Arrumando livros menos importantes, encontrei alguns de poesia, que resolvi examinar e sentir os que mereceriam algum tipo de leitura ou mesmo transcrição. Folheando um dos em pior estado, intitulado Algo, li o prefácio do poeta (pseudónimo: Belmiro), jornalista e licenciado em farmácia Acácio Paiva, natural de Leiria (1864-1944), contendo palavras simpáticas e confessando modestamente que até se sente envergonhado, por a apresentar: «Não minha senhora: se um de nós precisa de guia, sou eu, trémulo, indeciso, quase no fim dum caminho aspérrimo, caindo aqui e além, e subindo a custo a última ladeira, com uma cruz de demasiado peso para os meus ombros. De amparo, necessito eu, e creio bem que, no caso presente, os papéis se inverteram: a leitura do seu livro logrou dar um pouco de vigor ao meu coração enfraquecido, como o sol aquece e vivifica os organismo depauperados, e assim eu é que me encontro na grata situação de favorecido, devendo a v. ex. o benefício de algumas horas espiritualmente consoladoras e a esperança de que muitas mais me concederá (...) .
Agradecia ele então à novel poetisa, esfuziante no seu optimismo dos 20 anos, Maria Gabriela Castelo Branco, nascida portanto em 1905 e que se licenciaria em Letras e se tornaria escritora e jornalista, passando a assumir o nome Gabriela Castelo Branco, e vindo a publicar, por exemplo, em 1954, Páginas de Jornalismo, em 1966 o livro de poemas Sinfonia, ou a dirigir o Jornal Távola Redonda, fundado em 1961.
Ora manuseando o livrinho, muito manchado de castanho na capa e com algumas páginas já com picos rosa-arroxeados da humidade infiltrada, deparei-me no índice final, entre os títulos dos poemas, um que despertou a vontade de o examinar ou mesmo ler. É o oitavo a contar do fim, na página 81 e intitula-se Imortalidade, pelo que quis ver o que a levara a poetizar sob tal realidade misteriosa.
Ora abrindo a folha, leio de imediato IMORTALIDADE, ante a obra de Antero de Quental, seguindo-se o soneto que só agora a meio desta escrita vou ler, com o interesse também de ver como é que , antes da instauração da ditadura militar, em 1928, do Estado Novo e do Salazarismo, a juventude da República sentia e via Antero de Quental, poeta, filósofo, líder carismático, e que embora há trinta anos anos tivesse partido abruptamente mas provavelmente com a consciência de que já cumprira a sua tarefa ou missão de vida, continuava ainda agora a inspirar almas poéticas, sensíveis, idealistas, esperançosas. Eis o soneto:
«Espírito subtil, mas intrépido e forte,
Ardente como o sol e como ele imortal,
tu deste ao mundo luz e, repelindo o mal,
cantaste em alta voz o Bem, o Eterno, a Morte.
Com mão quente e febril formaste uma coorte
de altas filosofias dum estoicismo ideal;
e entre as tuas ideias desprezaste o real...
e esculpiste num cipo o fel da tua sorte.
Hoje falam de ti; e a amanhã falarão.
Tua obra não morreu, vive eterna no mundo,
a lembrar o Além, a lúcida Beleza.
Filho de Portugal!... de todos és irmão...
mas essa enorme dor, esse pranto fecundo,
... só podia vertê-lo uma alma portuguesa.»
Outubro, 1924
O que deveremos realçar no belo e profundo soneto, muito transparente e sincero? A primeira quadra descreve magistralmente Antero, reconhecendo nele o "Espírito subtil", corajoso, resistente, flamejante e imortal como o sol, irradiando luz que dissipa as trevas da ignorância e do ódio, o mal animado ou inspirado pelo "Bem, o Eterno, a Morte."
Na segunda quadra, muito realisticamente, ela sente e realça a grande doação de Antero à filosofia e a escrita, passada a intensa época estudantil, e também a uma vida sóbria e temperada, ainda que dormisse e comesse pouco, e nesse sentido Gabriela vê-o como seguindo o idealismo estóico, filosofia ou modo de vida que foi de muitos dos grandes seres e filósofos, nomeadamente os greco-romanos. Contudo Gabriela Castelo Branco considera que foi demais no mundo das ideias e no menosprezo da realidade, não se inserindo bem nela e logo vindo a esculpir tragicamente o seu nome na ara da sua morte e imortalidade. Apresenta-no-lo talvez mesmo como um companheiro de Jesus, quem sabe mesmo um Christhos, ungido, menor, pois como o arquétipo, o fel foi-lhe dado a beber também.
O terceto inicial apresenta-nos Antero na eternidade merecida, mestre do Além porque o tentou compreender, e soube-o arrojadamente triunfar, da lúcida Beleza, da consciência do que é verdadeiramente bom, belo e justo, que sempre animou Antero e que na sua obra tenta investigar ou então poetizar,
O terceto final marca a admiração por Antero enquanto símbolo da irmandade portuguesa, e como ela é fortificada pela passagem na dor, e pela expressão fecundante das lágrimas reais e poéticas e que caracterizam a grande alma portuguesa, fraterna, lúcida, amante do Bem e da Beleza e estoicamente avançando na demanda da verdade e da felicidade, da imortalidade e da Divindade.
Anote-se que Antero escreveu em jovem um texto carta intitulado Sentimento da imortalidade, e autonomizado, mostrando como ele jovem sentia tal possível e natural, e nos sonetos há alguns que, embora sem tal título expresso, abordam-no com sabedoria e esperança, por vezes algo impessoalmente, outras vezes acreditando numa imortalidade individual em corpo subtil ou espiritual, com o soneto "Com os Mortos"
Ao lermos a poesia de Gabriela Castelo Branco sentimos que há vários sonetos que são devedores de Antero de Quental, que ela certamente o leu e releu e no fundo poeticamente o comentou e o continuou. Seria uma anteriana ao longo da vida, os que privaram com ela, sentiram-no, souberam-no? Quem teriam sido as principais mulheres que deixaram poesia ou escrita, testemunhando o seu amor por Antero de Quental e a sua obra, complementando-o assim na polaridade amorosa e divina que lhe faltou e que elas de algum modo subtil eflúvios enviavam à sua alma?
Eis os dois sonetos que na obra se seguem ao consagrado a Antero, e muitos são belos e profundos, ainda que na leveza dos seus 20 anos, algo anterianos, com um, Esperança, que parece ecoar juvenil e femininamente um dos mais poderosos sonetos de Antero, Mors-Amor:
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