terça-feira, 31 de maio de 2022

Um poema matinal, espiritual. Erga-se acima das narrativas e televisões, liberte-se, oriente-se, ilumine-se.

 

No meu ser há duas aves,

cada uma canta  sua melodia

e eu só tenho que discernir

por onde cada uma vai a seguir.

 

Quando eu começo a cantar ou orar

elas silenciam e põem-se  a escutar

E eu só tenho que bem inspirar e fluir

No que do meu íntimo se vai elevar.

 

Mesmo ao trabalhar estou a orar,

O meu coração está sempre a cantar,

Desde que o regue com a devoção

De dedilhar os nomes de Deus em aspiração.

 

Diante de mim passam as imagens,

ora astrais faces e movimentos,

ora banhos de luzes coloridas,

ou mesmo o vasto céu azul

de mil estrelas pontilhado.

 

Oficio no meu templo e observatório

acima das guerras dharmicas

mas as limpezas são purificações

seja em nós, seja nas nações, 

que se querem libertar das opressões.

 

Não me deixo manipular,

Por tanta informação vendida,

Ergo antes a alma ao Ser Divino 

pronunciando o Aum e outros Nomes,

E deixo que as suas bênçãos

me vão esclarecendo e orientando.

 

Cada um de nós é uma alma peregrina

Por entre mil causalidades ignoradas.

 

Ó Pedro, dá graças por poderes meditar 

E com algumas almas dialogar e unificar,

na demanda da Justiça e da Verdade

ou na comunhão do Amor e da Divindade. 

                                                                 Lisboa, manhã 31-V-2022....  Aum....

sábado, 28 de maio de 2022

Um diálogo com Agostinho da Silva, A pomba do Espírito Santo. E o poema do cedro do jardim do Príncipe Real. Primavera de 1985.

Transcrição de uma página do diário de 1985 pois, revisitando o caderno, encontrei  um pequeno registo de um encontro com Agostinho da Silva (1906-1994), valioso amigo e irmão-mestre da tradição cultural e espiritual portuguesa, com quem dialoguei muitas vezes. Preserva-se assim um testemunho da sua alma de marinheiro e descobridor de rumos utópicos mas possíveis. Que nos inspire, e muita Luz e Amor para ele.

                           

«Preparando a visita à velha Albion [para participar no European Humanity Gathering 1985, organizado pela Findhorn Foundation], venho aqui passar a casa do prof. Agostinho da Silva a hora tardia, o Sol vai-se pondo e tingindo o ar e a relva de cheiros dourados que sobem como recordações de infância às nascentes da nossa alma e fazem-nos sentir, no meio da azáfama citadina, pontos de encontro e de eternidade.

Ele está quebrantado. Sentamo-nos um pouco. Está na sua hora de descanso. Seu coração, que o serviu [quase] 80 anos, agora estremece. Dou-lhe alguns conselhos [talvez o de massajar o meridiano do coração ou estimulá-lo a partir da compressão rítmica do dedo mínimo]. Falamos brevemente. Perguntei-lhe sobre o Espírito Santo.
- "Com certeza, sem desesperança".
-  Não é exagero o V Império, não será impossível? 
- "Possível é, mas levará tempo. A pomba branca terá de atravessar muito fumo até chegar ao céu", diz, e eu, nos seus dentes já algo com falhas e num trejeito facial, vislumbro a fome e a injustiça
mundial existentes.
"Então para a pomba chegar até cá abaixo terá que atravessar muitas barreiras e dificuldades".
Sentimos um pouco então no coração este encontro inconsciente das duas forças  ou níveis [a do Espírito plenificante e a humanidade, as energias que sobrem e as que descem.]
- "Vai ser difícil mas para o bom marinheiro não custa navegar; para os outros é que será mais difícil".
Mais uns conselhos alimentares [provavelmente disse-lhe para não comer fritos, evitar açúcares brancos, diminuir gorduras animais, comer mais cereais integrais e biológicos], oferta de grissinos integrais que levava comigo, [e ele faz uma rápida] análise do Brasil. Tancredo provocando um surto transcendente [eleito presidente a 14 de Março de 1985, o já democrata e popular Tancredo Neves, na véspera da posse, foi internado com apendicite e morreu a 21 de Abril, provocando grande comoção nacional]. E aqui estou a escrever na beleza [do jardim] do Príncipe Real.» 

Transcrevo o poema dedicado às árvores e insculpido junto ao já bem centenário e tão individualizado cedro, qual coração deste aprazível jardim lisboeta, onde aos sábados se realiza um valioso mercado de produtos de agricultura biológica, tão necessária aos eco-sistemas e às pessoas, e onde o Agostinho tantas vezes passou ou esteve.

«Tu que passas e ergues para mim o teu braço
Antes que me faças mal olha-me bem.
Eu sou o calor do teu lar nas noites frias de Inverno;
Eu sou a sombra amiga que tu encontras
Quando caminhas sob o Sol de Agosto;
E os meus frutos são a frescura apetitosa
Que te sacia a sede nos caminhos.
Eu sou a trave amiga da tua casa, a tábua da tua mesa,
A cama em que tu descansas e o lenho do teu barco.
Eu sou o cabo da tua enxada, a porta da tua morada,
A madeira do teu berço e do teu próprio caixão.
Eu sou o pão da bondade, a flor da beleza.
Tu que passas olha-me bem e não me faças mal.»


Já em casa anoto no fim da página, após a visita e diálogo com Agostinho: "Boas meditações: Que não se percam o Amor sentido de quando em quando, a Sabedoria pensante e pensada  e a acção-vontade inflamando os corações em acções justas, luminosas. Eis uma Trindade equilibrada."

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Linhas de consciência e dinamismo, assinaladas num diário de Outubro de 2005 e confirmadas em Maio de 2022.

