sexta-feira, 10 de abril de 2020

"A Minha Cartilha" (4ª p.), de Teixeira de Pascoaes, lida e comentada por Pedro Teixeira da Mota

Continuamos a ler e a comentar de Teixeira de Pascoaes o seu livrinho A Minha Cartilha, de certo modo um seu testamento anímico, finalizado em Junho de 1951, dezoito meses antes de partir da Terra, e dado à luz em Dezembro de 1954. Como ainda não está acessível na web, transcrevemos alguns passos.
Teixeira de Pascoaes foi sobretudo amante da Natureza, do Marão e das suas gentes, e logo poeta e doutrinador (e também pintava) e, sendo um grande leitor de literatura, religião, filosofia, escreveu além da extensa obra poética e de pensador português, alguns romances biográficos históricos de grande erudição, genialidade e irreverência, tais como os dedicados a S. Paulo, S. Agostinho e S. Jerónimo, o que lhe deu bases boas para estes pensamentos-sentimentos, ora mais imaginados ora mais intuitivos, ora com mais luz ora com mais amor...
                            
Nesta quarta gravação lemos e comentamos, os aforismos XXIV a XXXV. E transcrevemos agora os seguintes, mais originais ou valiosos:
«XXVI - Raciocionar é ver de perto, como imaginar é ouvir ao longe, que a Realidade é próxima ou vista, e longínqua ou musical. Finda em música, ou, antes, é infindável: finda e principia, que o princípio é também impronunciável ou perdido ou, antes, a perder-se no passado.»
Uma bela aproximação poética na eternidade, na serpente que morde a cauda, tal como a representavam os egípcios e os cultores dos emblemas alquímicos e renascentistas. Há reminiscências da Palavra ou Verbo que ao Princípio (en Arke) estava com Deus, ou era Deus, e que foi sentida também como o Alfa e o Ómega,  primeira e última vogal do alfabeto grego, tal como o Aum nome divino indiano formado do mesmo modo em sânscrito, no fundo tentativas humanas de se pronunciar o que sendo "imprincipiável" é também impronunciável, valendo mais o sentir e o assimilar nosso interior ao concentrar-nos nele  Daí a mais acertada recomendação de imaginar, de meditar ora esse longe ora o mais íntimo de nós onde se encontra a pérola perdida, o espírito, que devemos recuperar.

«XXVIII - O espectáculo do Cosmos nos deslumbra desde a nuvem de chuva a molhar-nos o caco incandescente à nebulosa Andrómeda a desfazer-se em estrelas, a um milhão de anos de luz. E este deslumbramento é a própria fonte da Religião e da Poesia, duas irmãs, como Teresa e Mariana.
A poesia é a ciência do Remoto, uma espécie de Geometria no infinito. Se a do espaço serviu para medir a dos campos do Egipto ou da Mesopotâmia, a do infinito metrifica o incomensurável, o invisível, o inatingível. Se lhe tocamos num dado instante maravilhoso, é com a sombra do dedo indicador infindamente prolongada. E as orelhas de Platão asnaticamente lhe cresceram até às esferas a cantar. Esse contacto aureola os grandes versos e os sublimes pensamentos (cabem todos numa página antológica) roubados ao Santo Espírito, como a Divina Comédia, na opinião de Petrarca». 
Estes pensamentos e imagens são de grande beleza, unindo tão bem todo o tipo de opostos, da chuva das nuvens à das estrelas e galáxias, das místicas às amorosas (S. Teresa de Ávila e Mariana Alcoforado), da agrimensura à geometria do infinito, do mundo material ao espiritual, das orelhas felpudas e alongadas dos asnos até às subtis desenvolvidas no esforço de audição silenciosa de Pitágoras e Platão.
Valiosa a visão final: os poetas e escritores mais inspirados, como Dante, no dizer do grande Petrarca, o primeiro humanista Europeu, como defendia José V. de Pina Martins, captam do mundo do Espírito tais intuições manifestadas depois sublimemente.
 Possamos nós comungar ou sintonizar mais com este espírito santo ou divino que está no íntimo de cada um e contribuirmos para uma Humanidade melhor, mais lúcida, solidária, sábia e amorosa, nestes meses de 2020 tão desafiada para se transformar e evoluir mais justa, ecológica e luminosamente...
Seguem-se os aforismos e os comentários.
                    

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