quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Livros (5º) sobre Sonhos. Wilhelm Stekel, Los suenos de los poetas. Apresentação comentada por Pedro Teixeira da Mota.

                                       

STEKEL, Wilhelm. Los Suenos de los Poetas. Buenos Aires, Ediciones Citerea, 1965. In-8º de 340 p. 

Obra escrita em 1912 por um famoso psicanalista, um dos primeiros e mais próximos associados de Freud (mas que mais tarde este repudiou não por discordâncias científicas mas de carácter), na qual Stekel analisa as vidas e obras de muitos pensadores e poetas famosos e os seus sonhos, tais como Baudelaire Thomas de Quincey, Byron, Flaubert, Wagner, Enrique Heine, Maupassant, Strindberg, Georg Christophe, transcreve e comentando ainda sonhos e opiniões sobre eles que amigos lhe contaram em resposta a um inquérito com seis perguntas que lhes enviou, e no capítulo final bastante mais extenso analisa os sonhos religiosos e homosexuais, compilados e comentados num diário pelo poeta Friederich Hebbel. 

Wilhelm Stekel, desde cedo se interessou por todo o tipo comportamentos, ou manifestações sexuais, ou que ele entendia terem tal origem, tendo aprendido com o sexologista Richard von Krafft-Ebing e outros da Universidade de Viena. Escreveu sobre onamismo, frigidez, homosexualidade, fetichismo (para alguns pacientes seria a religião do inconsciente), impotência e perversões, nomeadamente o sadismo e masoquismo, que considerava terem na sua essência a humilhação, práticas estas e sentimentos hoje muito aperfeiçoados pelos agentes da nova Ordem mundial opressiva que se pretende impor na humanidade. 

Discutíveis algumas interpretações e extrapolações, tal a que faz à extensa e famosa descrição de uma voz que Guy de Maupassant no seu livro Sur L'Eau, ouve (ou, melhor, imaginou para o livro) e que para ele era «a voz que grita sem fim na nossa alma (...) que nos critica por tudo o que fizemos e ao mesmo tempo não fizemos, a voz dos vagos remorsos, dos lamentos sem retorno dos tempos passados, das mulheres reencontradas que talvez pudéssemos ter amado, das coisas desaparecidas, das alegrias vãs, das esperanças mortas (...)», assim comentada por Wilhelm Stekel: «Esta voz da consciência, este eudaimonia [felicidade por se estar ligado ou habitado por um bom espírito] de Sócrates, é na maioria das vezes uma repetição dos mandamentos que os nossos pais nos inculcaram na infância. Esta voz aparece também ao ser humano no sonho. Implora, roga ameaça e admoesta. Há uma série de sonhos que constituem sonhos admoestadores. Quantas vezes quem sonha  escuta vozes que parecem adverti-lo e anunciar-lhe coisas de mundos distantes». Ora Steckel não discerne na voz íntima ou voz da consciência um eco ou fala do espírito, ou ainda a voz de entidades dos mundos subtis e espirituais, ou ainda mesmo, como Antero de Quental escreveu, a voz da Divindade imanente. Esta   aceitação de um transcendente-imanente, ou dos mestres e anjos, sempre faltou bastante à maioria dos psicanalistas, embora com Jung e Assaglioli isso tivesse sido em grande parte ultrapassado. 

Sócrates sendo inspirado pelo seu daimon ou anjo...

Bastante discutível foi também a sua ideia de que os sonhos de pessoas mais artistas ou criativas, tais os de Goethe, comparados com o de uma simples camponesa analfabeta,  não tinham grande diferenças, no fundo uniformizados num inconsciente libidinoso, reconhecendo contudo que os escritores e poetas deixaram sobre os seus sonhos muito material pioneiro em relação a Freud, tal como por exemplo Nietzche. Discutíveis algumas das suas teorias, mas que fazem parte da história da psicanálise, tais como as de Freud, enquanto florescências de uma visão exagerada da sexualidade, e que levaram mesmo Stekel, por exemplo, a considerar os médicos como desejosos sobretudo de ver o aspecto sexual dos pacientes. 

Ou ainda a visão tão sombria do inconsciente ou do umbral:«Também Baudelaire vê o seu próprio interior e retrodece espantado. Goethe mostra-nos isso na 2ª parte do Fausto. As figuras horríveis que nos desconrem os poetas, o Quasimodo de Vítor Hugo, Ricardo III, Franz Moor, Zanga de Grillparzer, Mohr de Fiesco, a conversão dos seres humanos em animais selvagens, nas fábulas, são projecções do inconsciente, são objectivações do animal que vive em nós e se aliemnta do nosso sangue e nos arrasta sempre para os abismos: a "besta humana"   A nossa civilização não é mais do que um delgado verniz. Ai de nós quando se abre uma brecha e irrompe a verdadeira [ou animal e terrena] natureza do homem! Estamos todos enfermos do passado. Não conseguimos superar o animal. A velha besta  continua aguçando os seus dentes no sonho e acomete as grades (barrotes) da alma; todo o mundo leva pelo mundo o seu aborto...»

S. Jorge e o dragão, ou alma ligada ao seu daimon, espírito ou anjo, controlando as pulsões semi-cegas, violentas ou desarmonizadoras do inconsciente. Gravura séc. XIX.

No prólogo do livro explicara contudo, com humildade científica, que não insiste muito na certeza das suas interpretações dos sonhos, pois há mais do que uma possibilidade de explicação do conteúdo onírico, e pensa que neles «é possível que   várias verdades coexistam harmoniosamente». E assumindo-se como médico psicanalista pioneiro dirá:«este livro representa um novo contributo para a psicologia do neurótico, ao expor o facto da sua incapacidade de levar a cabo a grande missão histórica para a qual se cria chamado. Devemos a Janet o descobrimento do que os neuróticos sofrem de sentimentos de imperfeição, quer dizer, de inferioridade. Esta concepção não corresponderia à lei da bipolaridade. O Neurótico sofre igualmente uma secreta mania de grandeza, a que chamei "a grande missão histórica". O surpreendente resultado de este livro reside na comprovação de que todos os poetas revelam, em seus sonhos, com maior ou menor claridade, a "grande missão histórica". 

Nascera em 1868, no império austro-húngaro  sendo de ascendência judaica, e suicidou-se em Londres, onde vivia nos anos finais, em 1940, com uma overdose de aspirina, pelas dores que sofria fisicamente. Esta sua obra teve bastante sucesso e anos mais tarde, em 1939, uma outra obra semelhante no tema dos sonhos dos poetas mas mais tingida de beleza e espiritualidade, já que via a pulsão onírica com bases fortes na aspiração à harmonia com a Natureza e à realização da unidade com o Ser  obteve também um bom sucesso. Era a obra A Alma romântica e o sonho: ensaio sobre o Romantismo alemão e a Poesia francesa de Albert Beguin, e que esperamos  apresentar e comentar um dia destes. 

                                  

Que ambos tenham conseguido elevar as suas almas a planos bem luminosos espirituais!

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