quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Blavatsky, Teosofia e Fernando Pessoa, com biografia dela e de vicissitudes da Sociedade Teosófica e seus autores, com as críticas de Fernando Pessoa. Nos 88 anos da sua desincarnação. [Ainda está a ser acrescentado...].

                                        

Fazendo a Teosofia parte do caminho espiritual de Fernando Pessoa e porque os que têm escrito sobre tal o têm realizado na grande maioria fracamente ou mesmo mal, errando vítimas de incompreensões, insuficiências, preconceitos, ideologias, tendências, sonegações, oposições e mistificações, resolvemos para os 88 anos da desincarnação do notável poeta, escritor e ocultista, nascido em 1888, contribuir com alguns valiosos esclarecimentos factuais e hermenêuticos   quanto à vida de Helena Petrovna Blavatsky e de algumas das personalidades e obras mais marcantes dos primeiros tempos da Sociedade Teosófica, bem como, e para não alargarmos excessivamente o texto,  quanto a algumas das reações suscitadas em Fernando Pessoa, que conhecemos, ou que deduzimos. 

Embora já tivesse em 1988 e 1989 publicado quatro livros de inéditos de Fernando Pessoa, transcrevendo e abordando em algumas páginas o seu relacionamento com a Teosofia, a que se acrescentaram  eventuais referências em artigos e conferências ao longo dos anos, destacando-se em 2008 as doze contribuições para o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral,  e em que algumas das entradas se relacionavam com a Teosofia, tais as de Annie Besant, Blavatsky, Leadbeater, ou ainda Mestre, Espiritismo e Gnosticismo, e que estão hoje online (embora com incorreções), porque houve limitações de espaço na altura, e porque nos últimos tempos tenho privilegiado Antero de Quental e os poetas anterianos, a Índia, Erasmo, Ficino, Pico, Tolstoi, Dalila Pereira da Costa e Bô Yin Râ nas minhas investigações e escritos, decidi transcrever o texto da entrada "Blavatsky" todo e aumentá-lo ou melhorá-lo por amizade à Verdade, a Fernando Pessoa e à Teosofia enquanto Sabedoria Divina, supra e intra sociedades, grupos e personalidades.
Apro
ximemo-nos então da co-fundadora da Sociedade Teosófica, e das pessoas e obras que a rodearam no seu percurso  de sessenta anos de vida, muito dinâmica e influente mundialmente até aos dias de hoje, pois continua a ter muitos devotos ou seguidores e, simultaneamente, observemos um pouco (para já...) do relacionamento de Fernando Pessoa com tal. 

Helena Petrovna von Hahn nasceu no sul da Rússia em 12-8-1831, filha de um coronel e de uma escritora nobre. Casou-se muito nova, aos 18 anos, com Nikifor Blavatsky, governador da Província de Yerivan, já com 40, mas por pouco tempo, embora usasse o apelido do marido para sempre, e começou a viajar fugindo para Constantinopla. Desse movimentado período de vinte e quatro anos  não se sabe nada com certeza, já que só há as indicações, frequentemente contraditórias, que ela própria deu ou escreveu, ou outros narrarão. Não há certeza que tenha estado no Tibete, por exemplo, mas provavelmente  em 1856  entrou em Leh, hoje Ladak, Índia, e designado como o Pequeno Tibete. Na Europa, teria estado na Itália em 1866-67 apoiando Garibaldi, e segundo ela tendo ficado ferida na batalha de Mentana, neste aspecto, a ser verdade, concretizando um desejo que também fora de Antero de Quental tal como expressou em carta da época. 

Se é meramente mistificação ou não que de 1868 a 1870 terá viajado com o seu mestre Morya, e estado na Índia e no Tibete,  sendo treinada pelos famosos Mahatmas, em Shigtase e tendo traduzido textos da língua antiga misteriosa, o senzar, donde nascerão as famosas estâncias ou cantos de Dyzan, que incluirá no seu futuro êxito A Doutrina Secreta, poucos conseguirão ter uma certeza.
De 1870 a 1872, viajou pela zona do Mediterrâneo, ora "encontrando-se"  com os misteriosos mestres ou Mahatmas, tais Seraphis e Hillarion, ora trabalhando com médiuns espíritas no Cairo, onde tenta criar uma sociedade espírita, mas desiludindo-se do projecto pelas fraudes e outros motivos. É finalmente a partir de Julho de 1873 que está nos Estados Unidos, em Nova Iorque, onde, tal como na Europa, se operava um enfraquecimento do cristianismo e o crescimento do espiritismo e ocultismo. Conhece, ao investigar uns casos de espiritismo, o ex-militar do exército federal tornado repórter Henry Steel Olcott (1832-1937), que fica seu admirador e em breve discípulo e associado, conseguindo-lhe entrevistas por  ser dotada de poderes, tal como ele noticiou: «a sua mediunidade é totalmente diferente de qualquer outra pessoa que eu conheci; pois em vez de ser controlada por espíritos para fazer a sua vontade, é ela que parece controlá-los a fazerem as suas ordens (her bidding)». Nos anos de 1874-75 surge como uma médium poderosa e considera o espiritismo como a nova religião salvífica, contando segundo ela, com a ajuda de um misterioso ser ou corpo astral denominado John King que chegou a desenhar, pois era dotada para o desenho. Anos mais tarde identificá-lo-á com o mestre grego Hillarion.
                                        
No mês de Abril des
se tão movimentado ano de 1875 casa-se com um homem de negócios georgiano, Michael C. Betany, num templo da igreja protestante Unitária mas por poucos meses e explicará ao surpreendido  Olcott que fora por razões kármicas. Clamam ambos pertencer a uma Fraternidade de Luxor, fundam o Clube Milagre  onde realizam tertúlias e conferências, três das quais,  do engenheiro e arquitecto George Henry Felt (1831-1906, e na imagem em baixo) suscitam tanto  interesse pelas suas investigações oculto-científicas que, no grupo que se reunia na "Lamasaria" de Blavatsky, no centro de Nova Iorque e assistia a tais palestras, numa delas Olcott sugere a Judge e a Blavatsky fundarem uma sociedade ocultista que divulgasse os conhecimento antigos perdidos.
                                         
