Erasmo, num altar de lar lisboeta |
ERASMO, UM HOMEM PARA A ETERNIDADE
Festejando-se nestes dias de 27 ou 28 Outubro o aniversário de Erasmo, que nasceu entre 1464 e 1467 ( datas incertas), resolvemos celebrá-lo e comungar com o seu espírito traduzindo (do latim e francês) partes de algumas das cartas escritas por ele nos dois últimos anos de vida pois, tal como entre nós as de Antero de Quental, emanam uma grande lucidez e ironia, sabedoria e amor, para além de serem testemunhos valiosos tanto auto-biográficos como históricos sobre os seus contemporâneos e acontecimentos.
De Friburg onde viveu os últimos anos de vida, em 4 de Junho de 1534, escreve para o seu grande amigo Boniface Amerbach (1495-1562), que o visitara um mês antes:
«(...) Está a ser difícil a digerir o modo como fui tratado por esse monstro de que te falei [o holandês Quirinus Hagius]. E cada dia ele ultrapassa-se. Suponho que ele tenha sido subornado por heréticos, para se insinuar na familiaridade doméstica, com o intuito de descobrir todos os arcanos com os quais armado me fizesse perder. Cheguei ao septuagésimo ano; um tal ataque nunca antes me acontecera, nem nunca enfrentara um tal monstro . O remédio para ele é um exorcista. (...)»
Estudos das mãos de Erasmo, por Hans Holbein, filho. |
Uma semana depois, a 11 de Junho, para o seu amigo comerciante e banqueiro Erasmo Schets, volta a lamentar-se do comportamento do seu empregado (flamulus) Quirinus:
«Escreve quanto ao que se passa na Inglaterra. Não tenho presentemente ninguém de confiança para enviar. Quem enviei duas vezes tratou-me tão impudentemente que eu jamais em vida fora afectado com semelhante tratamento ordinário. Estou habituado a monstros, mas com tal monstro nunca tinha colidido . Com toda a evidência resolvera-se na sua petulância matar-me, sem respeito pela idade nem pela saúde, nem erudição, nem méritos dos estudos, nem costumes domésticos. De que antro saiu este furioso desconheço. Não foi aqui que ele concebeu este ódio (jamais o lesei com uma palavra e gostava dele singularmente) -mas trazia-o consigo, e ocultava-o. Sem saber acalentei uma víbora no meu seio. A sua improbidade infligiu no meu ânimo uma ferida mais grave do que cem livros de Lutero ou de Nicolas Herborn [frade franciscano, fanático contra Erasmo]. »
A 14 de Junho, noutra carta a Bonifácio Amernach, queixa-se de novo de Quirino: «Ainda que não seja Cronos, também posso digerir esta pedra, embora este monstro deixasse aqui ovos de víbora e para em breve voltar à tragédia antiga. O que fazer com ele, que não tem pudor, nem juízo nem humanidade, resumindo: nada de humano. Ele infectara a minha casa antes que eu suspeitasse algo dele. Passou-se mesmo com Carinus [um empregado]. Comia à minha mesa, tinha-o como amigo e estava a alimentar um virulentíssimo crítico. Soube isto depois por Talesius [secretário e homem de confiança] contudo tardiamente, tal como o pai de família em geral é o último a saber das desgraças da casa».
Gravura de Erasmo, oferecida por José V. de Pina Martins, notável humanista português. |
« Eu neste Estio fui de tal modo atacado pela minha doença que esperava pelo fim. Mas a visão de Deus não era essa. É o Senhor. Faça-se o que é bom aos seus próprios olhos. Se ele não me conceder melhor saúde, mesmo que se tratasse de uma viagem de dois dias, eu não ousaria acometer a partida com este pobre corpo. Durante três meses só um dia consegui sair de casa. Tenho porém alguns amigos não estúpidos na tua cidade que me aconselham a evitar os franciscanos. O Imperador [Carlos V] atribui grande valor a este género de homens. Todavia o meu ânimo suspira pelo Brabante [sua região natal] e os monges não me impediriam [ao estarem contra a sua obra e contra ele], se a minha saúde fosse razoável.»
