terça-feira, 25 de outubro de 2022

Livros (4º) sobre Sonhos. Raymond de Becker, Les Songes. Apresentação comentada por Pedro Teixeira da Mota.

                                 

BECKER, Raymond de. LES SONGES. Paris, Grasset, 1958. In-8º 158 p. B.

Nesta obra  Raymond de Becker (1912-1969), um intelectual belga de grande inteligência e cultura, católico militante e participando em dezenas de grupos e revistas, amigo de Jacques Maritan e Hergé, teve uma bem complexa vida devido às suas orientações sexuais e sobretudo à colaboração com o social-nacionalismo da Alemanha quando este tomou conta da Bélgica, dirigindo então o jornal Soir, de 1941 a 1943, e repudiando-o já algo tardiamente pelo que recebeu mesmo a pena de morte, comutada em prisão de 1947 a 1951, instalando-se depois em Lausanne e Paris, onde terminou os seus dias suicidando-se, após uma viagem à Índia. Interessou-se pela temática ocultista e espiritual, sendo amigo de Carl G. Jung e Jacques Bergier tendo escrito este e outro  livro (já em 1965, bastante mais desenvolvido, Les machinations de la nuit) sobre os sonhos, baseando-se em conhecimentos científicos, psicológicos, psicanalíticos, literários, religiosos e tradicionais, transmitindo e até aprofundando alguns níveis deles com qualidade, e este ilustrando-o bem,

 A obra Les Songes tem uma valiosa introdução, na qual giza uma história abreviada do valor do sonho ao longo dos séculos, referindo por exemplo, as incubações, do séc. VI a. C. ao séc. VI d. C., nos santuários de Esculápio, ou já na época quase medieval, no séc. IX em Bizâncio, o tratado da Adivinhação dos Sonhos, do bem-aventurado Nicéforo, patriarca de Constantinopla, e segundo o qual, e com bastantes sentido, «as coisas futuras só podiam aparecer simbolicamente num sonho se fossem chamadas tanto pela oração como pelo domínio das paixões e apetites».

O Sonho de Polifilo, uma obra prima perene...

A obra foi dividida em cinco capítulos, estando o 1º Fontes do Sonho, dividido em quatro alíneas: excitações exteriores, orgânicas, psíquicas e extra-sensoriais. Se as duas primeiras são reconhecidas por todos, e a terceira se refere ao estudo psicanalítico do conteúdo (imagens mas também sensações dos outros órgãos dos sentidos) dos sonhos, já a distinção última  não seria tão evidente para alguns: são os originados nas capacidades das pessoas sentirem ou verem bem para além dos condicionalismos sensoriais do tempo e do espaço terreno ou, no caso de experiências quase-morte, de vivenciarem o que as rodeia física ou subtilmente com outra consciência que a de vigília, e tendo como suporte um outro nível. Algo que ele desenvolverá na quinta e última parte do livro.

No 2º capítulo O Sonho visto pelos Psicanalistas aborda os contributos de Freud e de Jung e como este ampliou e ultrapassou as limitações freudianas, nomeadamente  E no capítulo seguinte, o 3º, à pergunta A análise dos sonhos é assunto reservado a especialistas?, apresenta as atitudes dos psicanalistas,  aponta as regras fundamentais de auto-análise e interroga-se se pode-se dialogar com eles e dirigi-los; ora pela suas experiências de, por exemplo pensar antes de adormecer numa imagem de um sonho anterior, conclui que se a vontade é capaz de introduzir no sonho os temas que ela escolhe, eles são reenviados em geral num contexto imprevisto,  que modifica o sentido e atesta a actividade autónoma do inconsciente». Outro meio de diálogo que recomenda é ao acordar com um sonho, pensa-se nele e no que se quer compreender melhor e readormece-se com tal intenção. Cita ainda um dr. Graeter que considera que cada pessoa tem os seus símbolos pessoais mais eficazes para serem introduzidos e terem efeitos harmonizadores ou curativos. E que quando esteve preso e se dedicou mais à leitura da espiritualidade indiana, particularmente com «Sri Aurobindo que tomava à letra a teoria indiana da universalidade da alma  e concluía que sendo uma com tudo o que existe, todos os seres podem comunicar entre si pelo pensamento», resolvera antes de adormecer concentrar-se na fotografia, e pedir-lhe conselhos para a sua evolução espiritual, vindo a receber uma mensagem significativa por imagem de um disco dourado e uma voz». 

Sri Aurobindo.... Aum...