No trabalho que volta e meia faço de transcrever páginas de diários, ou de reler o que já transcrevi, para seleccionar textos com algum valor ou utilidade, deparei-me hoje com este, e, com duas ou três pequenas melhorias, partilho-o para o blogue e para algumas almas leitoras afins.
«2005. Abril, antes de saída para Paris e Bruxelas.
Algumas vezes há pessoas que atingem uma tal chama no seu coração que quem toca nelas ou se aproxima do coração descobre esse amor quase infinito e sente como seria bom partilhar dele.
É como uma chama num alto monte atraindo peregrinos, como o canto do cisne num lago, que apela à companheira.
Há como uma dor do coração já presente nesse estado de amor, quase final duma vida.
É possível até que quem amar ou se enamorar dessa pessoa possa contribuir para a sua morte, pois é como que ela estivesse já com coração tão subtil, tão fino, que se possa derreter e deixar escapar os espíritos ou alentos vitais para o céu.
O meu coração está assim ígneo, imenso, e ao mesmo tempo compassivo, extasiante e doador.
Na solidão da vida surgem-nos estas ou aquelas pessoas perante a nossa alma e para elas o nosso olhar espiritual, reflexo da nossa essência, projecta certas energias, que a voz, os gestos, a concavidade ou convexidade da aura espelham.
Prestes a deixar Portugal, quem sabe que rumos tomará meu ser neste universo tão incerto e rico?
Como peregrino partirei. Como estará meu coração, lá e quando regressar?
Quantos de nós conseguem na sua gnose diária descortinar a forma ou estado do seu coração? 
 

Regressado
Pelo menos que estejamos mais atentos, mais chegados a ele, e ele significa o ser interior que habita na nossa alma e que tem no coração a via de acesso principal.
Caminhemos então na vida sabendo adorar a Deus em nós, e a termos paciência com todas as contrariedades que encontrarmos na vida, de modo a que as pessoas que se encontrem connosco sintam que a sua felicidade e bem estar melhoraram, por estarem connosco.
Para isto é preciso não estarmos a impor aos outros ideias, nem ir contra o que pensam. Sabermos o que elas precisam ou desejam. Estarmos ligados verticalmente, e irradiarmos até mais silenciosamente.
Todos os seres estão na Terra a evoluírem e todos desejam amor, saúde, riqueza, felicidade, só que sendo os bens exteriores escassos temos de cultivar ou fazer mais culto dos bens interiores, não tão dependentes do exterior.
Que bens são eles? Os antigos chamavam-lhes virtudes, outros sabedoria, outros amor, discernimento, piedade (a docta pietas, de Erasmo), a empatia solidária e libertadora...
Escolhamos os que nos parecem ser melhores e desenvolvemo-los com discernimento e eficácia transmutadora.
E irradiemos mais amor do nosso coração, ou através da nossa alma,  para todos os seres e dimensões.
Toda a gente anda a ensinar, frequentemente pouco sabendo, uns mais por compaixão, outros mais por necessidade de ganharem a vida.
Muitas pessoas estão num ego trip acentuado e não gostam de ser criticadas ou diminuídas, ou mesmo apenas suportarem quem sabe mais.
Vibrarmos então numa energia-consciência de amor, de unidade, de fraternidade, procurando não esmiuçar diferenças e defeitos, antes dando espaço livre aos outros na grande seara, é importante.
Trabalharmos na nossa ligação à Divindade, estarmos conscientes dela mais momentos no dia a dia, sobretudo quando estamos em conversa com outros, é importante.
Deus, a fonte de amor, a amada como a incarnação do eterno feminino e da Deusa mãe, o trabalho fecundo de aprofundamento psico-espiritual e da sua transmissão a algumas pessoas, a constante religação justa e harmonizadora entre o céu e a terra, na aura e alma ora interiorizada ora interrelacionada na demanda ou comunhão da verdade e do amor, eis as linhas de consciência e dinamismo que assinalei em 11-10-2005 e confirmo em 27-5-2022.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

"Véus de Alethea", uma obra prima da poesia espiritual, de Daniela Pace Devisate. Curitiba, Kotter Editorial, 2021.

Recebemos há pouco vindo desse imenso e sempre querido Brasil uma obra poética de raro sabor, com dedicatória, de esquisita capacidade de evocação da sabedoria e amor antigos e que escorrem pelas páginas como sensibilidade e indagação, ventos e plantas, invocações e nemésis, ritmos e cores que nos desafiam e deliciam, inspiram e impulsionam, na sua poesis desvendadora de verdades.
Véus de Alethea, Véus da Verdade, em grego, ou ainda do não esquecimento (lethea), da autoria da professora e artista Daniela Pace Devisate,  é uma obra que se lê e relê, nessa aspiração que a muitos percorre de uma maior unidade com a sabedoria, o conhecimento, o amor, a plenitude, e que os seres e mitos, com as palavras, ideias e sentimentos, podem pela palavra poética causar ou despertar em nós.

                                   

Dado à luz na Editorial Kotter, num in-8º de 81 páginas, com uma bela capa e desenhos da autora, e uma valiosa apresentação contextualizante de Maiara Gouveia, até no bom conhecimento manifestado sobre o Sanata Dharma indiano e atento ao nome da autora ("no sânscrito, Sat Devi é a potência feminina da verdade. Tem como contraponto, Maha Maya, a potência feminina da ilusão") além do helenismo, os belos e poderosos poemas foram dispostos numa primeira parte que leva o título gnósico da obra: Poemas são véus que velam develam re-velam o corpo nu da Verdade, a qual contém, após epígrafes iniciais, das tradições indiana, grega, romana e lusófona, explicativas da teoria da sua obra, 31 poemas, seguindo-se a segunda e parte final, Mistérios de Eleusis, com 8 poemas onde com conhecimento de fontes antigas (e partilhei-lhe algumas) dessas celebrações ainda hoje misteriosas, Daniela intui e poetiza com profundidade e amor, beleza e sacralidade o que seria evocado e vivenciado no desenrolar de tais celebrações e iniciações.
Estamos pois diante de uma obra de sentimento e paixão, de amor e de iniciação, com alguns poemas bem clarividentes, unitivos e perfeitos...
Quais selecionar, brevemente, para inspirar talvez alguém a adquirir o belo livrinho, que leva algum rasto ou substância dos muitos livros manuais que a Daniela Pace Devisat foi compondo com o seu corpo e alma, antes de gerar o seu 1º livro individual impresso em 2020, na editora Urutau, Tantos Quartos Lunares, e por onde a sua sensibilidade e matriz feminina, lunar e da natureza profunda do Brasil milenar escorre e fecunda?

                                

Realçarei que senti na primeira parte um conteúdo mais vivencial e que nos toca mais forte que no da iniciática segunda parte, pois Daniela revisita e inspira-se em vários seres, temas e aspectos da tradição grega com grande osmose interior de tal modo que nos faz sentir, a partir da sua ressonância criativa, o que no fundo é perene nos mitos e grandes obras e que é a busca e a vivência do amor e da sabedoria, das deusas e deusas e da Unidade. 

Quais senti mais plenamente? A Prece, Rapto, Ars Erotica, Eros & Psiquê, Orfeu, Naxos, Musa, Náiade e o final Musa Pagé, bem autobiográfico.  E transcreverei, brevemente:

PRECE:

Verde Terra,
Gaia,
Templo do fértil.
Mãe temível,
escuta nossas preces,
carícias quentes
no umbigo da Vida.
 
 ***
ARS ERÓTICA
 
Do sémen sagrado
Do deus
que orvalha
a noite escura
do céu
da minha boca,
derramado,
banhando estrelas
ainda não nascidas,
mergulhadas
no gozo profundo
do vir-a-ser.
 
***
EROS & PSIQUÊ

Não machuque o silêncio,
Não desvele minha face obscura,
Não levante o cortinado
dessa grande cama.

Apague a lamparina
e cuidado para o azeite
não pingar em nossas asas.
Me abrace no escuro.
 
***
NÁIADE
 
Ele era 
como um deus rio
e penetrava
por todas as minhas 
frestas
insidioso como a água
uma gota a mais
eu vazaria na carpete
fertilizando as margens 
do apartamento
 
***
Na 2º e final conjunto de poemas Daniela adentra-nos na misteriosa tradição da iniciação nos Pequenos e Grandes Mistérios de Elêusis e embora tenha lido, meditado e sentido a tradição, dado o seu carácter ainda hoje pouco claro para além de elevado, só em alguns poemas sentimos mais o que foram eles e o que podem ser hoje para nós os ensinamentos e estados conscienciais outrora realizados, certamente difíceis seja para a Daniela seja para nós. Mesmo assim  são valiosas aproximações à Perséfona e a Coré, e testemunham bem a sua profunda shakti brasileira, trazendo para a tradição poética e espiritual portuguesa feminina e pagã novos contributos e hermenêuticas nesta sua poesia matricial, com algumas falas e orações bem conseguidas ou intuídas, tal o mais extenso diálogo Rascunhos de Perséfone. Destacarei então, além desse, Pequenos e Grandes Mistérios, Casamento Sagrado, Brimus, O Rapto de Koré Perséfone e o Testemunho da Musa.  
Anote-se o excelente último parágrafo da crítica ou apresentação final de Anna Apolinário, já que acolheu a poesia também como como obra corporal, de performance e de magia, algo que a Daniela tem feito e partilhado nos meios digitais, sintetizando muito bem, tanto mais que a conhece pessoalmente, o que lateja nas páginas: 
«Poemas-preces, evocam iniciações, conjuros, enaltecem a dimensão mágica e ritualística do fazer poético, cada verso, um pequeno feitiço posto em nossos lábios, o livro que temos em mãos, clama para ser lido em voz alta, cada palavra sorvida com volúpia e encantamento. A cada página, um véu a ser tocado, um convite ao desvelamento do corpo nu da verdade, o fogo delicioso do poema como "testemunho da musa", a que com a língua revela "um país totalmente novo". Assim, Daniela nos concede seu livro-deleite, de sua odisseia lírica é impossível sair ileso(a), é certo que seremos feridos de beleza, tocados pela lâmina incandescente da poesia»
Transcrevamos então agora dois breves poemas, da última parte, a mais iniciática, referindo mesmo a misteriosa bebida de ervas medicinais algo estabilizadora e iluminadora Kykeon: 
 
PEQUENOS E GRANDES MISTÉRIOS
 
Banho de mar
oferendas
jejuns

bebi o ciceon e quebrei os vasos
manipulei os objectos áureos
efígies das deusas
um falo e uma vulva, talvez
pronunciei as palavras sagradas
participei dos ritos de fertilidade
exultei primaveras

desci às escuras profundezas
e avistei os campos de luz eterna»
 
***
TESTEMUNHO DA MUSA
 
Nas palavras habita o Ser
abro a porta com a língua
e lá está um país
totalmente novo.»

terça-feira, 24 de maio de 2022

A estrela, símbolo do espírito, na "Iconologia" de Cesare Ripa, obra prima da sabedoria do Renascimento.

 A obra de Cesare Ripa, Iconologia, o vero Descrittione dell’imagini universali cavate dall’antichità et da altri luoghi, per reppresentare le virtù, vitii, affetti e passione humane, arti, discipline, humori, elementi..., 1593, foi durante séculos uma das fontes principais da sabedoria dos antigos, abrangendo a mitologia, a religião, a etnografia, a ética e moral, os costumes, as ciências. Mas, ao congraçar ou juntar, a partir da 2ª edição de 1605, imagens originalmente desenhadas para tornar visíveis, imagináveis os conceitos desejados, apoiados em citações de autores clássicos,  exemplos e explicações contextualizantes, tornou-se não só um convite à contemplação e portanto a uma ligação com os mundos espirituais mas uma enciclopédia portátil de todo o saber e imagem (e por ordem alfabética de temas ou conceitos). Tal como o era o livro Adágios de Erasmo,  embora sem imagens e baseando-se apenas nas vozes ou ditos de toda a Antiguidade, certamente bem contextualizados e até relacionados ironicamente com a actualidade, numa sabedoria crítica   humanista hoje muito perdida na cultura e informação tão superficializada e manipulada da generalidade das pessoas...