Após uma reunião com as pessoas presentes nas conferências e mais algumas, na segunda, em 13 de Setembr
o, o nome de Teosófica foi escolhido  pelo livreiro Sotheran, tirado à sorte de um dicionário, tenho havido antes as hipóteses de ser Rosacruciana, Hermética, Egiptóloga,  O objectivo era dedicarem «ao estudo da ciência oculta e esotérica, teoria e prática, e à popularização dos factos no mundo». A data da fundação foi na reunião seguinte, a 17 de Novembro de 1875,  e Blavatsky, Olcott, o jovem advogado irlandês William Quan Judge (1856-1891), que tinham conhecido em Agosto, o inglês já naturalizado americano Charles Sotheran (1847-1902), o médico e ocultista Seth Pancoast (1823-1899) e George Henry Felt (1831-1906), foram os co-fundadores, sendo Olcott, o presidente, a pronunciar o discurso da inauguração.

Charles Sotheran desenhado por Helena Blavatsky.

A Sociedade não teve grandes actividades, algumas pessoas saíram ao verem que as realizações de George Henry Felt não se conseguiam obter, e Blavatsky, com os seus ajudantes, estava concentrada sobretudo na Ísis sem Véu. Contudo, cedo houve conflitos  entre Charles Sotheran, mentalidade  socialista, e Blavatsky, que se apaziguarão contudo, embora por fim se cindissem mesmo. Blavatsky deixará escrito no seu diário:  "um amigo de Comunistas não é um membro adequado à nossa Sociedade".

William Q. Judge, Henry S. Olcott e Helena P. Blavatsky.
 Já com  o advogado irlandês e mais místico William Q. Judge haverá uma boa relação, à parte um ano distanciados, e será sempre considerado um dos três co-fundadores (principais). William Judge  destacar-se-á  pela sua infatigável escrita, baseada em conhecimentos derivados da sua hermenêutica, com certa sensibilidade e fundamentação esotérico-mística, da Bhagavad Gita e das Upanishads e de outros textos e orações, sobretudo da Índia, a que juntava uma boa imaginação e o gosto por profecias e comparativismos, algo forçados (em especial com a Bíblia, e tal tem sido uma pecha em que muitos têm caído), escrevendo centenas de artigos, frequentemente sob pseudónimos orientais, na pioneira revista The Path, que dirigiu durante os dez anos da sua existência, de 1886 a 1896, alguns dos quais notáveis pela sabedoria mística e outros pela sua superficialidade comparativista e a ingenuidade mistificada ou mistificante, talvez um dom  imaginativo enquanto lhe permitiu escrever vários contos. 
                                              
Nos últimos anos de vida, após a morte de Blavatsky, William Q. Judge teve problemas fortes com Olcott, Annie Besant e outros que puseram em causa ele receber mensagens e cartas dos misteriosos Mahatmas,  Olcott chegando mesmo a escrever-lhe  em 7-II-1894 dando-lhe duas hipóteses: demitir-se de todos os cargos ou sujeitar-se a um comité judicial, com o resultado a ser divulgado publicamente. Judge reafirmará a falsidade das acusações que Besant redigira e optou naturalmente pela investigação, a qual veio a ser realizada mas com o comité dando-se como incapaz de averiguar e julgar as crenças interiores de William Quan Judge.
Após mais discussões,  na convenção de Boston com os principais teósofos, a 28-29 de Abril de 1895, foi aprovada pela maioria de 190 contra 9 votos a separação completa da Sociedade Teosófica na América, que continuou a ser dirigida por  Judge, em relação à Sociedade Teosófica mundial, dirigida por Olcott e secundado por Annie Besant e Leadbeater, ao que parece bastante ambiciosos.
Olcott, Besant e Leadbeater
Em 1909 surgirá, por iniciativa de Robert Crosbie, outra organização teosófica que se distanciava da teosofia de Annie Besant e de Charles Leabeater,  a United Lodge of Theosophists, e que tinha como missão principal «divulgar amplamente os ensinamentos originais da Teosofia, tal como foi registada nos escritos de H. P. Blavatsky e de William Q. Judge».

                                                                      
Curiosamente, na biblioteca de Ferna
ndo Pessoa, inexplicavelmente tão mal catalogada ainda hoje em termos de ocultismo, esoterismo, espiritualidade, encontramos, um número de 1931 da revista The Arian Path, não anotado por Fernando Pessoa, proveniente do ramo indiano dessa United Lodge of Theosophists, a Loja Unida dos Teosofistas, com textos interessantes, desde As Mil e Uma Noites à Bhagavad Gita traduzida por William Q. Judge.  Estava sediada em Bombaim, ou hoje Mumbai, onde umas décadas depois estive em diálogo luminoso com  Sophia Waida (1901-1986, colombiana naturalizada indiana, e que me dedicou então dois livros seus), fundadora do Pen Club e mulher de B. P. Wadia (1881-1958), o 2º presidente da Loja Unida Teosófica e o fundador-director desta revista valiosa, publicada de 1930 e 1960, e a partir dos anos trinta denunciando fortemente o fascismo e o nazismo. Porque tinha Fernando Pessoa este exemplar da revista, só ele nos poderá dizer...

