domingo, 19 de abril de 2020

"A Minha Cartilha" (9ª p. fim), de Teixeira de Pascoaes, lida e comentada por Pedro Teixeira da Mota

Nesta 9ª e última leitura comentada d' A Minha Cartilha, de Teixeira de Pascoaes, finalizada em 1951 pouco antes de partir da Terra e de certo modo o seu testamento ideológico, marcadamente cristão (embora ateu e teísta, como ele se definia paradoxalmente, certamente marcado pela sua incursão como originalíssimo biógrafo histórico-filosófico-religioso de S. Paulo, S. Agostinho e S. Jerónimo) abordamos os aforismos LIII a LX, oito aforismos finais verdadeiramente  ricos  de jogos de opostos e de analogias e intuições fecundas. Escolher dois ou três para transcrevermos não é fácil, e vamos assim resumi-los brevemente, intercalando os três.
 No aforismo LIII fala da sublimação do desejo, da sexualidade e como por tal actividade geramos outros filhos psíquicos, criações literárias, que são irmãos das nossas ideias e sentimentos. São fantasmas ou espectros que podemos ver interiormente e seriam as últimas formas de vida ou já próximas da Divindade. Há nisto um exagero mitificante, porque os mais próximos de Deus serão os espíritos celestiais mais elevados, e nos humanos os mestres, grandes seres, santos e santas. 
Estas personagens literárias são mais como arquétipos, ou podem estar associadas a arquétipos ou modelos psicológicos, de tal modo que podem funcionar nas psiques e nos sonhos, ao consubstanciarem qualidades que assim podem aparecer em visões e sonhos para advertir ou fortalecer as pessoas.
Podemos pensar que como criador literário, admitisse que o seu Marânus e Eleonor chegassem a tal imortalidade, tal como Hamlet e Ofélia, ou mesmo Simão e Mariana (não a Alcoforado...), personagens criadas por Camilo Castelo Branco no Amor de Perdição. Esperanças ou ilusões desvanecidas com a crescente transitoriedade ou efemeridade dos autores e obras no século XXI, embora possamos admitir que um camiliano possa sonhar com Simão e Mariana ou um pessoano com Alberto Caeiro, embora creia que seja raríssimo e bem difícil.
No fim há uma crítica à secura e intelectualismo escolástico, na sua materialização e simplificação esquemática do aristotelismos pois, como. diz cada vez mais a importância e riqueza seja da imaginação seja da alma são reconhecidas como determinantes da percepção da realidade. Oiçamo-lo:
«Ó Santa Teresa! Ó saudosa de Deus! Mas a saudade é o desejo sem posse! É a tragédia do Desejo insatisfeito, que se torna espiritualmente fecundo. Satisfeito, gera animais da nossa espécie; insatisfeito, gera fantásticos filhos, em que a Humanidade se continua idealmente, - um Orestes e Efigénia, um Hamlet e Ofélia, um Dom Quixote e Dulcineia, um Simão e Mariana...
Irmãos das nossas ideias e sentimentos, representando o Reino Psíquico, além do Bio, são as últimas formas da vida ou já próximas da Divindade, mas ainda sensíveis ou reais, porque se fixam na memória, como qualquer árvore ou penedo. E, se sonharmos com o Dom Quixote, vemo-lo com os nossos olhos, que tanto olham para fora como para dentro; tanto abrangem o panorama objectivo como o subjectivo, ou o dos animais e o dos fantasmas. E quem distingue, depois dos escolásticos, entre si mesmo e o seu espectro?»
                                         
                   Um D. Quixote de la Mancha, muito segundo a visão de Teixeira de Pascoaes
No LIV, limitando demais os seres espirituais a criações subjectivas psíquicas ou mesmo cerebrais, considera que Deus será o mais alto da escala psique, na sua inefável transcendência, na ideia que não podemos ter dele qualquer imagem dele, a qual seria pagã, num sentido algo negativo. Penso que está a criticar também as imagens de Deus que fizemos, inclusive a do Pai. Contudo Pascoaes vai longe de mais no sua iconoclastia pois eu penso que apesar da sua transcendência e infinidade a Divindade pode manifestar-se em imagens nas psiques humanas que a procuram correctamente e amam, ou seja pode mostrar proporcionalmente à dimensão humana a sua luz esplendorosa, o seu amor, ou as suas faces de deuses ou deusas conforme a crença do seu adorador perseverante.
Oiça-mo-lo: «Entre os seres espirituais que tem, como paisagem habitável, o nosso crânio, essa esfera, onde os fenómenos vivos são interiores, e não exteriores como na esfera terráquea; e tem, na Arte, a galeria dos seus retratos, esse Museu do Prado, atarantado pela Fealdade do Goya, tão sublime como a Beleza de Rafael, Deus ocupa, é claro, o mais alto da escala psíquica. E é Ele, no mais longínquo da sua inefável transcendência, reflectido em nossa alma. E é ele na ideia que não fazemos ainda do seu ser, e não na sua imagem impossível, que de resto, as imagens são pagãs: Deuses imaginários só os da Fábula.» Aqui Pascoaes falha quanto à admissão da possibilidade das teofanias da Divindade em deuses pagãos ou hindus...
                                         
                            Platão e Aristóteles, ou a Academia de Atenas, por Rafael
No LV repete a linha bíblica de Adão humanizador e do Jesus redentor como os modelos pelos quais nos devemos esculpir e declara tanto o helenismo como o judaísmo como sendo pré-cristãos, incompletos, incapazes de nos ajudarem a convergir no divino sem o amor manifestado por Jesus.
No LVI valoriza de novo a dualidade, sem o mal o bem não poderia surgir, por vezes mesmo miraculosamente, quando por exemplo o perseguidor fanático anti-cristão Saúl (na estrada de Damasco, capital da Síria, hoje graças ao apoio russo e iraniano finalmente quase liberta dos terroristas lançados e apoiados pela USA, Arábia Saudita, Israel, Turquia e União Europeia), se torna o apóstolo das gentes, quase que o fundador do catolicismo e que Pascoes tanto estudou, amou e biografou.
No LVII irrompe de novo a sua caracterização algo irónica ou provocante da realidade com alguma verdade:«Vivamos, enfim, no: Faça-se a luz! e no Amai-vos uns aos outros! Faça-se a luz é o grito do anarquista. Amai-vos uns aos outros».
                                         
No LVIII voltamos de novo a Paulo, apóstolo de Jesus embora a dualidade seja mitigada, pois admite no fundo que o helenismo represente a luz da verdade e a beleza, enquanto o cristianismo seria o calor da verdade ou a Bondade. E subitamente, embora sabendo-se que Pascoaes valorizou a dança como forma de oração, primordial até, introduz Isadore Duncan (1828-1927), que certamente o tocou, fazendo-a uma sacerdotisa ou bacante (tanto mais que se inspirou muito na dança antiga grega apreensível nos museus) na Dança do Futuro, ou moderna, que ela terá intuído em Florença (da Academia Platónica de Marsilio Ficino) e manifestou pioneiramente num equilíbrio dos veios e valores do paganismo e do cristianismo. Na web encontramos o texto escrito por ela em 1901 e publicado em 1928, que Pascoaes poderá ter lido intitulado The Dancer of the Future, onde logo na página inicial afirma: "O ser humano, chegado ao fim da civilização deverá retornar a nudez, não a nudez inconsciente do selvagem, mas à consciente e reconhecida nudez do ser humano maduro, cujo corpo será a expressão harmoniosa do seu ser espiritual. E os movimentos deste ser serão naturais e belos como os dos animais selvagens."
 Oiçamos então Pascoaes, LVIII: «Há a luz da Verdade, ou a Beleza, à Platão; e há calor da Verdade, ou a Bondade, à Paulo.
Platão ou Apolo, Paulo ou Jesus... E diante duma estátua de Apolo e duma pintura de Jesus, num museu de Florença, a Isadora Duncan visionou a Dança do Futuro
No LIX Pascoaes tenta regressar à esperança no futuro, no mundo espiritual em que havemos de estar e ver. E cita  o famoso reconhecimento de Tomás de Aquino que todo o seu trabalho filosófico intelectual e tão escolástico, seco e abstracto, e mesmo assim considerado durante séculos como a suma das sumas, afinal era palha perante uma pequena visão que teve do espírito ou da Divindade quando estava para morrer.
                           Ornamento simbólico do Espírito, por Bô Yin Râ
Já bem original e valiosa é considerar que tal consciencializaçao final de Tomas de Aquino, como tendo o brilho da estrela de Belém, como um símbolo espiritual, que nada tem a ver com cometas ou astros e astrologia, mas sim com o espírito que nele se manifestou.
No aforismo final, LX, Pascoaes volta ao seu saudosismo. Não muito desenvolvido na Cartilha mas subitamente surgindo como seu fecho. Pascoaes não se deu por vencido no relativo insucesso da sua religião da Saudade, suplantado pelo Modernismo e depois pelo Presencismo, e apoia-se na reminiscência platónica que Camões manifestou em alguma da sua poesia concluindo que o que verdadeiramente a alma lusíada é saudade, ou seja, lembrança e esperança, certamente algo que todas as almas individuais e grandes almas nacionais têm de um modo ou outro enquanto seres seja em queda e retorno, seja em história e evolução.
Leiamos então o seu fim ou coroa da obra: «LX - Salvamo-nos em esperança ou em lembrança, que a lembrança também incide sobre o futuro na poesia camoniana. E que é a lembrança incidindo sobre o passado e o futuro? É a alma lusíada, a Saudade».

                                    
Possamos nós desenvolver algo deste testamento de Teixeira de Pascoaes, sobretudo cultivando a grande alma portuguesa, protegendo-a da excessiva globalização, apoiando os que trabalham e criam obras e produtos dela, e sobretudo consigamos aprofundar e captar a lembrança da primordialidade espiritual nossa e, logo, desejarmos, querermos e realizarmos tal, de modo a vivermos mais  agora e no futuro, ou seja, sempre, na Luz e Amor divinos...
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