Nicolas Berdiaev, ou antes Nicholas Alexandrovich Berdyaev (1874-1948), oito anos mais novo que o nosso Antero de Quental - foi e é um dos mais importantes filósofos russos, com uma obra imensa e bastante inspiradora. De família aristocrata, lado paternal de militares condecorados na ordem de S. Jorge, da mãe russa-francesa-polaca com tendências religiosas, desde cedo foi atraído para os grandes problemas ou mistérios da existência lendo muito, e em especial Hegel, Kant, Schopenhauer, Dostoievsky, Tolstoi, Henrik Ibsen, Søren Kierkegaard e Jakob Böhme. Após seis anos muito livres na Escola de Cadetes, onde estudou Ciência mas não se interessou pela via militar, entrou como aluno de Direito na Universidade de Kiev, em 1894, onde manifestou com vigor e profundidade a sua adesão à filosofia do materialismo histórico e ao marxismo, mas participando em certa contestação ao regime vigente do Tsar foi condenado a um exílio em Vologda, no norte da Rússia, de 1898 a 1901 e que lhe foi difícil mas muito proveitoso pelos contactos com a grande alma popular russa.
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| Com 22 anos, em 1896 |
Escreveu o seu primeiro artigo em 1904 no final do exílio, A.S. Khomyakov como Filósofo. Para o Centenário do seu Nascimento e nesse mesmo ano. já livre do desterro, casa-se com Lydia Trusheff e vivem em Saint Petersburg, onde colabora com Sergei Bulgakov na direcção duma revista, o Novi Put, o Novo Caminho. Após uma estadia em 1907 em Paris, transfere-se para Moscovo em 1908 e é um dinâmico escritor e filósofo espiritual, com o seu forte idealismo e personalismo já a chocar com o positivismo e materialismo dominantes, fundando mesmo uma sociedade de estudos literários, filosóficos, religiosos e espirituais, A Academia Livre de Cultura Espiritual, e entrando em diálogos muito animados e intensos com os intelectuais russos do seu tempo, tal como descreverá na sua autobiografia.
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| Em 1912, com 38 anos. |
Destacou-se pela valorização da criatividade, da liberdade, do amor e da persona co-creadora de cada um, e finalmente do Logos, do Cristo, Deus e Homem, exemplo entre nós da ligação ao mundo Divino. Contudo, pela sua espiritualidade e defesa duma religiosidade não formalista e ritualista mas de vivência interior, exposta num artigo publicado em 1913 intitulado Gasiteli Dukha, Os Extintores de Deus, chegou a ser condenado pela Igreja Ortodoxa por blasfémia e condenado ao exílio na Sibéria. A revolução bolchevique libertou-o de tal destino e permitiu-lhe escrever livremente, dar aulas na Academia Livre de Cultura Espiritual e em 1920, quando porém já estava a ser restringido, ser convidado para professor de filosofia na Universidade de Moscovo, onde leccionou, mas com problemas. O crescente ateísmo e controle férreo do governo comunista teria de entrar em confronto com a sua valorização da liberdade, independência e espiritualidade, resultando disso um encontro interrogatório com o chefe da polícia secreta e a sábia e previdente decisão de o deixarem partir com mais cem intelectuais (tais Fyodor Stepun, Sergei Bulgakov, Ivan Ilyin) para o Ocidente, em Setembro de 1922, num barco a vapor, o famoso Barco dos Filósofos, numa inesquecível viagem de São Petersburgo para a Alemanha, onde já estudara uns meses em 1903.
Embora tenha sido bem acolhido pelos alemães, e funde em Berlim tanto um Instituto de Ciência com outros emigrados, como uma Academia Russa de Filosofia e Religião e ensine, apercebe-se que os seus compatriotas ou são reacionários ou meramente pietistas ou então soviéticos não se interessando tanto pela demanda filosófica e espiritual livre, e embora tendo encontrado bons amigos e conhecido com Max Scheller, Keyserling e Spengler, não se sente bem na Alemanha devido ao ambiente político que prefigurava o nacional-socialismo, e ao mudar em 1924 para Clamart, perto de Paris, com a mulher Lydia Trusheff, transfere-a para a França, onde viverá muito activo no diálogo antropológico e sociológico, filosófico, religioso e espiritual, com vários escritores franceses (dando-se muito bem sobretudo com Jacques Maritain e Charles du Bos), revistas (tal a do L'Esprit, onde a nossa Dalila Pereira da Costa fará a a sua estreia) e grupos (tal o das Decades, em Pontigny), publicando quinze livros e bastantes artigos, muitos dos quais no jornal de pensamento religioso russo Put ou O Caminho que dirigiu de 1925 a 1940, e onde de novo Sergei Bulgakov esteve ao seu lado, pois era um clérigo ortodoxo no Instituto de S. Sérgio.
Transmitirá as suas ideias-forças geniais e inegavelmente perenes, até em 23 de Março 1948 (sendo apenas interrogado algumas vezes pela Gestapo), quando sentado na sua secretária de trabalho (um bom local de libertação do corpo), partir para o mundo espiritual, para o Cristo e a luz da Divindade, que tanto meditara, intuíra e amara. Entre os filósofos russos modernos mais conhecidos, podemos dizer que Aleksander Dugin e sua filha e mártir Daria Dugina são dos mais próximos de Nicolas Berdiaev. E entre nós Leonardo Coimbra, José V. de Pina Martins (que o traduziu) e Dalila Pereira da Costa foram alguns dos que mais o estimaram.
A sua filosofia era personalista, criadora - o ser humano é co-creador do mundo, com Deus -, de vitória do bem sobre o mal, e mística, tal como na sua autobiografia Dream and Reality diz: «quero afirmar a predominância em mim do homo mysticus sobre o homo religiosus: pois isto, creio, selou toda a minha perspectiva filosófica. Uma convicção mística original esteve comigo desde o momento da minha 'conversão', enquanto o elemento especificamente religioso e de crença-credo desempenhou um papel secundário. Meister Eckhart, Jacob Boehme e Angelus Silesius são-me mais congénitos do que muitos dos Doutores da Igreja. O misticismo, entendido mais como um modo de conhecimento de que um produto acabado, sempre dinamizou a minha imaginação. Acredito na existência de uma experiência mística universal e de uma espiritualidade universal que não podem ser descritas em termos de diferenças confessionais».

O excerto que vamos apresentar é o início do seu livro O Sentido da Criação, escrito entre 1909 e 1914, de juventude, e que transmite bem o fogo da sua energia psíquica ou anímica em busca da verdade, da liberdade, de Deus, expressando a sua tentativa de correcção dos defeitos ou limitações do Cristianismo histórico, algo que foi uma constante, de tal modo que só se podia dizer que era um Cristão, mais próximo da Igreja Ortodoxa que da Católica, e menos ainda da Protestante, pois era sobretudo um espiritual, místico e filósofo universalista, que lera e meditara com originalidade e intensidade, tentando descobrir as soluções e caminhos para a crise do homem moderno perdido no automatismo, individualismo, massificação, ateísmo, falta de sentido hierárquico. Sublinhámos no texto as reflexões que me pareceram mais importantes:
O espírito humano está numa prisão. E, essa prisão, chamo-a de "mundo", o dado mundial, a necessidade. "Este mundo" não é o cosmos, é o estado de desordem e hostilidade, de atomização e desagregação, onde caíram as mónadas vivas da hierarquia cósmica. E o caminho verdadeiro é aquele que conduz à evasão espiritual fora do mundo, à libertação do espírito humano da prisão da necessidade. O verdadeiro caminho não é trilhado pelo movimento para a direita ou para a esquerda que se realiza na superfície do mundo, mas pelo movimento levado em altura ou profundidade, segundo uma linha interna, o movimento no seio do espírito. A liberdade conquistada sobre o mundo, e sobre o conjunto de suas disposições e oportunidades, é o sinal para o espírito da efervescência mais alta, é o caminho que seguiram os grandes criadores espirituais, o caminho da concentração e da solidariedade espirituais.
O cosmos é o ser autêntico, essencial, - mas o mundo é uma ilusão, um dado ilusória que esconde a necessidade universal. "Este mundo" ilusório é a projeção do nosso pecado. Os doutores da Igreja identificaram o mundo com as paixões más. A servidão do espírito humano por "este mundo" é, portanto, a sua falha ou culpa, o seu pecado, a sua queda; e a libertação do "mundo" equivale à libertação do pecado, à redenção da culpa, e finalmente à ressurreição do espírito caído. Dizem ao homem: - "Tu és uma criatura pecadora e caída, por isso não deves ousar empenhar-te no caminho da libertação do espírito, no caminho da vida criativa do espírito; deves carregar o fardo da obediência às consequências do pecado". E o espírito humano permanece preso a esse círculo sem saída. Pois o pecado original é uma escravidão, a negação da liberdade do espírito, a submissão à necessidade diabólica, a impotência de se imaginar a si mesmo como uma criatura livre.
O homem acaba por se perder, ao querer afirmar-se na necessidade e não na liberdade. O caminho pelo qual se pode libertar do "mundo" para chegar à criação de uma nova vida é também o caminho que liberta do pecado, que supera o mal, e que reúne as forças do espírito tendo em vista uma vida divina. A servidão ao "mundo", à necessidade obrigatória, não é apenas falta de liberdade, é também a organização e o fortalecimento desse estado não cósmico do "mundo", onde reinam a inimizade e a desordem.
A liberdade é amor, a escravidão é inimizade. O caminho que leva da escravidão à liberdade, da hostilidade do "mundo" ao amor cósmico, é também aquele da vitória sobre a natureza inferior do ser humano.
A imensa mentira, a terrível falha de todo julgamento moral e religioso, é justamente deixar o homem no nível mais baixo do mundo, em nome de sua obediência às consequências de seu pecado. Uma tal noção engendra uma espécie de vergonhosa indiferença ao bem e ao mal, a recusa de se opor virilmente ao mal, até chegar a altura em que a alma, sobrecarregada pelo peso de sua própria enfermidade, arrisca-se a confundir para a eternidade, Deus e o diabo, Cristo e o Anticristo.
Esta decadência da alma, mortalmente indiferente ao bem e ao mal, chega a uma espécie de êxtase místico de passividade e de submissão, sob o jogo do pensamento dividido. A alma caída gosta de namoriscar com Lúcifer, gosta de não saber qual Deus serve, gosta de sentir medo e de roçar o perigo. Esta decadência, este enfraquecimento, esta duplicidade, são os resultados oblíquos da doutrina cristã sobre a obediência, e o triunfo dessa doutrina. O desdobramento do pensamento e a indiferença ao bem e ao mal opõem-se deliberadamente à emancipação viril do espírito e ao movimento criador, - a tudo que exige do ser humano a decisão de romper com as camadas mentirosas e ilusórias da cultura, com suas servidões subtis ao "mundo".
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| Dois meses antes de morrer, com 74 anos, pronto para a ascensão libertadora |

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