Mas voltemos à  vida em cronologia de  Blavatsky. De Julho de 1876 até Dezembro 1878, quando ela partirá para a Índia, foi a "Lamaserie", ou "casa de Lamas",  a sede da nóvel Sociedade Teosófica e o local de trabalho a partir do qual em 29 de Setembro de 1877 deu à luz a Ísis Sem Véu, uma Chave-Mestra para os Mistérios da Antiga e Moderna Ciência e Teologia, dois volumes com cerca de 1.300 páginas, com grande sucesso (mil exemplares vendidos em poucos dias, pois alguns jornais espíritas-espiritualistas ajudaram), para a qual fora assistida pelos infatigáveis Olcott, Sotheran e sobretudo William Judge  na recolha de textos de inúmeros autores, ou mesmo na redacção quanto a William Q. Judge e a Olcott, como se virá a saber mais tarde, por confissões de ambos.
Com esse espantoso e emocionante caldeirão de histórias, informações e especulações ocultistas, cabalistas, gnósticas e esotéricas, e que tanta gente despertaram e iluminaram, ou ocuparam ou confundiram  pelas suas correspondências e analogias pouco exactas, ou informações incomprováveis, ou ainda as  centenas de controversas interpretações e citações de tantos autores (e Fernando Pessoa criticará por mais de uma vez nas obras dos teósofos a «confusão mental, a indisciplina»),  iniciava-se um forte ataque à ortodoxia dogmática católica, à ciência materialista e positivista e a uma sociedade e civilização materializada e limitada, abrindo novas vistas sobre a sabedoria na Antiguidade e no Oriente misterioso e sagrado. 
Anote-se que Olcott nas suas memórias, Folhas do Diário Antigo, narra como Blavatsky lhe pedia para ler e escrever sobre este ou aquele assunto, ou mesmo a visitantes, e que depois ela aproveitaria mais ou menos para a Ísis sem Véu, além de recortarem parágrafos de muitos livros que colavam no chamado borrão, que passaria ainda por mais mãos antes de se tornar legível ao compositor  final em caracteres de chumbo, que mesmo assim ainda tinha de alterar à última da hora.   
Olcott, ao confessar, ainda que abreviadamente, no fim da sua vida, no capítulo Ísis sem Véu, da 1ª série ou volume das suas memórias, Old Dairy Leaves, que Blavatsky  utilizou vários livros pioneiros  sobre as tradições ocultistas, religiosas e espirituais  não só do Ocidente como do Oriente e em especial da Índia, acaba por diminuir muito da credibilidade da autoria ou inspiração da Ísis sem Véu (ou mais tarde da Doutrina Secreta, que inicialmente era para ser apenas a Ísis sem Véu melhorada) dos misteriosos e plenos de poderes Mestres da Fraternidade TransHimalaica.
 Eis alguns dos livros «que ela usou muito: The Gnostics [and their remains] de [Charles William] King [1818-1878], The Rosicrucians: [their rites and mysteries] de [Hargrave] Jennings, o Sod: [the mysteries of Adoni], e [Vestiges of the] spirit-history of man, de [Samule Fales] Dunlap [1825-1905], The Hindu Pantheon [1801] de [Edward] Moor [1771-1848], os ataques furiosos de [Roger Gougenot] des Mousseaux [1805-1876] contra a Magia, o Magnetismo, o Ocultismo, etc., que ela tratava como diabólicos, as obras variadas de Eliphas Levy [1810-1875]; os 27 volumes de Jacolliot [1837-1890], as obras de Max Müller [1823-1890], de Huxley, de Tyndhal, de Herbert Spencer, e as de diversos autores mais ou menos célebres, mas não mais de uma centena de volumes, estou convencido...» Apesar de todos os livros e ajudantes, Olcott pensa que Blavatsky recebeu muito do conteúdo do livro da luz astral e dos Mahatmas, tanto mais que ela teria confessado à sua tia N. A. F., e esta a Alfred P. Sinnett: «Ponho-me no meu escritório e escrevo. Porquê? Porque alguém me dita que sabe tudo, o meu Mestre e por vezes outros que conheci nas minhas viagens»....
O acesso a uma Sabedoria antiga e um conhecimento maior da pluridimensionalidade microcósmica e macrocósmica, que vinha sobretudo dos humanistas do Renascimento e depois dos Rosicrucianos, alquimistas e maçons,  teve  no séc. XIX um incremento grande pelos contributos dos primeiros orientalistas e dos autores e grupos ocultistas e espiritualistas, nos quais devemos destacar, entre os acertadamente lidos por Blavatsky e nomeados abreviadamente pelo coronel Olcott, Hargrave Jennings, pois desde a década de 50 escrevia, embora com mais ênfase no rosicrucianismo europeu e na tradição persa e greco-latina, e porque foi lido por Fernando Pessoa ainda antes dos autores teosóficos,   impressionando-o muito, como relata na famosa carta de 6-XII-1915 ao seu grande amigo Mário de Sá Carneiro, que transcreveremos mais à frente. Curiosa esta coincidência da obra de Hargrave Jennings sobre o rosicrucianismo-ocultismo ter sido tão importante tanto para Blavatsky como para Fernando Pessoa.
A sala principal da "Lamasaria", com a dotada Blavatsky a tocar piano e Olcott descontraído, num belo desenho da própria.
 Acerca ainda da génese da Ísis sem Véu, muitos anos depois, em 1940, o já então 4º presidente da Sociedade Teosófica, o cingalês Jinaradasa (1875-1953), e que viera em jovem para o Ocidente, Inglaterra,  acompanhando o seu professor o mistagogo reincarnacionista Charles Leadbeater, pois Sinnett convidara este a ser o tutor do seu filho e de George Arundale, afirmará, e direi que certamente com  mistagogia, na sua Story of Mahatma Letters, que «existe uma carta muito breve, recebida pelo Coronel Olcott, neste período (a Carta 24) do Mahatma chamado nos círculos teosóficos o Rishi Agastya, mas na altura chamado por H. P. Blavatsky "Narayan", "o Velho Cavalheiro". Foi este Mahatma que ajudou H. P. Blavatsky na composição de Ísis Sem Véu, ocupando muitas vezes o corpo de H. P. B.» 
Uma afirmação pouco ou nada plausível pelo que já transcrevemos de Olcott, embora Blavatsky afirme no prefácio do 1º volume que  «a obra agora submetida ao público é o fruto de uma espécie de uma íntima relação ou frequentação amiga (acquaintance) com adeptos Orientais e o estudo da sua ciência», pois os conhecimentos que a Ísis sem Véu apresenta de orientalismo, de sabedoria oriental, de Vedanta ou das outras darshanas ou filosofias indianas eram já do conhecimento público ou então especulados sobre os livros de Max Müller, Edward Moor, Louis Jacolliot e de outros. O que é mais original são as notícias do que vários cientistas europeus iam descobrindo ou hipotetizando, ao que Blavatsky juntava as suas analogias e interpretações.
Em verdade, Blavatsky e o seu grupo da Lamasarie juntaram e juntaram informações acerca dos mistérios e sabedoria da antiguidade egípcia, caldaica e greco-romana, do Cristianismo, dos primeiros padres da Igreja, das heresias, da gnose, da alquimia, da Cabala, do Renascimento e de várias fontes do Oriente sobretudo indiano, bem como das últimas formas de espiritismo, magnetismo, hipnotismo e as descobertas e teorias científicas sobre o Universo, a Terra e o ser humano, e  nesse  sentido a obra foi dividida em dois volumes, o 1º com o sub-título Ciência, sendo o de Teologia o 2ª volume. Dialogaram, discutiram, escreveram, comparam, especularam  (e  meditariam até?), Blavatsky e a meia dúzia de colaboradores, mas, parece-nos, que pouco há de novo ou de transcendente publicado por Blavatsky, pesem  as boas associações ou até intuições que ela e os amigos tiveram, que assinale a mão (e menos ainda a incorporação, sugerida por Jinaradasa) de um Adepto dos "segredos da criação", como vieram a ser apresentados, exagerada e mistificadoramente, os Mestres, os misteriosos Mahatmas.