O 4º capítulo é bastante valioso pois intitulada Do Conteúdo simbólico dos sonhos, foi dividida em: 1ª parte O símbolo como transformador de energia, onde critica a fixação sexual de Freud nas várias explicações dadas quanto a sonhos de seres famosos, e onde valoriza nos símbolos, a sua função captadora dos instintos e da líbido, isto é, da energia psíquica indiferenciada, e como tal é importante para se manter a qualidade cultural dos povos. E uma 2ª parte Exemplos de grandes séries simbólicas: A) Paternal ou masculina (céu, sol, fogo), B) Maternal ou feminina (mar, terra, lua, noite, números pares, multidão), C) e D) Símbolos da alma do homem e da mulher, isto é, do espírito e da vida, e que devem ser harmonizados em cada ser, para que não vejam os outros seres através das suas projeções mas tal como eles são, e de modo a que a essas energias possam fortalecer ou «elaborar um tipo de  guia interior que os amadurece e os transforma nesses seres redondos imaginados por Platão e que não são que uma imagem da personalidade tendo desenvolvido todas as suas possibilidades».; E) Símbolos do Ser em si ou da totalidade, onde apresenta uma excelente visão do processo evolutivo, esforçado e difícil, e por isso certos sonhos pesados,  que vai gerando a individuação da pessoa completa a partir da coincidentia oppositorum, tais consciente-inconsciente, masculino-feminino, unificaçao dos contrários esta que se abre para o «Ser em si que é sempre uma função transcendente, e que se é provocado pela consciência na procura da totalidade, nunca é a sua obra. O Ser em si (Le Soi),[ou o Espírito, ou o Eu espiritual] integra a consciência numa espécie de consciência superior.» Menciona depois bem os principais símbolos do Ser em si, «rosa, roda círculo, estrela, sol, tesouro, jóia, diamante, ovo e criança», esta «exprimindo sempre o Ser em si em formação. a grande possibilidade unificadora do futuro. Mas quando esta possibilidade está já alcançada de algum modo, ela encontra a sua expressão privilegiada em figuras geométricas que Jung chamou mandalas porque elas constituem os temas sistemáticos da meditação».

Uma mandala ocidental, a távola redonda do santo Graal...

 Depois de referir os nomes de Stekel, Freud e Jung como observadores dos números nos sonhos (os pares femininos e os ímpares masculinos), e destacar como a melhor obra, a de Paneth: La Symbolique des nombres dans l'Inconscient, fala das cores, numa interpretação, parece-me algo, superficial: «o azul corresponde ao inconsciente, o vermelho à agressividade do sangue, à emoção, à vida, o amarelo à intuição, à iluminação, o verde à esperança, ao crescimento ao futuro ou devir, à relação justa com a natureza, o negro à morte, à culpabilidade, à matéria primeira, rejeitada e menos prezada e mas rica de potencialidades insuspeitadas», e terminará esta Quarta parte, com uma sábia e instrutiva visão: «Por vezes a consciência revolta-se diante os conteúdos do inconsciente. Mas na medida em que ela não se limita a ignorar ou a recalcá-las mas aceita a confrontação, discutindo num corpo a corpo, integrando o que é integrável, recusando o que sente não conseguir aceitar, a totalidade apesar de tudo constitui-se», e mesmo que ainda incompleta, sendo verdadeira.

A Quinta parte e última, Do Conteúdo Profético e Telepático dos Sonhos, não tem  talvez a qualidade que esperaríamos pois vai condicionar-se aos três problemas que eles conteriam: O seu conteúdo é o resultado duma criptomenésia (lembrança antiga)? Qual a sua implicação afectiva? Que intenção ele busca?, pois nem procura o espírito próprio, nem a acção de espíritos exteriores, que como nós já vimos noutro artigo é uma das hipóteses mais importantes para Bô Yin Râ. Citará as compreensões de Freud e de Jung sobre estes fenómenos que ambos reconheceram existirem, Jung realçando serem intuições e existirem aspectos afectivos a ligar as pessoas que conseguem entre si telepatizar, Freud remetendo a telepatia para ser o meio arcaico original dos indivíduos se compreenderem e que fora preterida na evolução pela percepção sensorial dos sinais sonoros. Mencionará por fim Jan Ehrenwald, Jule Eisenbud, Emilio Servadio e Nandor Favor como os melhores estudiosos dos aspectos telepáticos nos sonhos, que ele contudo na sua experiência sente não serem tão devedores de aspectos afectivos, pois cartas importantes que lhe são enviadas, vê-as chegarem uns dias antes não havendo aspectos afectivos em causa...
Quanto aos aspectos extra-sensoriais dos sonhos pensa que um sonho  desse jaez
«testemunha uma função prospectiva. Ele parte à procura do futuro e na medida da nossa sensibilidade ao inconsciente, cria-a», mas não a limita ao futuro, pois estudando as experiências oníricas de Dunne, considera que há também incursões ao passado, ambas estando incluídas no que Jung chamou «a realidade transpsíquica que é o fundamento imediato da psique.»

Bibliografia sumária...

                                                         
          A última ilustração que coroa a obra é a Alegoria do Sonho, de
Giorgione, numa gravura quinhentista de Marcontoni Raimondi, bem reflectora dos  mistérios dos seres e mundos:

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