A carta dirigida a 31 de Julho ao helenista e médico Johannes Sinapius (1505-1560) é bastante valiosa pois mostra como no fim de uma vida de estudo, labor e erudição ao serviço da Igreja, ainda estava a ser atacado por frades de várias ordens : « (...) Saúda Manardius da minha parte e diz-lhe que estou agradecido pela amizade que me testemunha. Uma espécie de má sorte obriga-me a lutar contra muitas víboras; mas prefiro isto a ferir muitas pessoas com as minhas invectivas. Agora entre tantas apologias não há nenhuma invectiva de Erasmo. Não respondo porém a todos. Tenho estado calado em relação ao Vicente e aos seus bufões dos Dominicanos, nomeadamente em relação ao dominicano Sichem, e a Scaliger, e a Nicolas Herbon, comissário franciscano para este lado dos montes. Vês aqui uma notável monaquia [jogo com monarquia, mas de monges, monacos]. O último, Nicolas Herborn, violando o édito do Imperador, fez editar em Antuérpia pelos do seu rebanho dos sermões da Quaresma, tidos como pregados em Colónia, nos quais não há nem erudição, nem eloquência, nem julgamento, nem inteligência, nem a menor suspeita de piedade. Ele parece ter feito esta edição apenas para espalhar em litania as palavras de ordem dos Irmãos: "Erasmo é o pai de Lutero"; "Erasmo pôs os ovos, Lutero chocou os pintainhos"; "Lutero, Zwinglio, Ecolampádio e Erasmo são os soldados de de Pilatos, os que crucificaram Jesus". O Imperador [Carlos V] parece dar muito crédito a essas pessoas de que se servem para lançar a semente nos países recentemente descobertos. [Erasmo por vezes criticou os que iam converter os ditos infiéis sem se terem convertido, ou sem se tornarem fiéis do Amor divino antes].
Nunca supus em Eugubino Steuco (1497-1548) tanta irreflexão juvenil. Adverti-o para ter cuidado, pois o seu carácter, truculento e orgulhoso, tinha necessidade de ser dirigido. Em resposta - a uma admoestação amigável, enviou-me uma carta cheia de mentiras evidentes, mas acrescentou um penso para as feridas; foi como nos seus livros contra Lutero, falando da Alemanha e, depois de ter insistido na ferocidade inata em todo esse povo, na sua barbária habitual, na sua grosseria, etc., imagina que pôs um bálsamo sobre as chagas quando, pretendendo que nada disse contra o povo, afirma ter sentimentos amistosos com o país. É uma impudência eminentemente monacal.
Ignoro o que aconteceu a Lutero. Sem jamais ter sido atacado por mim, mesmo que fosse por uma palavra, ele publicou uma carta tão loucamente furiosa que ela desagrada mesmo aos que se inclinam para a sua seita, e ainda me ameaça com um julgamento contra mim. Serão necessárias mais palavras?»
A carta ao grande sábio irenista Pietro Bembo, escrita a 16 de Agosto de 1534, tem o condão de nos tocar mais pois é escrita para recomendar o nosso sábio e corajoso Damião de Goes (1502-1574), então com 32 anos, vendo-se bem nela o afecto que os unia, tanto mais que Damião vivera uns meses antes na casa de Erasmo, como seu confabulator, no fundo, um discípulo cardíaco, cultural e espiritual:
«A celebridade do teu nome e a tua grande gentileza para todos fazem com que ninguém vai para a escola de Pádua sem desejar ser recomendado a ti. Entre eles encontra-se Damião de Goes, um jovem de família nobre, que dedicou a parte mais brilhante da sua vida tratando dos negócios do seu rei [D. João III], e que contudo ao mesmo tempo, roubava quanto podia do ócio para os seus estudos. É também Lusitano de nação, de carácter inato nada sórdido, de costumes candidíssimo. O seu rei ofereceu-lhe espontaneamente um cargo na corte, onde ele fora educado desde criança, a saber: ser o responsável do Tesouro. Mas ele preferiu guardar um tesouro melhor no ânimo. Sob o meu aconselhamento, escolheu a escola de Pádua como a mais brilhante de todas. De ti não pede qualquer serviço que tu não possas prestar sem incómodos, desses serviços que não costumas negar a ninguém. Aconselha-o na hospedagem tanto da casa como da mesa para que ele possa eleger o melhor. Parece-me a melhor decisão, ter casa e mesa em comum com alguns nobres franceses ou alemães. Está de facto acostumado a uma vida elegante, ainda que seja sóbrio. Desejo-te uma saúde muito próspera.»
2 comentários:
Prezado gostaria de saber se poderia disponibilizar sua traducao do Modo de orar a Deus. Infelizmente no Brasil o livro não se encontra a venda. Tambem ja tentei compra-lo em livrarias de Portugal mas gastaria mais com os portes do que com o próprio livro. Obrigado! Melhores cumprimentos Eduardo.
Graças pelo seu interesse. E desculpas por só agora poder responder. Dê-me o seu mail. Lux!
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