quinta-feira, 23 de abril de 2020

Dia do Livro de 2020. Reflexões sobre a bibliofilia e a biblioterapia em Fernando Pereira Tomás.

 Um dos aspectos mais valiosos ou fascinantes do livro, e em especial nestes tempos modernos em que estão a ser postos em causa pela leitura crescente pela internet, reside tanto na sua beleza como na sua durabilidade, quase perenidade, pois embora aparentemente frágeis, e por isso protegidos até por encadernações mais ou menos belas ou sólidas, resistem às vidas de sucessivos possuidores, que vão deixando-os para outros, seja algo vencidos seja desprendidos e felizes, com todo o enriquecimento realizado.
Com efeito, tal como a encadernação, também a preservação, o adicionamento de recortes de jornais, de marcas de posse e ex-libris, de sublinhados e anotações, valorizam bastante o livro tanto na sua materialidade como na sua alma e história subtil, que as entrelinhas e margens desvendam mais ainda quando estão bem anotados e permitem por essa  marginália um enriquecimento da tradição cultural e espiritual a que esse livro e seus leitores estão associados.
Faço esta reflexão ao findar de um dia do inverno, quando estive a ajudar um livreiro amigo a "limpar" numa casa a biblioteca de um comum amigo, bancário, licenciado, sociólogo, e bibliófilo, nomeadamente pelo seu incessante amor aos autores que coleccionava, aos temas que estudava e ao estado de conservação das obras, partido agora para a outra margem da vida, tendo os dois filhos,  em homenagem ao seu amor aos livros, juntado ao seu corpo físico já exangue um exemplar dos Lusíadas de Camões, que ele amava e que assim ardeu ao mesmo tempo que os despojos mortais do pai bibliófilo.
Deixou ele, após ter vendido anteriormente em leilão os principais, ainda assim algumas centenas de livros para chegarem a novos donos e de preferência leitores, o que nem sempre é fácil, sobretudo quando muita da obra é em francês, ou de autores e assuntos menos em voga...
Orei por ele no seu apartamento em Algés, onde o visitara algumas vezes, embora ele fosse mais frequentador e dialogante nos alfarrabistas da Calçada do Combro (nomeadamente da Eclética e da Antiquária do Calhariz), enquanto agradecia poder comprar a um preço modesto várias obras, para ler,  dar e eventualmente algumas vender.
Os milhares de livros que ele leu, e que foi comprando e vendendo,  nestas actividades conviviais prolongando a biblioterapia da leitura,  servir-lhe-ão também para a sua vida no além, eis uma questão que ponho, tendo várias vezes discutido-dialogado com ele, algo agnóstico e reticente às minhas transmissões espiritualizantes.
 Ou será melhor dizermos que ele serviram mais para os seus estudos e gostos em vida, e para melhorar a sua qualidade ética e mental, já que embora forte intelectualmente, culto na literatura francesa, russa e portuguesa, na filosofia e na sociologia das religiões e dos costumes, tradutor mesmo de uma obra grande sobre a história das religiões (para a qual se documentou bem, tendo a colecção Mythes et Religions quase completa e que me vendeu já no fim da vida), apesar de tudo  isso não acreditava em Deus, nem no espírito nem na vida post-mortem, mesmo com as nossas animadas discussões enquanto eu ajudava as catalogações do José Manuel Rodrigues e da sua filha Catarina, da livraria do Calhariz, ao elevador da Glória. Teremos então de ser agora nós a enviar-lhe algumas energias em orações, meditações e lembranças...
« - Desperta, és um espírito imortal, abre-te aos seres espirituais, avança para a Divindade.
- Consigas tu, ó Tomás, despertar a tua alma do semi-sono da ignorância, pois és um espírito imortal e com um corpo espiritual...
 - Possam os melhores ensinamentos que leste e traduziste da história das religiões virem ao de cima como luzes na tua alma e possa algum dos fundadores ou mestres das religiões e tradições derramar uns raios de luz divina na tua alma, contribuindo para o teu despertar e avançar nos planos subtis do Universo.»
De qualquer modo, os livros que vamos lendo, se bem sentidos e assimilados, deixam sementes e frutos na vida post-mortem. Todos nós iremos um dia partir, levaremos consciente ou inconscientemente algumas destilações do que lemos;  e deixaremos de algum modo para os outros  tais instrumentos de saber e cultura, de beleza e realização espiritual. 
Assim, saibamos trabalhá-los bem enquanto dura a luz do dia, antes que sejamos arrebatados e lamentemos não ter realizado o principal, ou lido os que mais gostaríamos ou partilhados os mais importantes, estabelecendo-se quem sabe boas ligações perenes...
Possa esta breve homenagem aos livros e ao intelectual, investigador e  coleccionador Fernando Pereira Tomás, concluída hoje 23-IV-2020, #DiaMundialdoLivro 2020, inspirá-lo, ajudá-lo, iluminá-lo.
 E a nós de seguirmos o conselho perene de um autor que o Tomás apreciava bastante, tendo-o encadernado bem em muitas das suas obras, como vemos na imagem. Ei-lo, um mantra de Antero de Quental e nosso e, no fundo, também da essência dos livros: «um contínuo impulso para a verdade e o bem»...

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