A obra de Cesare Ripa (1555-1622), Iconologia, no frontispício em cima já na edição ampliada veneziana de 1645, assumia um título bem ousado pois apelava ao enlaçamento do Logos (divino) e do Ícone (vera efígie), e embora sendo doutrinária, ética e espiritualizante, visava sobretudo instruir os artistas (e reconhecem-se hoje as influências em muitos pintores) com simbolismos apropriados aos seus desígnios e, ao conter tanta informação das religiões e sapiências antigas, filósofos e padres da Igreja, apesar das suas confissões de conformidade ao Catolicismo (como se pode ver na nota de rodapé final), sentimos uma  vontade grande de Cesare Ripa de fazer passar a sabedoria perene que se encontrava no paganismo, como que oferecendo uma arte-ciência mnemónica e operativa, numa senda mais iconográfica do que Marsilio Ficino e Paracelso tentaram mais esotérica e magicamente, e que ligaria o visível e o invisível, a mente criativa ou contemplativa e o espírito e os seres espirituais, ganhando até uma certa perenidade no teatro inconsciente ou subconsciente humano, onde as imagens e arquétipos predominam...
O sucesso da obra foi muito grande, pois para cada qualidade, virtude, paixão, vicio, aspecto do génio, arte, ciência e actividade humana, bem como da natureza celestial e terrestre, com os seus elementos, humores, estações e fenómenos, havia as correspondentes imagens belas, misteriosas, desafiantes, com boas informações e exemplos e assim qualquer escritor, poeta, pregador, orador, pintor, escultor ou gravador podia fortalecer-se com sabedoria milenária, desde o antigo Egipto, inspirar-se mais universalmente e, logo, melhor realizar as suas obras e seus desígnios seja estéticos, seja instrutivos, seja imortalizantes...
Esta breve introdução é uma aproximação contextualizante às três primeiras imagens com estrelas na Iconologia de Ripa e tentar compreender o que elas simbolizavam ou indicavam, conforme o que ele escreveu, citou ou então que nós podemos deduzir e intuir, ou por vivência pessoal conhecer, saber...

O 1º ícone com a imagem de uma estrela, como a podemos ver e ler na edição de 1645, italiana, surge na representação da Alma racional e beatífica, e mostra-nos uma mulher com um vestido que Cesare Ripa diz claro e luzente, o vulto coberto por um véu finíssimo e transparente, com asas aos ombro e uma estrela sobre cabeça.

                                

E escreve: «Sendo uma substância incorpórea e imortal, representa-se assim para ser compreendida e é desenhada graciosissimamente por ter sido feita pelo Criador, o qual é a fonte de toda a beleza e perfeição à sua semelhança, e a vestimenta é clara para demonstrar a pureza e a perfeição da sua essência» ou, se quisermos, do seu íntimo ser e existir.

                                     Aiwass Journal - Ancient Egyptian Star Ceiling (Luxor) "The Five Pointed  Star, with a Circle in the Middle, & the circle is Red." Liber AL vel  Legis, 1:60 | Facebook 

Quanto à Estrela propriamente diz que com ela, «conforme Piero Valeriano, no livro 44 dos seus Hieroglifos, os egípcios significavam a imortalidade da alma». É pouco e é preciso uma boa hermenêutica para discernirmos que ele está dizer que a estrela representará o espírito imortal que coroa a alma. De facto, a estrela representa o espírito,  o núcleo e centelha divina presente no mar da alma e no corpo, pois na realidade somos corpo físico, alma de emoções, sentimentos e pensamentos e, finalmente, espírito, centelha divina, aqui abonada pela tradição egípcia, como imortal. E perguntamos, ao iniciar esta investigação que outras características ou qualidades ele discernirá, aceitará ou proporá quanto ao espírito, ao longo do livro.
Hoje sabe-se que os egípcios consideravam a estrela, que neles surge
nos hieróglifos como de cinco pontas,  tanto uma imagem das estrelas que havia no céu físico e no do além, no mundo Duat, como também o símbolo do ba ou seja, a manifestação espiritual de cada ser que em si era visto como pluridimensional. 

                                             

Quanto às asas, Piero Valeriano não aprofunda muito, pois diz  que elas nos ombros denotam a agilidade e espiritualidade, como também as duas potências intelecto e vontade.
Ora podendo elas sem dúvida simbolizar, e bem, tal quanto à alma de
um modo geral, elas são sobretudo representações fidedignas das energias que irradiam das almas mais luminosas, e que sendo raios podem então ser vistas clarividentemente como asas, de forças coloridas e irradiantes ou mesmo elevantes. Cada ser tem as suas asas, e se ele não as deixa cortar ou atrofiar demasiado pelos seus erros e hábitos, e pelas paranóias que a sociedade lhe impõe ou sugere, tais os noticiários de televisões, então consegue melhor manter-se em acção criativa e amorosa nos seus projectos e ideais, nas suas aspirações e forças ascendentes, ou relações horizontais e harmonizadoras.
O conjunto da imagem é harmonioso e, bem contemplado, pode
induzir a consciencialização do que existe na alma subtilmente (e algo inconscientemente) e que está na imagem emblemática representado subtilmente e com intuitos operativos, dinâmicos, transformadores...

                              

Uma 2ª representação da Estrela encontramos no ícone do Bom Augúrio, com a seguinte singela discrição: «Um jovem que tem uma estrela sobre a cabeça, nos braços um cisne e está vestido com a cor verde, que significa augúrio, pois as ervas quando verdejam, prometem boa cópia de frutos. Piero Valeriano [1477-1509], [Hieroglyphica], no seu livro 44, diz que aqueles que antigamente operavam os augúrios confirmavam que a estrela era sempre sinal de prosperidade e sucesso feliz.»
Nesta interpretação da visão da estrela sobre a cabeça de uma pessoa discerne-se um
sinal auspicioso. Mas numa hermenêutica mais espiritual teremos de discernir se é uma visão clarividente que alguém teve e que afirma tal, ou se é apenas um dado de tradição ou mesmo até da boa estrela que se diz seguir os mais afortunados na vida, tal como por exemplo o persa Saadi, de Shiraz, aonde estive em peregrinação, a dado momento da sua obra Bostan conta.
Uma terceira (e há mais) representação da Estrela na Iconologia de Ripa encontramos na imagem do conceito
Conjunção das Coisas Humanas e Divinas:

«Desenhar-se-a uma pessoa de joelhos com os olhos virados para o Céu e que humildemente sustem com ambas as mãos uma cadeia de ouro pendente do céu e de uma estrela. Não há qualquer dúvida que com o testemunho de Macróbio e de Luciano, a corrente mencionada significa  uma conjunção das coisas humanas com as Divinas, e um certo vínculo comum com o qual a Divindade, quando lhe agrada e atrai a si e leva a mente nossa ao Céu [ou interioridade espiritual], donde nós com a nossa própria força não podemos sair, de modo que isto quer significar que se a nossa mente se governa com o querer divino, poderá atar-se com a cadeia pendente do céu e de uma estrela. E esta é aquela força de inspiração Divina, de cujo foco Platão quis que todo o ser humano seja participante a fim de dirigir a mente ao Criador e a erga ao Céu, mas convém que tal seja conforme a vontade divina em todas as coisas e que oremos a Sua Divina Majestade que nos faça dignos da sua santíssima graça.» 

