
Em 1623 era dado à luz em Évora na oficina tipográfica de Manuel de Carvalho uma obra de grande erudição, boa psicologia e sagaz comparativismo. Do seu autor, Francisco Soares Toscano, pouco se sabe hoje, a não ser que era natural de Évora, estudou filosofia e humanidades, estava a escrever uma história de Portugal intitulada Teatro Latino, deixou um manuscrito inédito no qual transcrevera uma paródia ao Canto I dos Lusíadas, intitulada Festas bacchanais, copiado por T. Norton no séc. XIX, e em 1623 publicou os Parallelos de principes, e varões illustres antigos, a que muitos da
nossa naçam portuguesa se assemelhàrão em suas obras, ditos, &
feitos: com a origem das armas de algumas familias deste reino. Ambas as obras estão hoje acessíveis na Biblioteca Nacional Digital.
A obra, com 199 fólios (ou folhas e portanto quase 400 páginas) incluiu 152 capítulos sucintos mas bem formados e instrutivos paralelos entre grandes seres da antiguidade e portugueses, pelas suas virtudes e heroísmo, tendo ainda no fim nove paralelos entre as vidas e virtudes de mulheres da antiguidade e portuguesas.
Cento e dez anos depois, em 1723, a obra era reimpressa em Lisboa, na Oficina Ferreiriana, já com 432 páginas, pois acrescentaram-se (o impressor, ou algum erudito ou patriota? quarenta e oito paralelos de príncipes e varões ilustres, e onze de mulheres ilustres. E há muitos anos o querido amigo prof. José V. de Pina Martins ofereceu-me um exemplar truncado: na encadernação, e na falta do frontispício, folhas preliminares e as duas últimas do índice, mas enriquecido com anotações suas que reconstituem o título em falta e mencionam o paralelo com Francisco de Sá de Miranda (28-VIII- 1481 a 17-V-1558), que foi um dos seus autores preferidos e mais trabalhados, e que sendo antepassado da minha mãe fora uma das razões da sua oferta, tal como a dum desenho moderno do busto de Sá de Miranda.
Anote-se que graças ao amigo Tiago Henriques, possuidor dum exemplar completo, podemos afirmar que os acrescentos foram ditados pelo 4º Conde da Ericeira, a quem a 2ª edição está dedicada, a par do Duque de Bragança, sendo transcritos por José Miguel Ferreira o preparador da reimpressão.

A obra tem sido pouco estudada, talvez pelo seu carácter de recolha de grandes feitos guerreiros, derivada das obras de história, que em geral cita abreviadamente no fim dos capítulos, mas há nela aspectos valiosos a destacar pois ele era um humanista muito lido, sensível, cultuando os valores morais, nacionais e perenes, nisso sendo até corajoso, ao citar, mais de uma vez exemplos ou ditos das obras do mestre dos Humanistas dos séc. XVI e seguintes, Erasmo, então ainda algo censurado pela Inquisição, embora por outros bem estudado e cultuado.

