quarta-feira, 15 de abril de 2020

"A Minha Cartilha" (7ª p. ), de Teixeira de Pascoaes. Com texto de Natália Correia e comentada por Pedro Teixeira da Mota

A 7ª leitura comentada (e gravada) dos aforismos ou máximas contidos em A Minha Cartilha, de Teixeira de Pascoaes  é desta vez antecedida na passagem para o blogue por um excerto da penetrante interpretação  que Natália Correia (ela também um elo importante da Tradição Espiritual Portuguesa) lhe faz no valioso e extenso In-Memoriam no centenário do seu nascimento, 1979 (onde colaboraram trinta e sete personalidades, de Miguel Torga, Joaquim de Carvalho e Joaquim Paço d'Arcos a José Gomes Ferreira, Ilídio Sardoeira e  Sant'Anna Dionísio), donde passo a transcrever alguns parágrafos, com breves comentários:  
 «Gnose e Cosmocracia em Pascoaes: 
Pascoaes não é biografável. Cercou-se de névoas. Elas imprimem incorporalidade ao seu contorno. Impossível encarcerá-lo na carnalização que dá corpo a uma biografia/ Porque foi Pascoaes um construtor de névoas? O questionador que ele era da natureza oculta das formas pedia a estas anamorfoses que, distendendo o tecido das aparências, o tornam ténue, dando-lhe a transparência que permite ver o dentro esmagado pela densidade dos corpos. Vestidas de névoas, as coisas são os seus fantasmas. A estes o poder de dizer o indizível das coisas. Ouviu-os Pascoaes, e em transmitir-nos essas vozes foi o poeta do indizível».
Excelente visão de Natália embora exagere na capacidade de Pascoaes de ver o dentro das coisas. Não era um clarividente, ainda que possa ter tido certas visões e o que nos transmite do interior das coisas e seres depende muito da sua sensibilidade. É um conhecimento subjectivo. Não nos diz o indizível das coisas, mas sim o que ele pressentiu, pensou, intuiu, imaginou delas. O que muitas vezes não seria real. Não era um ser dotado da capacidade de contemplar no seu olho espiritual a memória dos lugares, como Dalila Pereira da Costa, de algum modo sua discípula, teve algumas vezes em relação ao Porto e a certas zonas do Douro, mas ainda assim sempre subjectivas. Com efeito dada a imensidade de informação que qualquer coisa ou local tem do seu passado e aura, apenas se nos revelam certas imagens, causadores de sentimentos, e impulsionadoras de compreensões e realizações.

Passamos ao 3ª parágrafo.
«A vivência poética foi para o poeta das névoas uma indagação desse "outro plano não revelado ainda à nossa inteligência, mas entrevisto pela inspiração, por esse olhar misterioso que brilha no mais distante da nossa intimidade". Estas suas palavras (A Minha Cartilha) definem o seu discurso à luz de uma gnose que transcende  a qualidade estética e literária da poesia. Como exercício espiritual iniciático, a sua poética só aceita os ingredientes artísticos quando estes  convergem com a apreensão do segredo das coisas a revelar-se na consciência do poeta. O refinamento estético funciona então como um elemento necessário a uma estrutura que se ergue pela força da sabedoria. O belo é a imagem que o olho misteriosa da mais remota intimidade contemplou. Jamais é belo pelo belo. Tem uma colocação gnóstica»
Este paragráfo, de novo muito belo, profundo e exaltante da poética de Pascoaes, refere  A Minha Cartilha, e por isso a escolhemos para se afeiçoar a esta série minha de comentários, tanto mais  porque embora tendo estado apenas uma vez com ela, foi bom o curto diálogo, sob a égide Agostinho da Silva e do Espírito santo, num congresso na Biblioteca Nacional.  Refere da Cartilha a explicação que Pascoaes dá para alcançar o segredo das coisas, e que Natália Correia muito atenta transcreve «a inspiração, olhar misterioso que brilha no mais distante da nossa intimidade, considerando portanto que o seu discurso é feito à luz de uma gnose, de um conhecimento, que transcende a poesia normal. Natália Correia chama-lhe mesmo "exercício espiritual iniciático", e bem na sua dimensão de origem interior e posterior transformação artística que se subordina a essa dimensão de verdade interior.
Certamente que em Pascoaes houve porém uma visão das coisas dos seres, das ideias, dos princípios que não teve necessariamente o auxilio desse olho, já que ele apenas intermitentemente em nós se abre e nos revela o interior dos seres ou das coisas, ou o distante no passado ou no futuro, ou os mundos subtis, de que as névoas e fantasmas de Pascoaes são adivinhações, pressentimentos, imaginações, por vezes mais certeiras outras não tanto. Algo disto se passa também nas suas reconstituições do passado e de grandes figuras como S. Paulo. S. Agostinho. S. Jerónimo, Napoleão e Camilo. Quanto não teve ele que ler, quanto não teve ele de imaginar, quanto terá ele acertado ou errado nas suas interpretações?
Quanto aos planos espirituais e divinos, como temos estado a ver nas leituras anteriores, Pascoaes ficou demasiado condicionado pela tradição cristã e face às suas fraquezas e contradições Pascoaes ora conseguiu ver  bem e discernir a verdade, ora se deixou enganar ou iludir. A nós de exercermos o discernimento do espírito....
 Podíamos ficar-nos por aqui, embora certamente o restante do texto de Natália Correia seja valioso e mereceria ser discutido, aprofundado. Mas transcrevamos ainda assim a parte final,  bem optimista e idealista (e certamente mitificante), escrita nos tempos tão desabrochantes de 1979:
«O génio que se manifesta em Pascoaes, excedendo a literatura, a filosofia e a religião, é sobretudo oracular. Indica-nos o ponto matricial onde se cruzam as grandes forças da integração no Todo. E só nos cabe perguntar como o poeta suíço Albert Talhof: 
Saberia Pascoaes que tinha no seu génio a porta aberta para um Terceiro Testamento?
Pascoaes responde-nos com a sua poesia. Ela mana de uma ultraconsciência anunciadora da Cosmocracia que os sábios de Princeton já apontam pela via do conhecimento científico assumido como teologia».
Onde vai este sonho de uma cosmocracia da ciência assumida como teologia, quando o que vemos é a degradação ou mesmo falência da sociedade moderna cada vez mais desumanizada pela tecnologia e por uma ciência (feita de milhões de cientistas em lutas constantes e pouco respeitando a verdade) e em nada respeitosa do Cosmos ou tendo em conta os sábios que conseguem ver com o olho espiritual a interioridades e as finalidades dos seres e das sociedade. Quanto ao 3ª Testamento, ou 5º Evangelho, sabemos quão ilusórias são tais valorizações e expectativas e contentemo-nos, como se diz no aforismo XLII, em sondar melhor a página branca inicial da Bíblia, ou Livro, feita dos livros todas as religiões e filosofias, ou mais modestamente, como queria Antero de Quental, que na última página em branco dela vamos nós escrevendo as nossas realizações espirituais e humanas
Oiçamos então os aforismos ou máximas XLII, XLIII e XLIV, com os comentários que fiz na manhã desta quarta-feira, 15.IV.2020.

                        

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