Possa a catena aurea, a corrente dourada, que liga o mundo celestial e divino e o terreno e humano, ou a estrela e a alma, ser vivificada pelo amor sincero e a força justa nossas que assim fertilizarão e harmonizarão melhor a Terra e a Humanidade...

Nota de rodapé: «Do cisne diz Virgílio no livro primeiro da Eneida: ni frustra augurium vani docuere parentes. aspice bis senos laetantis agmine cycnos, aetheria quos lapsa plaga Iovis ales aperto.... "Mas é não frustradamente nem em vão que o sacerdote augurador ensina os pais a observarem o voo de doze cisnes alegres, aves sagradas de Júpiter e que planarão e aterrarão no local auspicioso". Mas a nós cristãos não nos é lícito crer na vaidade dos augúrios.»

Possam as melhores intuições face à súbita contemplação de cisnes, pombas, aves, nuvens, estrelas ou céu nos inspirar e guiar,  e na comunhão com os elos perenes da Sabedoria humano-divina, sermos mais plenamente o espírito, a estrela ou centelha divina em nós... Aum!

domingo, 22 de maio de 2022

Expandir a visão do actual conflito europeu: a declaração compreensiva do líder islâmico da Rússia, o sheik Ravil Gainutdinov, a 21/5/2022.

Nestes tempos de tão grande dilaceramento de pessoas, famílias e terras por tantos conflitos de visões, posicionamentos e opiniões face ao que se passa na Ucrânia, é sempre importante tentarmos abranger com perspectivas várias o que se sente e pensa no restante mundo e não seguirmos só o que os meios de informação ocidentais, na sua quase totalidade alinhados ou mesmo vendidos à narrativa do império do dólar e da sua coligada União Europeia. Compreendermos então, por exemplo, como é que outros países, povos e religiões estão a ver e a reagir ao conflito  Rússia versus Ucrânia, União Europeia, NATO e USA será importante para sairmos de uma excessiva ocidentalização, que chega nos meios de informação a ser quase uma ditadura de uma só narrativa.  E é precisamente o caso que foi hoje partilhado na grande informação internacional, lembrando-nos que o mundo não é só  a Europa  e os Estados Unidos da América e os seus coligados, mas que existe todo o Médio Oriente, Oriente e Extremo Oriente, África, América do sul, e no caso, a partir do posicionamento religioso dos seres, no caso os do Islão, que são neste mundo ocidentalizado tão laico, ateísta ou mesmo algo desalmado ou diabolizado, um sinal de que o acesso ao  mistério Divino continua a ser demandado ou dedilhado...

Assim, a TASS, um dos mais fidedignos e respeitados canais de informação na Rússia, noticiou no dia 22 de Maio que Ravil Gainutdinov, o  líder espiritual  dos Muçulmanos Russos e Presidente da Administração Espiritual Islâmica da Rússia, afirmara no sábado, 21, que o mundo  islâmico compreende a  decisão do  Presidente Russo Vladimir Putin de manter uma operação militar  na Ucrânia. 

                                  

As palavras exactas   deste respeitado sheik ou mestre islâmico, líder das comunidades islâmicas na Rússia, nascido em 1959, mufti na mesquita-catedral de Moscovo e figura prestigiada no mundo do diálogo inter-religioso, sendo em 2007 um dos 138 signatários da Carta Aberta Uma palavra entre vós e nós, dirigida ao Papa Bento XVI e aos cristãos, apelando ao respeito mútuo, diálogo e ao aprofundamento da espiritualidade comum às religiões,  dadas ao canal Rossiya-24 numa entrevista, são muito valiosas, tanto mais que Vladimir Putin e o povo russo estão muito ligados a  Jesus Cristo e ao Cristianismo na sua vertente Ortodoxa, com um Patriarca Cyril também muito ao lado de Vladimir Putin e da sua tão difícil e trágica decisão de iniciar a operação invasora antes que fosse tarde demais, tanto mais que desde o golpe de Maidan, de 2014, levado a  cabo pelos anti-russos, fomentado pela USA, e que depôs o presidente eleito e amigo da Rússia Viktor Yanukovych, os bombardeamentos aos ucranianos russos ou pró-russos  das repúblicas do Leste já tinham causado 14.000 desincarnados antes do seu terminus natural de vida, para além do muito sofrimento e terror.

 A suas palavras foram as seguintes: "Todo o mundo Islâmico, e o mundo Árabe, acolhem a decisão do nosso presidente com compreensão. Eles aspiram à vitória das políticas da Rússia e não têm de modo nenhum interesse na hegemonia de um só país, e na criação de um mundo unipolar». 

«É por causa disto que nenhum país no mundo Árabe impôs qualquer sanção à Rússia. Isto é muito importante. Mesmo membros da NATO, mesmo sujeitos a pressões, abstiveram-se de impor sanções contra o nosso país»

«Isto significa que o mundo Islâmico tem um profundo respeito pelo nosso país e pelos nossos Islâmicos».

Fiquemos pois com uma visão mais completa do vasto campo unificado de energia consciência em que todos e tudo está envolvido e oremos para que as causas e causadores do conflito se esfumem ou desapareçam rapidamente e que o mundo dominado por um só império dê lugar a um multipolar, dialogante, justo, fraterno, saudável e até mais espiritual e em Amor

sábado, 21 de maio de 2022

Rabindranath Tagore, um poema do "Gitanjali" (Where the mind is without fear) em cinco versões, e com a voz dele num belo documentário do swami Tadatmananda.

Rabindranath Tagore (7/5/1861-7/8/1941, Calcutá), a grande alma bengali, o poeta maravilhoso da natureza e da espiritualidade, o artista de teatro, música e pintura genial, que recebeu o prémio Nobel da Literatura no Inverno de 1913 pela sua obra Gitanjali, Cesto de Flores, ou Oferenda Lírica, teve entre nós grande sucesso, não só na sua obra literária como também como pensador, como lutador pela liberdade, e destacaram-se entre os seus admiradores ou discípulos um grupo de estudantes indianos ou de amantes da Índia, que em Coimbra mas não só dinamizaram a tradição cultural e espiritual,  e que em artigos, traduções e obras partilharam a vida e obra de Rabindranath Tagore. Vários textos e efemérides deste blogue estão consagrados seja a Rabindranath  seja a tais seres, e nomearemos apenas Adeodato Barreto, Telo de Mascarenhas, Lúcio de Miranda e Tudela de Castro, tal como referi recentemente no artigo sobre Tudela de Castro e Shantiniketan, onde há muitos anos eu também peregrinei. 

Ora ao pesquisar sobre  Tudela de Castro encontrei na net um artigo interessante sobre a recepção ou tradução de um poema importante e sempre actual de Tagore, tanto por Tudela de Castro, como por Adeodato Barreto e pelo brasileiro Gasparino Damata, pelo que decidi juntar a minha visão-tradução, que será então a última da série, embora viesse ainda a transcrever a versão bastante livre de André Gide em francês. Será valioso para um comparativista. Já com o artigo quase pronto, numa sincronia bem luminosa, fui encontrar um documentário sobre Rabindranath Tagore que contém este poema (publicado em 1913, como a sua aspiração-visão da Índia já livre do colonialismo inglês) na voz dele próprio, quando o disse em 1917 na abertura do Congresso Nacional Indiano em Calcutá, com voz patriótica e fermente, e que poderá ouvir no vídeo no fim a partir de  16:30, embora seja muito bom todo o documentário realizado e partilhado por  Swami Tadatmananda, do Arsha Bodha Center, no seu canal de youtube, com a sua voz serena.

Do Gitanjali, poema XXXV,  pelo despertar libertador do seu país.

«Where the mind is without fear and the head is held high,
Where knowledge is free,
Where the world has not been broken up into fragments
By narrow domestic walls,
Where words come out from the depth of truth,
Where tireless striving stretches its arms towards perfection,
Where the clear stream of reason has not lost its way
Into the dreary desert sand of dead habit,
Where the mind is led forward by thee

Into ever-widening thought and action,
Into that heaven of freedom, my Father, let my country awake.»

A versão francesa de André Gide, que leio num exemplar da 2ª edição, de 1914, é valiosa, mas lá está o erro de traduzir mind por esprit, que aliás os outros também cometeram e que nem corresponde ao bengali original nem ao próprio inglês de Rabindranath. A fotografia contém um artigo de jornal da época e uma das folhas inseridas, certamente com alguma carga sentimental, por entre a intimidade secreta do interior do livro, mas que infelizmente nos escapa..

"Là ou l'esprit est sans crainte et où la tête est haut portée;
Là où la connaissance est libre;
Là où le monde n'a pa été morcelé entre d'étroites parois mitoyennes;
Là où les mots émanent des profondeurs de la sincerité;
Là où l'effort infatigué tend les bras vers la perfection;
Là où le clair courant de la raison ne s'est pas mortellement égaré dans l'aride et morne désert de la coutume;
Là où l'esprit guidé par toi s'avance dan l'élargissement continu de la pensée et de l'action -
Dans ce paradis de liberté, mon Pére, permets que ma patrie s'éveille."
 

 A versão do Tudela de Castro provém duma conferência na Sociedade Teosófica de Portugal, proferida no  dia 11 de Maio de 1923, acerca de Rabindranath Tagore e de Shantineketan, o seu centro pedagógico,  e publicada em livro. E oiçamo-lo:

«Lá, onde o espírito está sem receio e a fronte erguida;
Lá, onde o conhecimento é livre;
Lá, onde o mundo não foi dividido por estritas paredes;
Lá, onde as palavras dimanam das profundezas da sinceridade;
Lá, o esforço infatigável estende os braços para perfeição;
Lá, onde a razão clara não se afastou mortalmente para o árido e triste deserto da convenção;
Lá, onde o espírito por ti guiado se alarga na expansão continua do pensamento e da ação;---
Nesse paraíso de liberdade, meu Pai, permite que a minha pátria acorde.»

         

No 1º número da Índia Nova, dado à luz pelo Instituto Indiano  na Universidade de Coimbra, fundado por Adeodato Barreto (1904-1936)  e Telo de Mascarenhas (1899-1979), saiu outra tradução, por Telo Mascarenhas, reproduzida em cima e que transcrevemos:

«Lá onde a fronte se ergue altiva e o espírito vive tranquilo;
Lá onde o conhecimento é livre;
Lá onde o mundo se não fragmentou ainda entre estreitas e acanhadas muralhas;
Lá onde as palavras se brotam das profundas da sinceridade;
Lá onde o esforços incansável estende os braços para a perfeição;
Lá onde a corrente límpida da Razão não sofreu ainda um letal desvio para o árido e sóbrio deserto do costume;
Lá onde espírito guiado, por Ti,
Avança para o alargamento contínuo do pensamento e da acção;
Nesse paraíso de liberdade, meu Pai, permite que a minha Pátria desperte !»

                                        

 No Brasil, Gasparino Damata traduziu Gitanjali e portanto este poema em 1969, para a  Coordenada Editora, de Brasília. Oiçamo-lo:

 «Onde o espírito vive sem medo e a fronte se mantém erguida;
Onde o saber é livre;
Onde o mundo não foi dividido em pedaços por estreitas paredes domésticas;
Onde as palavras brotam do fundo da verdade;
Onde o esforço incansável estende os braços para a perfeição;
Onde a fonte clara da razão não perdeu o veio no triste deserto de areia do hábito rotineiro;
Onde o espírito é levado à tua presença em pensamento e acção sempre crescentes;
Dentro desse céu de liberdade, ó meu Pai, deixa que se erga a minha pátria.» 

Finalmente a minha versão:

«Onde a mente não tiver medo e a cabeça for mantida alta,
Onde o conhecimento é livre,
Onde o mundo não está partido em bocados por estreitos muros domésticos,
Onde as palavras brotam da profundeza da verdade,
Onde o esforço incansável estende os braços para a perfeição,
Onde a corrente clara da razão não perde o seu caminho
Na temível areia do deserto dos hábitos mortos,
Onde a mente é por Ti impulsionada para pensamento e acção sempre mais abrangentes,
Neste céu de liberdade, minha Fonte Divina, que o meu país desperte.»
 