Mesmo a sua dependência grande de fontes livrescas não deve ser desvalorizada, pois para além da copiosa informação que hauriu dos mais conhecidos da história de Portugal, da Bíblia e da Antiguidade greco-romana-persa, menciona também obras menores, sermões impressos e mesmo alguns manuscritos, que de outro modo não conheceríamos.
Embora se possa considerar excessiva a descrição de feitos valerosos nas armas por portugueses heroicos, sem dúvida o predominante na obra, embora também haja vários cultores esforçados das letras e religião, tal mensagem guerreira e patriótica era importante na época dos Descobrimentos e foi muito útil e valiosa porque estávamos submetidos à dominação castelhana, e assim se podiam galvanizar os ânimos para a tarefa da Restauração. Infelizmente, nada sabemos do sucesso da obra nem de quem a leu e se ela frutificou em alguns dos portugueses mais activos na reconquista da independência, nomeadamente até de descendentes dos varões ilustres convocados na obra, seja de reis, príncipes ou heróis.
Anote-se que a principal razão de ser dos acrescentos na segunda edição derivam de se terem realizado a notável Restauração em 1º de Dezembro de 1640 e as batalhas vitoriosas posteriores, pelo que vários dos quarenta e oito acrescentos imortalizam heróis dessa gesta.
Na dedicatória prefacial a D. Teodósio, 7º Duque de Bragança, menciona Valério Máximo (séc. I), com os seus Ditos e Feitos memoráveis, da Antiguidade, como um dos seus inspiradores, e no prólogo ao Leitor menciona outro inspirador, Plutarco (46-120) com as suas Vidas Paralelas e os tratados de filosofia moral e espiritual, Moralia, repletos de erudição, especulação oculta e espiritualidade, já que era um sacerdote e iniciado nos Mistérios gregos e romanos.
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| Início do capítulo I: Imperador Constantino e D.Afonso Henriques, fundadores sacralizados. |
O Índice da obra mostra os factores, por ordem alfabética, que o guiaram nesta escola de exempla: as virtudes ou qualidades humanas, as pessoas, pelos nomes, e as armas ou famílias. Nuno Álvares Pereira é o herói mais citado em exemplo paralelo, dezassete vezes, seguindo-se Alexandre Magno (8), D. João II (8) Afonso de Albuquerque (7), Júlio César (7). E D. Afonso Henriques, embora apenas cinco vezes, é contemplado extensamente com o I e II exemplos ou capítulos. Aborda 14 armas heráldicas, três colectivas - Portugal, Algarve, Évora e Duques de Bragança -, e dez de famílias: Pereiras, Faria, Vasconcellos de Villa Lobos, Cortes Reaes, Costas, Macedos, Bandeiras, Cogominhos, Gamas e Condes da Vidigueira. Quanto às virtudes morais, o Amor é a mais citada, nas suas variantes de amor de pátria, fraternal, filial e conjugal, neste sendo invocado Francisco
Sá de Miranda, que "amou extraordinariamente" sua mulher Briolanja
d'Azevedo, mais velha do que ele e "de pouca formosura exterior". Quanto a D. Pedro I é citado em paralelo exemplar quatro vezes com os imperadores Antonino Pio, Tito e Aureliano, e Teseu, pela "generosidade e magnificência", e por castigar asperamente mas criando segurança no reino, e pelo seu amor até ao fim do mundo por Inês de Castro, de uma forma bastante bela, que transcreveremos brevemente.
Dos Paralelos das Mulheres destacaremos não tanto as do heroísmo guerreiro, e várias convocadas são dos dois célebres cercos de Diu, de 1538 e 1546, mas mais as que se notabilizaram pelo studium ou esforço nas letras, ética e religião, tal Luísa Sigeia; Dona Joana de Menezes, Condessa da Ericeira; a famosa soror poetisa Soror Violante do Céu, comparada a Sapho; a rainha D. Luísa de Gusmão; Dona Isabel de Castro, condessa de Assumar; Soror Maria Magdalena de Jesus, do convento da Madre de Deus em Xábregas, por cerca de 70 anos, escritora religiosa; Dona Bernarda Ferreira de Lacerda, autora das famosas Soledades do Buçaco; e por fim Dona Luiza Maria de Faro, condessa de Penaguião. E vamos transcrever o paralelo que Soares Toscano estabeleceu entre ela e nem mais nem menos que a famosa Sibila Comana, ou de Cumas, que até em Portugal se avatarizou num paralelo do licenciado eborense Francisco Soares Toscano:


«Ou
fossem muitas, ou uma só, que profetizou em diversas partes, às Sibilas
se lhes atribui, principalmente à Sibila de Cumas, que esteve em Roma
no tempo de Tarquino o Soberbo, uma grande ciência, uma grande virtude, e
inteira aplicação aos Mistérios Divinos, e quase graça profética,
sendo consultados os seus oráculos, e depois seus livros. nos maiores
negócios da República. Galeo, de Sibilis e Petit de una Sibila.

«Dona
Luísa Matia de Faro, filha dos Condes de Atouguia, e mulher do seu
primo o conde de Penaguião Camareiro Mór d'El Rey D. João IV, se aplicou
aos estudos, e com grande fervor à assistência dos Tempos, e vivendo
mais de oitenta anos foi sempre consultada pelas Rainhas, e ainda pelos
Reis e seus ministros, e pela nobreza, e pessoas doutas em todo o
cerimonial da Corte, e em muitos negócios importantes, e com a memória
mais firme, e a verdade mais sólida, dava notícia de tudo o que leu, e
viu com tanto acerto, que suas decisões eram veneradas e seguidas de
todos. Memórias do tempo »
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| A sibila de Cumas no chão da catedral de Siena, por Giovanni di Stefano, final do séc. XV |
Destaquemos, no ensinamento humanista de Francisco Soares Toscano de resgatar a memória da vida da quase sibila portuguesa Dona Luísa Matia de Faro, a aplicação aos estudos, a memória firme do que lia e meditava, e a formação dentro de si de uma verdade sólida, o que lhe permitiam transmitir o que aprendera com grande acerto e ser bem acolhida. Sem dúvida, um bom plano de trabalhos para as gerações mais novas, hoje tão confrontadas com tantos imediatismos facilitadores mas superficializantes e que impedem o desenvolvimento de inteligência sensível, de vontade determinada e de capacidade de obtenção da verdade fundamentada e mais profunda que possa ser transmitida para o bem de todos.
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| Na linha de assimilação das virtudes da Antiguidade no Cristianismo está a pintura de Rafael, de 1511, sediada na igreja de S. Maria del Pace, em Roma, onde as Sibilas são inspiradas por dois Anjos e acompanhadas de pequenos Eros, amor, amores, puti ou anjinhos. |
Quanto ao que ele discerne na sábia e clarividente Sibila de Cumas, que viera da Grécia para a Campânia itálica, a mais referida historicamente e imortalizada por Vírgilio na Eneida, deixaremos para outro artigo, já que é uma linha tradicional que tenho trabalhado e só realçarei para nossa meditação o que a mulher e a parte feminina ou anima deve desenvolver: "uma grande ciência, uma grande virtude, e
inteira aplicação aos Mistérios Divinos, e quase graça profética"