemas, em especial dos coligidos nas Primaveras Romântica, ecoam as emanações  ígneas e esperançosas do Amor pelo seu coração e ser. Temos além disso duas indicações substanciais na sua valiosíssima correspondência sobre o que ele pensou sobre o tema.   

 Numa carta escrita em 1868 de Ponte Delgada para Alberto Sampaio, Antero de Quental manifestou desassombradamente nos seus 26 anos de idade, as reservas que sentia perante a instituição do casamento, ou como ele designa, influenciado pelos seus estudos de Direito, o artigo do matrimónio. 

                                                          
                                                        Alberto Sampaio (1841-1908)

Mas vinte anos mais tarde a sua visão mostra-se bem mais profunda, como veremos. Oiçamos então primeiro Antero em 1868 confessando o que sentia, já licenciado e após a Questão do Bom Senso e do Bom Gosto, o trabalho em Paris como tipógrafo, e  as estadias em Lisboa e Ponta Delgada,  escrevendo com alguma ironia para Alberto Sampaio : «Os nossos amigos estão implacáveis no artigo do Matrimónio. Já deves saber do casamento do Eduardo [de Almeida Andrade] que me enviou dois bilhetes artisticamente unidos por um fio de retrós azul-celeste, cor de esperança, como sabes. O João Machado [Faria e Maia] casa dentro em uma semana, com uma rapariga de muito notável espírito, que ainda assim não é o esprit dos romances ou dos folhetins, mas posto modestamente ao serviço duma natureza extremamente amável e boa. Pasmo sempre com estas coisas, porque não sei como ainda se acha no mundo quem disponha de seriedade suficiente, a ponto de casar para valer e por conseguinte, para valer tomar a vida e todas as ocas coisas dela. O casamento é uma bela coisa (conquanto não tão bela como a têm feito nestes nossos tempos alguns filósofos bem casados de mais para filosofarem com sangue frio) mas é uma bela coisa em tese, como se diz em Coimbra. Mas hoje e para quem conhece o mundo actual parece-me que só como coroa de um largo e tolerantíssimo humorismo se pode admitir. O casamento sem reserva, sem restrição mental, acho-o uma monstruosidade de boa fé.»

 Após esta manifestação de fortes reservas ao casamento, católico provavelmente pela sua indissolubilidade, que já no século XIX lhe parecia uma ingenuidade algo perigosa, provavelmente dadas as dificuldades de se encontrar a pessoa certa e conseguir manter a relação numa complexa sociedade, sobretudo para um filósofo peripatético, algo asceta e estóico, como em parte ele era.

Será já de 1889 que descobrimos uma mais original aproximação à união da mulher e do homem, ou seja ao casamento, como via de realização, elaborada por um Antero Quental  bem mais amadurecido, estabilizado pela experiência até da vivência quotidiana durante uns anos com a viúva de Germano Meireles e as duas filhas deles, em Vila de Conde, e que está transmitida nessa carta escrita em 28-V-1889, dois anos antes de morrer, para o tolstoiano e vegetariano Jaime de Magalhães Lima (já abordado neste blogue), dezassete anos mais novo e seu discípulo.

  Jaime de Magalhães de Lima, numa fotografia oferecida a Avelino de Almeida, e Antero.

 Nela se congratula com a nova fase na vida, pois ia casar-se, afirmando-lhe mesmo que «o dia do seu casamento será para mim uma verdadeira alegria», e dando-lhe em seguida um quase que sermão de iniciação na vida do amor a dois, ainda que mais na linha sacrificial do ego e no alcançar da impersonalidade do que na valorização dos estados unitivos e expandidos que os casais podem realizar se verdadeiramente se unem nos vários níveis dos seus seres com o máximo de amor e abertos à Divindade e à Unidade, algo que contudo Antero na sua vida de bacharel e celibatário pouco conseguira desenvolver, tanto mais como já vimos o seu receio e desconfiança expresso na carta a Alberto Sampaio, escrita há vinte e três anos.

 Como esta carta é muito valiosa e como ainda não está transcrita na web vale a pena fazê-lo em grande parte. Ora nela, Antero de Quental, depois de afirmar que há alguma razão  por detrás da declaração bíblica de que "não é bom que o homem esteja só", encara a valorização do matrimónio por uma via mais filosófico, moral e espiritual, e como natural na evolução, maturação ou individuação das pessoas, e fazendo-o a partir da sua própria experiência de vida, que contudo não lhe permitiu o enlace mais profundo ou duradouro com ninguém: «tomando a coisa por outro lado, dir-lhe-ei que só é verdadeiramente livre aquele que sabe limitar voluntariamente a própria liberdade.  A liberdade é um ideal, que, como todos, precisa ser corrigido pela realidade tem a sua pedra-toque. Os ideais da nossa mocidade, absolutos e no fundo muito egoístas, são fantásticos, e é por isso que nos atormentam tanto. E quando cerceamos, em proveito dos outros, uma parte dessas desmedidas ambições, reconhecemos então com pasmo que essa amputação, em vez de nos diminuir, nos engrandeceu. Parece-me dever concluir daqui que a nossa verdadeira grandeza é toda interior e subjectiva; o que somos e fazemos importa relativamente pouco; a relação da nossa vontade consigo mesmo é que é o essencial.

[Comentário: Eis uma importante valorização da força de vontade, unificando as nossas tendências divergentes, para os objectivos que consideramos mais elevados, o que constitui na realidade a base do caminho iniciático ou da unificação das nossas forças anímicas.]

Chegados a um certo estado de espírito, não de cepticismo ou de abatimento, mas de verdadeira compreensão da nossa natureza e do nosso fim (regnum meum non est hoc mundo, "o meu reino não é deste mundo"), aquelas imensas ambições da mocidade fazem-nos sorrir. Não compreendo pois porque emprega duas vezes a palavra resignação: quisera que a riscasse do vocabulário dos seus sentimentos.   

[Comentário: Ou será que o casamento não era sentido numa tão grande de unidade  de corpo, alma e espírito, entre Jaime e sua noiva Maria Cardal, filha do 1º conde de Condeixa?]  

A transição do egoísmo idealista e da falsa liberdade, para a realidade moral e a verdadeira liberdade, é um progresso e até, em meu conceito, o máximo progresso: não pode ser pois matéria de resignação; antes, de exultação. 

 [Comentário: Vemos assim Antero conceber o casamento no fundo como uma via de auto-domínio, de superação do egoísmo, de desenvolvimento de solidariedade e universalidade, de felicidade de se estar livre dos idealismos juvenis algo egóicos. Não há contudo uma valorização unitiva do casamento, seja numa linha de recuperação do estado de unidade com o seu ser polar ou complementar, seja numa linha tântrica (via indiana de união dos princípios masculinos e femininos da consciência e energia, pela meditação, o ritual e o acto sexual) em que os momentos mais intensos de união e fusão podem abrir e expandir a consciência dos níveis sensoriais e sociais para os espirituais ou mesmo divinos.]  

Mas talvez lhe esteja fazendo aqui uma chicana de palavras, por causa duma que provavelmente empregou num sentido diverso daquele em que eu o tomei. Por isso não insisto. Entrou meu caro amigo,  num caminho em que todos os dias irá sentindo o chão mais firme debaixo dos pés, mais lúcido o pensamento, mais serena a consciência.

[Comentário: Mais forte o amor e a ligação espiritual e divina, teria sido bom se Antero tivesse também sentido e escrito]. 

Vivendo cada vez mais para os outros, sentindo morrer em cada dia dentro de si mais uma parcela do eu egoísta que tanto nos ilude, tanto nos faz sofrer e errar, irá entrando gradualmente naquela região da impersonalidade que é a verdadeira beatitude».

Reflexões finais: Este último parágrafo transcrito regista bem a elevada e tão  e difícil de se realizar visão anteriana da missão do ser humano, e como o caminho estreito para a verdadeira felicidade ou beatitude passa por vencermos o nosso eu egoísta, e irmos  entrando gradualmente naquela região da impersonalidade.  

Perguntaremos, conseguiu Antero de Quental entrar pouco, razoavelmente ou muito em tal região da impersonalidade?  Tinha consciência disso em alguns momentos da sua vida, tal como decisões, sacrifícios, escolhas de pensamentos ou mesmo de linhas de escrita ou de poesia?  

Dá-nos a entender que sim, pois teria sentido, ou aconselha teoricamente,  a prática diária da morte de uma parcela do eu egoísta. É uma linguagem forte, dura, ascética, que podemos quase conectar com a Arte de bem morrer que filósofos e religiosos ao longo dos séculos valorizaram e, na realidade, quando evitamos determinado acto que o nosso eu mais primário, instintivo e egoísta desejaria, nós estamos a fazê-lo morrer, ou melhor, a diminui-lo, controlá-lo, e assim fortalecendo o desprendimento recomendado para a morte como libertação do corpo e dos desejos da vida na Terra e logo o acesso a níveis mais luminosos e conscientes. 

Mas quando Antero de Quental se limita a afirmar a impersonalidade, esse não ser uma personalidade ou a personalidade, numa linha de origem nele algo budista ou advaitica vedanta, e da filosofia do inconsciente de Hartman, não acolhe nem ilumina contudo o ser substante identitário que tem de haver, pois a felicidade sentida implicaria uma consciência, um eu, certamente mais subtil ou profundo que escapa à maioria dos seres, e que alguns místicos ou iniciados conheceram.

Este ponte no caminho espiritual sentimos que não foi cruzada por Antero: a realização do espírito, como eu espiritual e núcleo central e imortal da sua alma, não foi alcançada, e assim pese a sua ascese, sofrimento, bondade, impersonalidade, que era também "impassibilidade estóica" que mais de uma vez referiu, ficou na sua sensibilidade tão imensa e facilmente perturbada pelos seus frágeis nervos e má e escassa alimentação (frequentemente um só vez por dia, em condições de difícil fortificação pelo amor, a paz, a harmonia para os embates, frustrações e desilusões da vida. Vendo  Jaime de Magalhães Lima, bem mais novo,  com 29 anos, mas já bem consciente e sapiente só lhe podia recomendar as linhas de força que ele aprofundara e desenvolvera com grande trabalho e dor nos Sonetos e na Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX : ir dominando o eu egoísta,  desenvolvendo a felicidade e a liberdade de ter menos ego, acolhendo o casamento como boa via para tal tarefa iniciática... 

E nós, já no séc. XXI, onde estamos nestas batalhas internas e externas?

Vencendo o eu instintivo ou egoísta, acolhendo e sentindo, e afirmando até mais o eu espiritual e a sua exaltação ou exultação no amor, na fraternidade, na sapiência e sobretudo até na aspiração à Verdade e à Justiça que tanto ardeu genialmente em Antero, apenas lhe faltando, como já mostramos, por via da influência do budismo, a consciencialização da centelha espiritual,  e por via da influência do cristianismo, a religação à Divindade que não já o Jeohova que tanto criticara e repudiara...

Possam a Luz e o Amor divinos brilharem nas almas de Antero de Quental, Alberto Sampaio e Jaime de Magalhães Lima! E nos que tentam aprofundar os mistérios do Ser e da união polar... Aum....

Pintura de Bô Yin Râ.... Mundos espirituais....

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