Saibamos libertar a alma ou psique nossa, e contribuir para a da Pátria-Mátria, das ignorâncias e narrativas mentirosas, injustiças, opressões e medos. Despertemos fraterna, criativa, búdica e libertadoramente, e em aspiração-comunhão da Divindade e seus elos mais luminosos, tal a Ishta devata e as grandes almas, como Rabindranath Tagore. Aum... Que nos inspirem e abençoem...

                     

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A mensagem pedagógica de Rabindranath Tagore e "Shantiniketan", por Jaime Tudela de Castro e comentada em vídeo por Pedro Teixeira da Mota.

Rabindranath Tagore, o sábio indiano de Bengala, que foi mesmo prémio Nobel da Poesia em 1913, poucos meses depois do sucesso mundial da sua obra Gitanjali, traduzida por si mesmo para inglês, ganhou nos anos e  décadas imediatas grande voga na Europa e em Portugal, entre nós  destacando-se alguns seres na sua recepção e divulgação, ou porque eram indo-portugueses, goeses em geral, ou porque a espiritualidade e beleza da vida e obra do grande escritor e poeta lhes tocava. 

 Destacaremos como os pioneiros, pelos seus escritos e publicações, Adeodato Barreto  que na sua obra a Civilização Hindu,  de 1935 (reeditado pela Hugin em 2000, bem contextualizado), destaca "Rabindranath Tagore, o apóstolo da união espiritual e do intercâmbio euro-asiático, cria e mantém em Shantiniketan, uma universidade internacional procurando cimentar a fraternidade e a mútua compreensão das duas grandes civilizações", Santana Rodrigues, n' A Índia Contemporânea, de 1926, Telo de Mascarenhas, com Rabindranath Tagore e a sua mensagem espiritual, de 1943, Lúcio de Miranda, Índia e Indianos, de 1936, onde há um extenso capítulo dedicado ao rishi, ou poeta, e Tudella de Castro, com o seu Shantiniketan, que iremos abordar. Anote-se que a revista do movimento democrático Seara Nova, fundada em 1921, teve a sua Secção Indiana, onde alguns deles colaboraram, e  serviu mesmo de editora de suas obras, tal a Civilização Hindu, em 1935, de Adeodato Barreto. De realçar ainda no 1º número do jornal Índia Nova, publicado em Coimbra, em Maio de 1928, uma carta original e um poema de Rabindranath Tagore (traduzidos por Telo de Mascarenhas) a preencherem a 1ª página. 

Quanto a Jaime Tudela de Castro, o autor da obra, sabemos  pouco, e do que escreveu apenas me chegou ao conhecimento a palestra proferida no dia 11 de Maio de 1923 na sede lisboeta da Sociedade Teosófica em Portugal e que foi dada à luz uns meses depois em livro num in-8º oblongo de 65 páginas, ilustrado com a fotografia de Rabindranath Tagore, partilhada por nós ao alto, e que podemos assim ler e anotar, gravar e comentar.  

                            

Anoto contudo os valiosos dados biográficos de Jaime Tudela de Castro, apresentados por Júlio Cortez Fernandes no seu blogue Aguadouro, no qual menciona ter nascido em 20-VIII-1878, na Pampilhosa da Serra, e ter vindo a licenciar-se em Lisboa em 1903, ter colaborado na revista Branco e Negro e ter sido valioso médico pediatra em Lisboa, em clínica privada e na Santa Casa da Misericórdia, com vasta obra social nos lactários e estivadores, tendo casado como Dona Alice Macedo Tudela de Castro, mais nova do que ele 17 anos, e vindo a morrer sem descendência, em 19-I-1944, em Lisboa. É do blogue de Júlio Cortez Fernandes que extraímos ainda, agradecendo de antemão, a fotografia de Jaime Tudela de Castro.


Intitulada Shantiniketan (O Asilo da Paz) agrega três aproximações: A Epopeia Hindu, a Pedagogia Heroica e Shantiniketan. Na 1ª apresenta a sua visão da Índia como o local onde o ser humano primevo se desenvolveu e onde grandes almas espirituais elevaram os seus cantos ao Ser omnisciente e a Agni, o Fogo Espiritual Supremo,  donde o "grito" ou lema Ex Oriente Lux, foi iluminado e corroborado por várias obras que enumera, dos Vedas e Upanishads à Bhagavad Gita e ao Lalita Vistara budista, e por três seres fundamentais Rama, Krishna e Buddha.
Algumas das fontes onde bebeu Jaime Tudela de Castro para esta palestra e artigo estão mencionadas no decorrer dela, seja livros de Rabindranath Tagore, seja autores franceses e ingleses, admiradores ou discípulo do genial escritor e artista, embora haja neste 1º capítulo alguns sinais de que influências francesas, talvez de Saint Yves de Alveydre, e logo do seu mestre Fabre d'Olivet, estarão por detrás da visão histórica dos primórdios civilizacionais e religiosos da Índia, que Tudela debuxa à laia de introdução.
No 2º capítulo Tudela de Castro vai aproximar-se bem de "Tagore na
vida. Sua Pedagogia. Poeta. Músico. Sua Filosofia. Sua Religião. Seu Patriotismo", e poderia ter acrescentado o Pintor, pois também desenhou e pintou bastante, tal como o seu irmão Abindranath Tagore. 
 
Uma pintura de Rabindranath Tagore, em geral bastante catárticas das tristezas que atravessou.
Depois de traçar a sua vida, nascido a 6 de Maio de 1861 do grande sábio Devendranath Tagore, numa família principesca, culta, espiritual,   bastante sofrida pela morte da mulher e dos dois filhos mas com grande sucesso como poeta, intelectual e figura moral reconhecida universalmente, um mestre, Tudela Castro vai discernir com sensibilidade os originais valores pedagógicos vividos por Rabindranath Tagore, e diz-nos deles: «Duas coisas são acima de tudo necessárias aquele que quer compreender a função do educador: uma natureza infantil  que possa vibrar em uníssono com a criança e captar-lhe a simpatia, e uma afeição paternal que lhe alimente a chama viva - principal e única manifestação desse ser frágil - e que se denomina curiosidade, aspiração pelo saber», valorizando em seguida a consciência libertadora do poeta:«eu creio num princípio de vida e na alma do ser humano acima de todos os métodos. Julgo que o objecto da educação é a liberdade de espírito, que não pode ser obtida senão pelo caminho da liberdade - ainda que esta tenha os seus riscos e responsabilidades, como a própria vida.» E complementa esta liberdade no conhecimento com uma ética viva e amorosa de harmonização com o que nos envolve: «Pode-se adquirir o poder pela ciência, mas é pela simpatia que se chega a uma plenitude de vida. A melhor educação não é aquela que se limita a informar-nos, mas a que nos harmoniza com tudo o que existe».  Esta empatia ou amor com que devemos olhar e sentir tudo o que nos rodeia, mormente as maravilhas na Natureza e dos seres, é sem dúvida muito importante de ser relembrado cultivado constantemente, pois é fácil e habitual deixar-nos prender-nos mentalmente em preocupações e conflitos e perdermos a irradiação natural do peito e do coração espiritual...

                                          A força do oriente vinda da poesia e das canções de Rabindranath Tagore

Quanto ao divórcio entre a informação intelectual e a vida espiritual, tão predominante na educação ocidental, lemos na gravação do vídeo partes importantes, restando-nos acrescentar as ideias certeiras de Jaime Tudela de Castro quanto ao segredo do sucesso de Rabindranath Tagore na educação das crianças ser o da simpatia por elas e a vontade de as tornar felizes, de modo que na escola de Shantiniketan «o medo e o constrangimento são preteridos pelo esforço de proporcionar-lhe todas as liberdades tendentes a facultar-lhe o despertar de boas energias existentes em todas elas em maior ou menor grau».
É bem valioso o resumo que Tudela de Castro faz do Jardineiro do
Amor, uma das obras primas de Rabindranath Tagore e onde ele canta e aprofunda o amor em si, entre o homem e e mulher e entre os humanos e os animais e a Natureza. Quanto a Gitanjali, Oferenda Lírica (da qual Fernando Pessoa possuía um exemplar, com uma anotação-sublinhado inicial e alguns esboços de tradução de poemas), e Sadhana, ou A Realização da Vida,  diz-nos que «são o testemunho mais concreto da sua constante comunhão com o Brahman», a Divindade. Já a Casa e o Mundo, também traduzida entre nós, considera-a como um magistral romance de crítica aos nacionalismos fanáticos, e finaliza sintetizando esta segunda parte da conferência e livro com um dos famosos poemas de Gitanjali, no qual partilha a sua visão da liberdade para a sua pátria-mátria, e que brevemente apresentaremos e comentaremos neste blogue.

A 3ª e última parte, a mais pequena, intitula-se A Escola de Tagore ou a vida do ashram e, embora na gravação de vídeo tenhamos lido e comentado alguns aspectos, acrescentaremos agora ainda em transcrição dois parágrafos valiosos: um no qual Rabindranath Tagore, acerca da metodologia de sucesso que um professor de 19 anos tinha com os alunos, escreveu: «ele lia-lhes coisas que a si próprio interessavam, sabendo perfeitamente que nunca é indispensável que as crianças as compreendam à letra e em todos os detalhes, mas o que o que é preciso é que os seus espíritos [e diríamos almas] acordem».
No texto logo a seguir  Jaime Tudela de Castro reflecte o seu amor às crianças, tanto mais que era pediatra, e  é bem valioso para quem
se interessa pelo despertar e orientar das jovens almas: «Efectivamente uma das inovações de Shantiniketan é a forma como ali se administra o ensino: a maior parte dos conhecimentos são adquiridos pela acção  indirecta do sub-consciente.  O extracto duma carta do Poeta diz: "Nós fiamo-nos mais na influência da Natureza sobre o sub-consciente, nas associações de ideias que o ambiente suscita e na vida diária de adoração que levamos, do que em qualquer esforço consciente para ensinar." E isto porque Tagore está convencido "que na criança a mentalidade inconsciente é mais activa do que o intelecto consciente..." que a necessidade fundamental é haver "uma atmosfera de cultura e não um método formalista de ensino".» E de facto podemos dizer que mesmo nos nossos dias, estas atmosferas harmoniosas e inspiradoras faltam bastante em muitos locais e instituições onde se ensina e aprende, onde se lê e dialoga, até porque muita gente liga pouco ao ambientes psíquicos e naturais em que está ou é envolvida, por falta de  autoconsciência e discernimento activos.
Rabindranath Tagore ensina de preferência os seus alunos a
aprenderem directamente pela contemplação das belezas da criação, deixando os livros para segundo lugar, pois como ele diz, " o livro tem os seus limites e os seus perigos. No período inicial da sua educação é sobretudo à Natureza que criança deve ir buscar o seu conhecimento.»
Concluamos: «Qualquer que seja o ideal dos habitantes do ashram,
pois entre eles há pessoas de religiões diferentes, uma única voz as une na sua oração suprema: "Shantam, Shivam, Advaitam", Paz eterna, Bondade Eterna, Único!», e que nos traduziríamos por Paz (shanti), Beatitude ou Felicidade (Shiva, embora Shiva signifique também um dos três Deuses da Trimurti, e auspicioso e consciência pura e beatífica) e Unidade ou não dual (Advaita)!

Anote-se que em três das vezes que compulsei ou li este livro de Jaime Tudela de Castro sobre a abóbada da Paz de Rabindranath Tagores, anotei-o, deixando-lhe assim uma valiosa marginália. Eis a da segunda, que hoje já 15/08/22, subitamente descobri e transcrevi: «Om, hoje 10 de Junho, Domingo, anotando na agenda [diário] para a nova viagem os escritos sobre Tagore, abro-te aqui, ò livro, ò incarnação passada. Cá estamos de partida, a 16 de Junho de 1995, para a Índia. Entre este escrito e o anterior quatro viagens à Índia, certa evolução espiritual, mas em quê? Desapego, não ilusão, aspiração a Deus, os livros [de inéditos de Fernando Pessoa] feitos e sobretudo uma capacidade maior de iluminação, que espero actualizar fortemente agora na Índia. Escrevo ao sol da Av. de Sintra 923, [Cascais]. Penso ir a Shantiniketan, vibrar lá, escrever e um dia voltar aqui a esta página e acrescentar as impressões e impulsões adequadas para mim e para ti. Om.»... 

19.VIII. 20023. Espero cumprir tal voto e  passar para o computador um dia destes, já que estive mesmo em Shantiniketan, alguns diálogos registados no diário manual dessa peregrinação à Índia em 1995.

E eis o vídeo acerca do livro, com suas partes lidas e aqui não transcritas: