quinta-feira, 16 de abril de 2020

"O Poeta, essa Ave Metafísica" ou Teixeira de Pascoaes, vida, obra e a serra do Marão, por Sant'Anna Dionísio.

                                               
    Em 1953, Sant' Anna Dionísio (1902-1991 e com quem convivi bastante nos seus últimos anos na Terra), publicava na revista Seara Nova o seu 15º livro (o 1º sendo de 1929), intitulado O Poeta, essa Ave Metafísica, consagrado a Teixeira de Pascoaes e enriquecido com alguns desenhos e fotografias que fizera dele. Dos doze capítulos, transcrevemos alguns passos bem valiosos. Do 1º, intitulado Pascoaes e o Saudosismo:
 «Daqui a 100 anos o nome de Pascoaes será seguramente invocado como um dos mais altos ímpetos de ansiedade metafísica da poesia portuguesa desta século» p.7
«A despeito de todos os silêncios, a obra de Pascoaes será descoberta pelos vindouros e por eles admirada como uma das mais intensas expressões de angustia transcendente, de inspiração e de ascese, de uma verídica alma» p.7
«Poeta concreta e placentariamente preso à sua paisagem natal, mas com os olhos da alma sempre posto no que podermos chamar o noumenal não só dessa paisagem mas de todas as paisagens, Pascoaes é como Antero e Camões, um espírito ávido do que está para lá do telúrico. Não menos que um ou outro, Pascoaes deu original expressão a este sentimento constante na alma do homem de que o ser autêntico não está decerto no plano do visível mas do invisível. Sua palavra, embora presa à terra – «as tais frágas, árvores e fontes», a que alguns críticos tão despicientemente se referem, - não visa nem sugere senão a alma abscôndita dessas mesmas coisas. Sua inspiração é, enfim, sem descanso, acordada e exaltada pela transvisão do que na realidade há de fantasmático» p.8.

Ora a "alma abscôndita das coisas" pode ser vista em três níveis principais: 1º as imaginações e analogias que possamos fazer sobre as suas características visíveis ou perceptíveis, seja por instrumentos científicos seja pelas sensibilidades das pessoas e aqui Pascoaes foi um mestre de exaltada imaginação; 2º a história e interioridade que as coisas e seres tem dentro de si e que podemos sonhar, imaginar, intuir ou ver psiquicamente; 3ª o ser subtil, ou espírito da natureza, que anima uma parte qualquer da manifestação, e que está presente na tradição poética e em Teixeira Pascoaes como o deus Pan, os silfos, fadas, sátiros. Ser subtil que no ser humano é tanto a alma como o espírito, este praticamente invisível e incognoscível pela quase totalidade dos seres.
A maior parte dos leitores e apreciadores de Teixeira de Pascoaes, e Natália Correia no In-Memoriam de Pascoaes é bem forte nisto, exageram esta capacidade de osmose e captação das essências de Teixeira de Pascoaes, que embora imensa tinha sobretudo uma base imaginativa, sensitiva e poética mas não a visão espiritual, a clarividência, o olho espiritual aberto. Algo do qual Pascoais se aproxima contudo quando diz, e Natália Correia tanto apreciou, «esse olhar misterioso que brilha no mais distante da nossa intimidade», e que bem gostaríamos de saber o que ele viu, sentiu, discerniu sobre tal olhar, ou olho...
 «Uma vez compreendida na sua mais íntima originalidade e significação, a poesia da saudade constituiu uma autêntica metafísica.
O sentimento de saudade, constantemente invocado e por vezes convertido pelo poeta em ontológico avatar – quando não em personalizada divindade -, não é senão uma face da ideia, persistentemente dita e redita em seus poemas, de que o mundo dado pelos sentidos tem para os seus olhos um simples valor de realidade onírica e de maneira alguma de verídica realidade.
A cada momento, nas Sombras, no Maranos, no Regresso ao Paraíso, aflora essa ideia; a de que e o mundo físico, ou melhor a paisagem, não passa, na verdade, do velho e indostânico véu de maia.
A genial beleza e profundidade de alguns cantos viverá para sempre nessa intuição.
Se o poeta frequentemente se repete e faz declinar a força de comoção dos seus arroubos, - deixá-lo; Homero por vezes também dorme e faz dormir. De resto, nunca a altitude espiritual de poeta se mediu pelos seus próprios psitacismo [loquacidade] ou ecolálias [repetições automáticas] de si mesmo, mas pelos voos inconfundíveis dos grandes momentos em que o seu canto parece subir, de graça, em vertical, no sentido do puro inefável e da verdade pura». p. 9.
Muito original Sant'Anna Dionísio, e julgo que ainda não foi apontada esta sua relação entre a saudade e a visão indiana  Vedanta que concebe a manifestação do Cosmos como Maya ou Maia, como ilusão, como um véu, como um sonho, que urge penetrar ou dissipar para se ver a verídica realidade, Brahman ou Atman.
No 2º capítulo do Poeta, essa Ave Metafísica, Sant'Anna desenvolve a ideia discutível de que as paisagens, montanhas, campos, rios só adquirem significado pelo que os poetas sentiram e imprimiram nelas, transcrevendo uma experiência iluminativa baptismal de Pascoaes: 
«Houve um momento da minha vida em que eu estremeci, diante da paisagem, como se ela própria houvesse estremecido... em que as pedras e os montes me falaram. E fiquei a ser esse instante. Aquele relâmpago fixou-se no meu espírito».
Desse transe mediúnico e baptismal nasceu o seu inconfundível misticismo panteísta.
Todo o poema Maranos, - de todos os de Pascoaes, o mais rico de inefável - é votado à expressão dessa mútua catálise, do Poeta e da Montanha. Nele, o espírito de Pascoaes não se cansa de invocar e inquirir a alma que está, ou visiona, oculta nas coisas, tendo constantemente os olhos presos no vulto escuro e sério daquela serra».
Talvez seja exagerado pensar-se que esse momento tenha definido ou intensificado muito essa natural osmose ambiental que o poeta foi desenvolvendo com o Marão, ou mais ainda a sua tendência de misticismo panteísta, esta ainda algo subordinada (sobretudo nas obras em prosa e doutrinação, nomeadamente n' A Minha Cartilha), à sua compreensão da Bíblia e dos conceitos de bem e de mal e de Divindade que desta e do cristianismo posterior brotam.
«O próprio nome Maranos», (pelo qual, no poema, ora se designa o caminheiro contemplativo, ora o vulto telúrico que se ergue ante os seus olhos) - que significa senão a sínteses do Poeta e da cósmica sombra que o despertou? Verdadeira musa e primordial fonte da inspiração da sua poesia, paradoxalmante panteísta e platónica, - a Montanha foi, naquela ascensão baptismal, quem ensinou para sempre o Poeta a identificar o seu ser com o ser íntimo e plural da «realidade» ou seja, com a essência noumenal da Paisagem. Assim a Montanha lhe deu genesíaco sobressalto: anch'io sono poeta, e o Poeta, por sua vez, a espiritualizou e imortalizou nos seus versos brancos.» 
Realcemos esta sensibilidade de Sant'Anna Dionísio às subidas das montanhas e à osmose com elas ou não tivesse sido ele a vir ajudar e continuar Raul Proença, autor de descrições meticulosas de todas as terras e cidades de Portugal, em viagens descritas e ilustradas nos famosos Guias de Portugal, editados pela Fundação Gulbenkian  partir dos anos 40 e que fizeram a delícia de muita gente no seu formato de bolso de viajante. Com Sant'Anna peregrinei eu, levados pela Dalila Pereira da Costa e seu feitor Acácio aos templos românicos do Entre Douro e Minho.
       «Ao seu muito estimado Amigo e Confrade Pedro Teixeira da Mota oferece como    singela  lembrança, José Sant'Anna Dionísio. 9 de Maio de 1989.»
"O caminheiro contemplativo", excelente expressão a recebermos; caminhar mantendo o vulto da montanha no olhar corporal e sobretudo anímico; e sentir quão as montanhas, e no caso o Marão, se tornam fontes inspiradoras, eis certamente ensinamentos que ou já conhecemos, o que se passa comigo graças a Deus e à Dalila Pereira da Costa que me facilitava as suas casas junto ao Marão, ou que devemos cultivar, peregrinando mais as serras e montanhas...
 Tem certa verdade a ideia de Sant'Anna Dionísio  que somos nós que  de certo modo espiritualizamos ou imortalizamos a Natureza, tal como já escrevera umas linhas antes: «Perante a montanha do Marão - uma das mais belas e severas do Norte de Portugal - análoga pergunta pode ser feita: - Que era essa montanha antes de Pascoaes? Era simplesmente uma grande barreira telúrica (uma volumosa massa de saibro, de granito e de xisto) a separar as orgulhosas alturas de Trás-os-Montes das velhas terras de Basto. Quis porém o destino que, na fundura verde de um dos seus vales, nascesse uma criança queum dia, ao abrir os olhos, depararai com esse misterios vulto. Essa criança viria a ser o cantor de Maranos e das Sombras. Por uma recíproca e maravilhosa acção de presença, a Montanha catalizou o Poeta e o Poeta espiritualizou a Montanha».
Todavia não nos devemos esquecer que elas em si mesmas são sacras, foram consideradas por muitos povos sagradas por se sentirem ou reconhecerem nelas presenças subtis ou  forças. Por exemplo, sabemos como muito próximo do Marão, se encontraram lápides da época romana dedicadas ao deus da montanha Larouco. Pena Pascoaes não ter estado nessa época e ter vislumbrado se realmente um poderoso deva ou espírito da natureza estava presente e recolhia tais oferendas e cultos, ou se foram mais os sacerdotes ou camponeses da religião que invocavam e cultuavam a Divindade sob esse nome ou faceta.
    Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, uma das mais valiosas amizades portuguesas
O III cap. da obra, intitulada Visita a Pascoaes, datada de Outono de 1949, e onde descreve a casa e as memórias que Pascoaes narrava das visitas do vizinho Leonardo Coimbra, termina assim: «Setenta anos de convivência de umas pedras e umas árvores com um Poeta! Setenta anos de conversa de uma alma com uma Serra! Não, porém, uma conversa tácita - como tantas terá havido por esse mundo fora, no decorrer dos séculos - mas uma troca de perguntas e respostas entre a ansiedade de um poeta de infatigável poder interrogativo, de assombrosa força de captação do Inefável e a mudez misteriosa de luz e de trevas em que a sua alma se debate»
Possamos nós, sintonizando com esta linguagem e visão algo maniqueísta ("mudez misteriosa de luz e de trevas em que se debate") mas viva e espicaçante, que Pascoaes nutria e Sant'Anna Dionísio aceita, manifestarmos e sermos cada vez mais a Luz, por entre as trevas ou névoas obscuras que nos possam circundar ou tentar, e assim as dissipando ou iluminando...

Sem comentários: