sábado, 18 de abril de 2020

"A Minha Cartilha" (8ª p. ), de Teixeira de Pascoaes, lida e comentada por Pedro Teixeira da Mota.. Com vídeo.

Nesta 8ª e penúltima leitura  comentada d' A Minha Cartilha, de Teixeira de Pascoaes, finalizado em 1951 pouco antes de partir da Terra e de certo modo o seu testamento filosófico-religioso, marcadamente cristão (embora ateu e teísta, como ele se definia paradoxalmente, certamente marcado pela sua incursão como originalíssimo biógrafo histórico-filosófico-religioso de S. Paulo, S. Agostinho e S. Jerónimo) abordamos os aforismos XLVI a LII. Como A Minha Cartilha ainda não está acessível na web, transcrevemos dois aforismos, comentando-os agora brevemente: 
 XLVII: «O homem, como criador e anarquista, exige a liberdade de criar; como criatura é comunista e sujeita-se ao estabelecido. Os corpos são irmãos; as almas, não... Há o trabalhador criador e o trabalhador conservador, o que produz o pão espiritual e o que produz o pão material, - o que se vende nas livrarias e o que se vende nas Padarias: duas palavras que rimam;e, nesta rima, se irmanam musicalmente, como também os irmana o serem ambos alimento. E por isso cantei na minha mocidade:
A pena é irmã da enxada
A página de um livro é terra semeada.»

Comentário: - Sabemos como são forçadas estas caracterizações de escolas e sistemas politicas, nomeadamente identificando o anarquista ao criador de pão espiritual enquanto o comunista seria o do pão material, pois em cada ser, mesmo libertário ou partidarizado,  inúmeras  tendências e capacidades (criativas, conservadoras ou destrutivas) coexistem. Também a irmandade mais do que nos corpos é nas almas que se sente, e nelas e nas suas capacidades, abnegações e afinidades é que se apura e nos encanta. Muito bela, sem dúvida, a ideia de que a página dum  livro, e acrescentaremos bom, em especial, é terra semeada, pois há muitas que são antes de terra infértil, ou mesmo queimada, quer os leitores se apercebam ou não dos efeitos na sua terra interior ou anímica.
Sabermos então discernir o que mais merece a nossa atenção e amor e o que menos merece é fundamental, de modo a que o que entra em nós seja fecundo e o que saia de nós seja também luminoso e amoroso, em tudo nos aproximando o mais possível de um despertar da consciência na verdade, na harmonia e para com a Divindade.
 Transcrevamos ainda o aforismo LII já que nele Pascoais caracteriza alguns dos grandes seres, de Anaxágoras e Platão ao nosso Frei Agostinho da Cruz, da sacra serra sufi e cristã da Arrábida, como almas de cósmica memória que conservam dentro de si a lembrança de Deus, "só Deus antes de ser Criador", algo sem dúvida muito raro e valioso, e que Pascoaes não aprofunda, naturalmente dado o nível elevadíssimo ou primordial que se trata. Caracteriza depois estas almas mais acessas como estando contidos na sua primeira alma, na imortal, em que está presente o Criador, numa expressão sua e cristã, que meditada pode-se aperfeiçoar e revelar bem luminosa:
«LII - Porquê um Anaxágoras? Um Platão? Um S. Fracisco de Assis? Um S. Jerónimo na Cálcida? Um S. António da Tebaida? Os dois Agostinhos, o da Tagasta e o da Arrábida? São almas originais, que se lembram de Deus só Deus, antes de ser Criador e Criatura, ou antes do Mal e do Bem. E são almas de cósmica memória, como certas flores que guardam, nas suas pétalas, a recordação da Flora, tão viva, que podemos contemplar a Deusa! Ò seres da perfeição, todos contidos na sua primeira alma, na imortal, em que está presente o Criador! Como estais na mortal ou redentora, ou no alto do Calvário. Não é a morte a glorificação da vida, a eterna paz de Deus? Enquanto a Bacante agita o facho acesso nas trevas, a Santa dorme nos braços de Jesus...»
  Comentários: Este é um aforismo muito rico de ideias, analogias e quiçá intuições, e embora já comentado na inspiração da leitura gravada adicionarei uma certa dualidade, com o Eterno Feminino, não muito presente nesta obra, surgindo com a Deusa Flora, que seria o princípio, arke e logo arquétipo, ideia, matriz ou fonte da beleza das Flores e que tais almas mais luminosas conseguiriam contemplar. Flora é como que Gaia, a Grande Deusa, Deméter, faces femininas da Divindade, que subitamente é trazida à liça da sua batalha pela compreensão do Universo e da Divindade. Contudo, o aforismo terminará com uma nota também de opostos femininos: uma Bacante, sacerdotisa dos cultos dionisíacos e báquicos que agita um facho nas trevas, imagem e descrição que sob uma aparência de ser uma crítica pode ser antes o reconhecimento de uma busca intensa de conhecimento por entre as trevas seja da noite seja da nossa ignorância. No polo oposto está a S. Teresa, ou outra já que ele preferiu prudentemente não a nomear, que adormece nos braços de Deus, expressão tão suave  se vista que meramente dormir mas que tem também a mesma matriz da bacante ou do amor desejo aspiração que se entrega ao amado, ao mestre. Sabemos aliás como ao longo dos séculos esta mística da sublimação da energia sexual em energia de amor de união espiritual se desenvolveu em várias tradições e como, por exemplo, as religiões, cristãs, islâmicas e indianas se destacam por tantos cantos e devoções e que proporcionam a aproximação à Divindade na forma ou ser adorado, invocado, seja Krishna ou Jesus, seja a luz ou o amor do espírito e da Divindade.
Oiçamos então a Cartilha comentada em Abril de 2020...

                  

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