sábado, 25 de abril de 2020

O halo de tocante quixotismo de Antero de Quental, por Sant'Anna Dionísio. Texto e gravação.

Sant'Anna Dionísio, a 11 de Novembro de 1933, na ilha da Madeira, onde foi professor liceal durante cinco anos, proferiu uma conferência intitulada Tentativa de definição e explicação do que talvez seja permitido chamar o fracasso de Antero, a qual veio a ser inserida num livro, Atlântidas, dado à luz na cidade invicta portuense, em 1940, a capa azul clara tendo um apontamento seu de uma visão crepuscular do Cabo Girão. E foi tal conferência (certamente proferida com a sua delicada e sibilina voz), lida e comentada em vídeo (que se encontra no fim) a 25 de Abril de 2020, em Lisboa, por Pedro Teixeira da Mota que, valorizando também Antero de Quental e tendo convivido bastante com Joaquim Augusto Sant'Anna Dionísio (1902-1991), resolveu homenageá-lo  e à sua dedicada e subtil amizade a ou com Antero de Quental (1846-1891).
 Transcrevamos o primeiro e um ou outro dos parágrafos para tornarmos o belo texto acessível pela web.
«A admiração não é idolatria nem pasmo: é a exprimível compreensão dum elevado valor. Se queremos pois, dar alguma prova de admiração por um homem tentemos explicar, em primeiro lugar, o merecimento da sua obra e, em seguida, o valor dos seus próprios merecimentos íntimos, virtuais. Porque, se é certo que em alguns casos as circunstância se concertaram com tal animosidade que a obra é apenas um sinal de que era possível. A explicação do valor de Antero de Quental implica, parece-nos, precisamente um desses problemas: para o exprimir não é bastante a invocação da sua obra; é necessário perscrutar os indícios das virtualidades espirituais que a custo e insuficientemente se traduziram. Doutro modo nem se atinge o significado do que mais vale na sua obra fragmentária nem a compreensão dum dos mais importantes elementos do seu drama»
Em seguida explica como no restante da sua obra a filosofia está presente, nomeadamente nos seus «dois ensaio filosóficos, realizados, um, para pôr em evidência as insuficiências das explicações naturalistas dominantes e, o outro, para apontar as tendências convergentes o pensamento europeu (...) Daí resulta que, embora a cada momento vejamos invocá-lo como poeta-filósofo, pouco são os possuidores da consciência de que Antero não deve ser designado como filósofo simplesmente por ter coroado a beleza das suas poesias de impressionantes sugestões metafísicas, mas por alguma coisa mais»...
Mostra-nos Sant'Anna Dionísio então como desde os 17 anos a palavra Filosofia começa a aparecer com frequência nos seus incipientes escritos, mostrando a sua vocação filosófica, embora Antero seja em geral visto apenas como poeta e como revolucionário e líder de movimentos, e como  ele próprio na  carta autobiográfica de 14-V-1887 a Wilhelm Storck desvalorizara tais dispersões: «Consumi muita actividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de jornais, em folhetos, em proclamações, em conferências revolucionárias».
 E continua assim Sant'Anna Dionísio (à esquerda na fotografia): «Por estas confidências se vê que Antero, no fim da sua vida, via ter sido um desvio do seu destino as sucessivas experiências e veleidades de acção imediata, muito ingénuas algumas, e todas fracassadas em que se envolvera.»
Aqui permito-me discordar de Sant'Anna, pois não as vejo como fracassadas e, seguindo dois valiosos preceitos orientais expressos na Bhagavad Gita, "yoga é habilidade na acção", Yogah karmasu kaushalam II.50, e "tens direito à acção mas não aos seus frutos", ou no original "tens o direito de realizares os teus deveres mas não a apropriares-te dos seus frutos", II,47, considero tais intervenções  valiosas seja para os participantes seja para a história da época. E mais que admitir que os frutos fossem insignificantes valorizo o estoicismo e o desprendimento de Antero de Quental, que foi na sua vida um claro exemplo vivo dessa qualidade yóguica denominada vairagya, que conheceria porventura até de textos budistas que lera ou das suas conversas com o seu grande amigo orientalista Guilherme de Vasconcelos Abreu. Antero foi, embora sem votos, um peregrino livre da Verdade ou, como se diz na Índia, um sannyasin...
 Todavia, Sant'Anna reconhece algo do valor da acção, embora desvalorizando a sua essencialidade em Antero, declarando logo a seguir: «Bem sabemos que são essas experiência sinceras e ingénuas (e sempre mal sucedidas), que dão à vida de Antero o halo de tocante quixotismo sem o qual não há significação e beleza transcendente na vida dos homens. No entanto, não acreditamos que essas experiências respondessem às suas mais íntimas solicitações, ao que podermos talvez chamar a intelectual essência da sua personalidade».
"A intelectual essência da sua personalidade", diz Sant'Anna, certo, há-a, mas é bem menos importante que a "plena manifestação da sua essência individual" (com o seu nível espiritual acima do intelectual), essa que surge por vezes em nós em "íntimas solicitações", ou voz da consciência, e que tinha de se exprimir tanto na acção como na reflexão, escrita, contemplação, adoração. 
Discordamos também da citação que faz em seguida de Oliveira Martins, também ela bastante conservadora, e no vídeo explico bem porquê, e como devemos ler com uns grãos de sal a antítese posta em destaque por Sant'Anna: «O gosto ascético da reflexão já em Coimbra nele se manifestara descontente e superior a essas fugas da sua personalidade para a acção», pois tal balancear é natural e necessário em todos os seres e em especial aqueles que para além da vida instintiva, gregária e profissional da acção sentem também tanto a necessidade de se recarregarem internamente, recolhidamente, como também de responderem ou sintonizarem o apelo perene do auto-conhecimento, da busca da verdade e da religação espiritual e Divina.
Cerca de 30 minutos de leitura, das páginas 67 a 71 das Atlântidas, com comentários. Pode ser que goste...
                          

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