Em verdade, embora sendo um grande linguista e sábio, Jinaradasa não era de plena confiança, pois foi um dos que andou a recolher ou inventar informações para o livro (em co-autoria de Annie Besant) de Charles Leadbeater [1854-1934] The lives of Alcyone, de 1924, a descrição das rocambolescas vidas passadas de Alcyone-Krishnamurti, e dos que o acompanhavam vida após vida em constantes trocas de parentesco e de género.
 Jinaradasa participou também com entusiasmo na mistificação da vinda do novo Instrutor Mundial, sendo traduzido e publicado o seu livrinho Em Seu Nome, entre nós em 1926, e visitando Portugal  em Agosto de 1927 numa das suas numerosas tournées mundiais, já que era um afável e bom orador, ou como se escreveu na altura na revista Ísis: «Organizador e propagandista, trabalhador incansável, C. Jinarajadasa, vendo as coisas sempre por um aspecto prático e o mais útil à Sociedade Teosófica, tem tornado a sua acção extraordinariamente produtiva e fértil em benefício para os ideais da Teosofia. Na sua propaganda tem percorrido muitos países e, neles, como no nosso, a sua palavra fluente e os seus vastíssimos conhecimentos têm abalado o mundo científico...», esta última afirmação um bocadinho exagerada...
Já da sua visita ao Brasil, publicaram-se (com bastante atraso) em 1929 as suas Conferências Teosóficas, onde partilha o seu panteísmo teosófico («A Divindade não está somente em todas as coisas, a Divindade é todas as coisas») e onde pronunciou uma,  Os Ensinamentos de Krishnamurti, bastante mistagógica, como se pode depreender deste passo justificativo da confirmação que o jovem Krishnamurti seria o instrutor da Nova Religião: «todos o que viam o rapaz indú e, frequentemente, aqueles que tinham contemplado apenas o seu retrato, sentiam imediatamente uma modificação interior em si mesmos; era como se por um relâmpago súbito de iluminação, dentro de si próprio exclamassem (como a mim mesmo aconteceu cerca de um ano antes de conhecer Krishnamurti) - "ECCE HOMO" - "Eis o Homem"» [Palavras de Pôncios Pilato quando apresentou Jesus coroado de espinhos ao povo judaico, para se votar se devia ou não ser morto, segundo o Evangelho de S. João, XI.]
O jovem Krishnamurti certamente  já na fase de cansaço ou desencanto em relação aos seus mentores, Leadbeater e Annie Besant, e à pesada tarefa ou missão de ser o novo Cristo...
Do novo Instrutor do Mundo ou Messias, e da nova Religião Mundial, estava inteirado Fernando Pessoa e mencionou-o nos seus apontamentos sobre o messianismo, mas tal projecto ambicioso de Annie Besant e Charles Leadbeater claudicou plenamente em  3 de Agosto de 1929, no costumeiro campo de Verão de Omem, Holanda, quando Krishnamurti o repudia, dissolve a Ordem da Estrela e desfilia-se da Sociedade Teosófica,  recusando assim o papel mistificador de ser o Messias, esperança e sonho que iludira muitos teósofos, nomeadamente os que escreveram sobre ela e os que aderiram à Ordem da Estrela, fundada em 1911, para  acompanhar Krishnamurti e que em Portugal se desenvolveu, publicando-se alguns livrinhos e brochuras, pelo menos de 1922 a 1931, quando já depois da Ordem dissolvida  ainda era mantido o Boletim da Estrela, publicado pelo coronel Óscar Mayer Garção. Terá ele passado a krishnamurtiano, como sucedeu a muitos teósofos ou, desenganado, voltou à teosofia inicial e clássica de Blavatsky e Q. Judge?

Em Dezembro de 1878 partem finalmente de barco para tão desejada Índia Olcott e Blavatsky (muito receosa que fosse a sua última viagem, e de facto houve tempestades fortes), via Londres, onde permanecem alguns dias, com encontros não só dos teósofos  como com um Mahatma avistado por Olcott em pleno nevoeiro, e participando ainda em sessões espíritas com a médium teósofa Hollis-Biling, que foi mesmo referenciada pelo Mahatma Koot Humi, numa carta para Alfred P. Sinnet: «entre os médiums ela é a mais honesta senão mesmo a melhor». Ou ainda que o seu espírito guia "Sky" tinha sido usado como uma boca para vários dos Mahatmas, numa significativa e talvez mistagógica aliança entre o espiritismo e a mais alta instância teosófica......

Hollis Billing,(1837-1908) uma médium teósofa..

Desembarcarão em Bombaim em 16 Fevereiro de 1879, sendo bem recebidos por três membros, teósofos, do Arya Samaj, de Swami Dayananda Saraswati (1824-1883, um dos pioneiros do renascimento bengali, com Raja Ram Mohan Roy, Devendranath Tagore e Ramakrishna Paramahansa), e com quem estavam em contacto amistoso há algum tempo, preparando até alguma unidade colaborativa entre os dois grupos.  Ao fim de alguns meses de  felicidade no encontro tão desejado com a Índia e os indianos, com constantes diálogos ou satsangs até tarde, e apenas com uma desilusão quanto à abnegação do hospedeiro inicial, partem para uma viajem uns meses  pela Índia com um deles, Mooljee Thackersey,    e começam  em Outubro, de Bombaim, a divulgação através da revista The Theosophist que fundam (numa continuação da "democratização do hermetismo", como chamava Fernando Pessoa à Teosofia). Infelizmente a boa relação com Dayananda Saraswati e o Arya Samaj esfumou-se após alguns encontros amistosos e entraram mesmo em 1882 numa disputa agreste Olcott e Dayananda, já que este começou a desconfiar dos poderes de Blavatsky e a duvidar da harmonia da Sociedade Teosófica não só com o Arya Samaj como com a tradição indiana ou Sanatana Dharma. Olcott reagirá com força, talvez exagerada, considerando as suas mudanças seja de doutrina seja de apreciação crítica à Sociedade Teosófica como erradas e condenáveis, quando elas eram compreensíveis para quem (Dayananda) vivia dentro do ambiente nativo e tradicional e agora se interelacionava com Ocidentais não comprometidos com os usos e costumes, ou mesmo doutrinas, da Índia, sendo possível que a adesão ao Budismo cingalês de Olcott o tenha desiludido também.
                            
Quando estav
am em Benares foram convidados por monges budistas a deslocarem-se ao Ceilão, onde Olcott e Blavatsky assumiram em Maio de 1880 no Vijayananda Vihara, em Galle  os cinco votos budistas, os pancha sila, sendo os primeiros ocidentais conhecidos a fazerem-no, além de animarem valiosamente a formação de novas escolas ainda hoje existentes, e gratas. Olcott dará à luz o Catecismo Budista em 1881, ao estilo de perguntas e respostas muito simples numa linha de pensamento e conduta segundo os preceitos de Gautama, o Budha na linha Hinayana, ou Pequeno Veículo,  e ainda nos nossos dias é lido nas suas escolas.
O livrin
ho viria a ser lido entre nós por Antero de Quental,  e o  seu discípulo Joaquim de Araújo, autor do 1º poema à desincarnação voluntária, samuraica, de Antero  em 1891 e já acercado no blogue:"Morrer é ser iniciado", descreve-o assim no Catalogo da Livraria de Anthero de Quental (c. 1892), na secção de Religiões, Vidas de Santos e Theologia, entre alguns livros orientalistas de Max Müller, T. Rhys Davids, Gobineau e Guilherme de Vasconcelos Abreu: «CCIX - Olcott (Henry S.). - 337 - A BHUDDHIST CATECISM, Acording to the Canon of the Southern Church. By Henry S. Olcott, President of the Theosophical Society, etc. London, Trübner & Co. Ludgate Hill, 1881, 1 vol. in-16, 28 pag. Em brochura.»

Antero de Quental, numa mandala astrológica impressa e trazida duma lamasaria no Tibete.

Foi no final de 1879 que Blavatsky e Olcott se encontraram em Allahabad com Alfred Percy Sinnett (1840-1921), um jornalista inglês que trabalhava na Índia desde 1879 e que se torna rapidamente um entusiasta teósofo com a sua mulher  Patience, acolhendo-os seis semanas. Uns meses depois, no Outono de 1880, voltam a ser hóspedes do casal Sinnett durante mês e meio na casa de campo de Simla, certamente em deliciosas conversas e com Blavatsky a impressioná-lo muito com os seus poderes psíquicos ou  ocultos, como Sinnett relatará amplamente no seu livro O Mundo Oculto, nomeadamente materializações de objectos, produção de sons de pancadas inexplicáveis, leituras de pensamento,  e audição frequente de sons de campainhas. A sua compreensão dela era então: Madame Blavatsky é um iniciado, um adepto, mas apenas ate ao ponto de possuir esse magnífico dom de telegrafia psicológica com os seus amigos ocultistas. O facto de ela ter parado precisamente no ponto de iniciação que marca a fronteira entre este mundo e o mundo ocultista, é que lhe permitiu tomar sobre si o encargo do desempenho da missão, confiada à Sociedade Teosófica.»

Alfred Percy Sinnett.
 Diz Alfred Percy Sinnett ainda desse memorável encontro que foi graças a Blavatsky, a quem perguntara se poderia escrever para os Mestres ou Mahatmas (em sânscrito, grandes almas), que estariam por detrás da Sociedade, a fim de se corresponderem, que se resolveu a escrever duas cartas,  em 13 e 15 de Outubro de 1880 (que seriam teletransportadas para eles, crê-se), recebendo no dia 17 ou, melhor, encontrando na sua escrivaninha, uma longa carta (maçuda e algo pretensiosa, demonstrando um vasto conhecimento da cultura ocidental)   assinada pelo mestre Koot Humi. A resposta de Sinnett é elucidativa da sua índole ambiciosa (ou apenas nacionalista), pois na carta seguinte pede ao Mestre para fundar com ele e Allan Octavian Hume (que participava dos encontros pois tinha casa também em Simla)  uma Loja Anglo-Indiana, separada da Sociedade Teosófica e completamente independente de Blavatsky e Olcott, ao que K.H. (ou Blavatsky...) respondeu com muita paciência, lembrando-lhe que a ingratidão não era com eles, mestres. Admire-se a resiliência da senhora Blavatsky, quanto a estas duas almas que se iniciavam na Teosofia com características muito próprias de serem intelectuais reconhecidos e importantes, A. O. Hume (1829-1912) um reputado ornitologista. Todavia, com o decorrer do tempo, e apesar de ter recebido três cartas e ter entrado na Sociedade Teosófica em Agosto de 1881, logo em 1882 renunciou a presidência da Sociedade Teosófica Eclética  de Simla, e em Janeiro de 1883 recebeu o cheque-mate dos mestres ou da já não tão paciente Blavatsky, quando numa carta dirigida ao seu amigo Sinnett, este foi avisado que Hume estava quase a enlouquecer por más energias de um fakir amigo e que ao aceitar e seguir o ensinamento de um swami ou monge da linha Advaita Vedanta estava a afastar-se do ensinamento de Koot Humi. Muito significativa é também esta passagem arrasadora da carta: «embora o seu próprio autocriado adeptado seja inteiramente imaginário, ele, no entanto, através da prática imprudente do pranayana (controles respiratório-energéticos) desenvolveu em si mesmo até certo ponto uma mediunidade - e está marcado para o resto da vida por ela.» E aconselha Sinnett a evitá-lo...
Iniciava-se assim na já montanhosa e no Verão fresca  Simla, pois está a 2.276 metros de altitude, e  por onde temos de passar quando  peregrinamos os Himalaias,  a correspondência entre os misteriosos Mestres e Sinnett que  duraria de 1880 a 1886, embora este tivesse que regressar a Londres em 1883 ao ser despedido do jornal The Pioneer do qual era o editor, mas bem indemnizado. As cartas, num total de cerca de 140, só seriam  publicadas completamente (já que em 1919, Jinarajadasa, prefaciado por Annie Besant, já publicara quarenta delas comentadas, logo traduzidas em 1920 em França),   em 1923 (dois anos  após a sua morte) e 1926, e melhoradas em 1962 e 1993. Em 2001 seriam traduzidas para português e impressas no Brasil em dois volumes,  mas,  mesmo contextualizadas como é o caso, exigem uma  leitura muita atenta para não gerarem confusão, dada a quantidade de autores e destinatários, bem como de notas adicionadas na época, e os muitos conflitos, incompreensões, pretensões e subterfúgios que elas partilham...
 Desde há vários anos está comprovado por especialistas oficiais de grafologia que as famosas cartas dos Mahatmas a Sinnett, conservadas no Museu Britânico,  foram escritas em língua e em tinta inglesa a quase totalidade pela mão da senhora Helena P. Blavatsky e,  embora haja ainda muita gente que enalteça e mitifique tais cartas,  só em algumas delas há especulações ou respostas mais originais sobre a pluridimensionalidade espiritual humana e cósmica, abundando  manifestações dum conhecimento  seja erudito da tradição ocidental cultural e espiritual seja lúcido da sua mentalidade contemporânea, o que seria pouco adequado a adeptos indianos interessados em ensinar, a maioria delas tratando pragmática e algo corriqueiramente  de aspectos interpessoais dos teósofos e dos problemas que foram criando ou encontrando.   As cartas assinadas pelos mestres Morya ou por Koot Humi dão tratamentos curiosos a Sinnett tais como  Prezado Irmão e Amigo, Prezado senhor e irmão, Meu bom irmão, Meu caro Irmão, Meu caro embaixador...
Anos depois, já entre Abril de 1885 e Maio de 1886, quando estava em Würzburg, na Alemanha, Blavatsky fará uma auto-crítica, um mea culpa, e pela maioria das pessoas ignorado, à sua hospedeira Constanze Wachtmeister, notável amiga e protectora: «Oh fenómenos malditos, que produzi apenas para agradar a âmagos particulares e para instruir os que me rodeavam... Os fenómenos são a maldição e a ruína da sociedade...»

Quantos aos livros que Alfred P. Sinnett redigiu em seguida ao seu encontro com Blavatsky e à pretensa ligação com os Mestres, em dois deles transcreve bastante das ditas cartas:  n'O Mundo Oculto, em 1881, e no Budismo Esotérico, de 1883, e ambos foram publicados em Portugal, saindo por exemplo a 1ª edição do Budismo Esotérico, em 1916 e a 2ª edição em 1922, esta traduzida pelo Dr.  João Cid "da oitava edição ampliada e anotada pelo autor". Já O Mundo Oculto foi traduzido (com algumas discrepâncias) por Mário Alemquer, em 1916, e ostentava no início uma singela homenagem aos poderosos e misteriosos mestres da Sociedade Teosófica, hoje denominados ascensos: 
                                   Dedicatória
Aquele, cuja compreensão da Natureza e da Humanidade vai tão além da filosofia [e da ciência [algo que foi omitido na tradução portuguesa. Voluntariamente?]] da Europa, que apenas as inteligências mais excepcionalmente poderosas podem conceber a existência das forças [powers] que ele constantemente domina [exercise], Ao Mahatma K. H., a cuja condescendente [gracious] amizade o autor deve a satisfação de chamar a atenção do mundo europeu para os fenómenos maravilhosos do ocultismo.
Com
a devida permissão, solicitada e obtida, dedica este modesto trabalho, A. P. Sinnett.»

Faziam parte na Colecção Teosófica e Esotérica, fundada e dirigida pelo espírita, ocultista, teósofo e hermetista João Antunes, advogado, que tinha uma boa universalidade no comportamento e nas ideias, e que aceitava bem o contraditório, patente numa resposta que dá na revista ocultista e teósofa Eleusis: quem quisesse saber melhor as críticas que se faziam à Teosofia deveria ler a [inegavelmente importante e muito fundamentada] obra de René Guénon Le Theosophisme, Histoire d'une pseudo-religion, dada à luz em 1921, num in-8º de 310 páginas.  Dessa época, dos críticos, devem destacar-se Bô Yin Râ, em alguns dos seus livros, em especial no Mehr Licht, criticando, por exemplo, o erro de se tomarem como Mestres entidades astrais e de se pensar que a realização espiritual se obtém pela dita ciência oculta e a leitura de densos volumes, Carl Gustav Jung, numa carta já abordada neste blogue, e Julius Evola, em alguns livros, tal como, no de 1949, Maschera e volto dello spiritualismo contemporaneo. Analisi critica delle principali correnti moderne verso il sovrasensibile, bem como, um pouco antes, William Emmete Coleman (abordado neste blogue), V. S. Solovyoff (com a sua tão crítica e polémica obra A Modern Priestess of Isis, London, 1895), Max Müller (o erudito sanscritólogo e orientalista), e os católicos Léonce de Grandmaison, Joseph de Tonquédec, Th. Mainege, entre outros.
Influenciado por e
sse título, e porque ele se tornara uma das principais designações da pretensa doutrina teosófica,  Fernando Pessoa por mais de uma vez utilizará a expressão Budismo esotérico, seja pela leitura do livro seja apenas por ser uma expressão então consagrada para dignificar ou orientalizar a vulgarização teosófica da constituição oculta do ser humano e do universo. A obra tem doze capítulos e  na parte inicial  realça a originalidade pioneira da sua transmissão, recebida de um mahatma (K. H. ou Koot Humi), e depois  nada mais senão especulações sobre os sete corpos (talvez o mais importante e influente tema da teosofia da Socieade Teosófica, e que será o mais referido por Ferandno Pessoa), a cadeia planetária, os períodos do mundo (Lemúria, Atlântida), a vida no além,  a onda humana e o seu progresso, e é só nos Cap IX e X, intitulados Budha e Nirvana, que especula e define o (ou partes do) Budismo baseado sobretudo em teorizações (por vezes muito imaginadas, tal a reincarnação de Budda como Sankaracharya e depois como Tsong-ka-pa) de Blavatsky. Como exemplo, as vinte e cinco páginas do cap. IX, Budha, dividem-se em: O Budha esotérico. Reincarnação dos Adeptos. A incarnação do Budha. Os sete Budhas das grandes raças. Avolikiteshwara. Adhi Budha. O que era o estado do adepto no tempo de Budha. Sankaracharya. As doutrinas vedanticas. Tsong-ka-pa. Reformas do Ocultismo no Tibete,» e manifesta por vezes quão fraca era a sua compreensão, ou então forte manipulação, dos ensinamentos indianos, ainda que diga «basear-se nas informações de um bramane iniciado, curioso de ocultismo e muito conhecedor de sanscrito». Por exemplo:«Servindo-nos da rude fraseologia da teologia europeia, podemos dizer que os Advaitas acreditam na salvação pelas obras e os Vishishta Advaitas pela graça», quando na verdade no 1º caso realizam-na pela compreensão unificadora, Jnana, e os Vishista, pela devoção, bhakti
Anote-se que o livro teve ainda o azar de Helena P. Blavatsky, ao publicar mais tarde em 1888 a sua monumental, embora "indigesta", Doutrina Secreta, ter incluído várias explicações que contradiziam o que Percy Sinnet escrevera no seu tão prolixo livro, em especial num dos subcapítulos do 1º volume intitulado  A few early Theosophical Misconceptions concerning planets, rounds and man, em que chega mesmo a citar várias vezes o Budismo Esotérico e lembrar que Sinnett confessara que «era uma "mente não treinada no ocultismo", pelo que fora levado a alguns erros de detalhe mas não de visão geral».  Sinnett, que era  afirmativo e dominador, pese o seu ar meigo, e que já estava algo de candeias às avessas com Blavatsky, quando esta, pouco depois de dar à luz a Doutrina Secreta, fundará em Outubro de 1888 a mítica Secção Esotérica da Sociedade Teosófica em Londres, que passará depois aos outros países, tal Portugal, recusar-se-á a aderir, continuando a liderar, à sua maneira e entendimento, parte dos membros da Sociedade Teosófica em Inglaterra
Poderemos brevemente indicar alguns exemplos da utilização por Fernando Pessoa da expressão Budismo esotérico   - a propósito da divisão quíntupla dos corpos subtis,  - por querer destruir a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã e a igreja católica, - e ao considerar que uma «moderna reviviscência dos sistemas ocultistas, notável sobretudo pela importação, nos países de língua inglesa, do chamado budismo esotérico, atroz amálgama de superstições selvagens, de humanitarismo decadente e de gnosticismo atrapalhado, trouxe outra vez à superfície o que pela Europa havia de restos da tradição oculta da Gnose». 

Em  1882, Blavatsky e Olcott encantam-se com a frondosa zona de Adhyar, nos arredores de Madrasta, a qual se torna a nova sede da Sociedade Teosófica com a instalação  em Dezembro de Blavatsky e Olcott, cinco criados indianos, os dois empregados Alexis e Emma Coulomb, e os discípulos ou chelas dos mestres  Damodar, Dora Swami Naid e Deb, deste escrevendo uma "misteriosa e problemática" nota: "He is my right hand (and K. H.'s left one) — at imposture and false pretence."[Ele é a minha mão direita (e o mestre Koot Humi a esquerda) - na impostura e falsa pretensão]

Helena P. Blavatsky, com os seus dois principais ajudantes e discípulos Damodar V. Mavalankar e Deb, no ano de 1883.

E vão  pública ou visivelmente receber (e segundo Jinaradasa elas serão enviadas de 1870 a 1901) várias das controversas cartas e também sinais sobrenaturais dos Mestres, que serão pouco depois denunciadas como fraudulentas pelos Coulomb, quando  Blavatsky e Olcott estavam na Europa, desde Março de 1884, obrigando-os a regressarem à pressa e em força, com Charles Leadbeater, num processo que vai abalar alguma confiança e crença pública em relação a Blavatsky e consequentemente na Sociedade Teosófica.
Fernando Pessoa, através da pena de Ricardo Reis, e que sabia da investigação à
veracidade das cartas, nas suas análises neo-pagãs regista talvez em conexão com elas: «O sentimento sobrenatural, liberto, propriamente do sentimentalismo cristista, veio a dar na renascença do ocultismo, patente hoje por todo o orbe. Certas escolas do ocultismo – como a Sociedade Teosófica, que é, ostensivamente, a mais forte – não abandonaram, é certo, o sentimento cristista no seu intuito fraternitário. Mas o facto é que a renascença ocultista, como tal, se apoia não directamente no humanitarismo cristista, mas sim na pura reviviscência da noção do sobrenatural, sem outros atributos ou elementos anexos». (21-25). E no fim da sua vida tornar-se-a a referir a tal evento, como transcreveremos mais à frente.
Entret
anto já em 1883 o ramo da Sociedade Teosófica em Inglaterra fora  abalado por se ter provado que o conteúdo de uma das cartas atribuídas por Sinnett aos Mestres provinha em grande parte de um artigo num jornal espírita, o que origina a saída de vários teósofos, ou a crítica de outros tais como Mabel Collins (1851-1927), uma escritora bastante ousada,  e excêntrica que frequentava as reuniões teosóficas na casa de Sinnett, mas que só entrou para a Loja londrina em 1884, publicando em 1885 uma obra Light on the Path que teve grande sucesso  pelo sua calma e beleza e que foi apresentada como tendo sido ditada ou inspirada pelos mestres da Sociedade Teosófica. Como em 1889 o divórcio entre Mabel Colins e Blavatsky, muito crítica da sua liberdade amorosa, se tornara total, Mabel Collins declinou a inspiração do mestre Hillarion, que Blavatsky reconhecera, e esclareceu que mistificara pois a obra era só sua.  A Luz sobre o Caminho viria a ser publicada entre nós como o oitavo livro da colecção Teosófica e Esotérica numa tradução de Fernando  Pessoa, em 1916, com a 2ª edição em 1921, e se ele soube ou intuiu algo das mistificações mencionadas não sabemos.

 Em 1883, Blavatsky e Olcott vêm uns meses a Paris e Londres, e regressam apressadamente no fim de Dezembro a Adhyar, Índia, onde rebentara o escândalo das alegações de fraude nas precipitações das cartas dos Mestres e nas materializações de objectos, e onde chegara para redigir um relatório o Dr. Richard Hodgson (1855-1905), da Sociedade de Investigações Psíquicas, londrina, o qual é publicado em Dezembro, 1885, considerando as cartas materializadas durante cerca de quatro anos na sala-santuário da sede de Adyar e o som das campainhas fraudes. Entretanto a família Coulomb resolve levar o caso a tribunal, em Madras, e a  repercussão do caso estava a tornar-se de tal amplidão, com muita gente a descrer dela ou da Sociedade, que Blavatsky  regressou à Europa, em Abril de 1885, com o médico ocultista Franz Hartmann, autor de Magia Negra e Magia Branca, obra que Fernando Pessoa  leu, anotou e comentou e ainda hoje se encontra na sua biblioteca online. Se foi ela que resignou, o mais provável, ou se seguiu o conselho do Board of Control, o Conselho administrativo teosófico, discute-se. Embora já corresse ou se soubesse há uns meses, é só em Dezembro de 1885 que o relatório da Society of Psychical Research  sai a público, confirmando as acusações de fraude nas cartas e nos fenómenos paranormais, o que é arrasador para muitos, embora uma das conclusões, só subscrita por Hogdson, a de que era uma espia do Governo Russo, fosse rocambolesca...
B
lavatsky, após algum tempo na Europa, regressa a Londres em 1887 e discordando da linha de ensino teosófico e do seu direcionamento para as classes sociais mais ricas que Alfred Percy Sinnett imprimia à Sociedade Teosófica em Inglaterra, resolve fundar
em Setembro e dirigir com Mabel Collins (e a partir de 1888 com Annie Besant)  a revista Lucifer, A Theosophical Magazine designed to "Bring to Light the Hidden Things of Darkness", título algo assustador mas cuja citação é do apóstolo Paulo, I Epist. aos Coríntios, e a hermenêutica de Blavatsky e Mabel Collins é: «mostrar no seu verdadeiro aspecto e no seu significado original real coisas e nomes, homens e  seus feitos e costumes; e é finalmente lutar contra o preconceito, a hipocrisia e a vergonha em cada Nação e tanto em cada classe da Sociedade como em cada departamento da vida». A revista fazia falta pois só havia a Theosophist, editada em Adyar, India, e será desde 1895 co-editada com o sábio G. R. S. Mead, e publicada até 1897, quando dá lugar à mais cordata Theosophical Review, que singrará até 1928. 
No mesmo ano de 1887 surgia em França, dirigido por Felix Krishna Gaboriau, Le LotusRevue des Hautes études théosophiques tendant à favoriser le rapprochement entre l’Orient et l’Occident, sous l'inspiration de Blavatsky, e onde colaboraram notáveis ocultistas, tais como Blavatsky, Fabre d'Olivet, Franz Hartman, Papus, Stanislas de Guaita,  Carl du Prel, F.-Charles Barlet, etc., mas que durará só dois anos, por o seu director, após uma querela em defesa de Blavatsky com Papus, se ter desiludido de Blavatasky e depois de Olcott, a quem enviou em Dezembro de 1888  a carta de demissão. Em 1890 começará a ser publicada Le Lotus Bleu, e a partir de 1928 passará  a ser Revue Theosophique Française, ainda hoje viva. 
Em Portugal será só em 1921 que é dada à luz a Isis: revista de questões teosóficas e de sciencias espiritualistas, dirigida por João Antunes e com adeptos da espiritualidade ilustres, como Leonardo Coimbra, Maria O'Neil, Teixeira Rego, Ângelo Ribeiro, César Porto, Silva Júnior e Afonso Sair, Juan de Nogales, e Óscar Garção e Cibrão, o denodado apóstolo do sonho do novo Messias. Fernando Pessoa, embora anti-Teosofia, conservou o 1º número da revista, certamente presenteado, e pode ser visto e lido hoje na sua biblioteca online. Na lista dos colaboradores encontramos Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e Angelo Ribeiro, entre outros, mas naturalmente não Fernando Pessoa já que repudiava muito da Sociedade Teosófica. Contudo, e até hoje ninguém referiu, encontra-se neste 1º número da revista Ísis uma sábia apreciação do valor de Fernando Pessoa realizada pelo director dela João Antunes,  na Secção Livros e Revistas, Ementa bibliográfica de todas as obras de que nos remetem dois exemplares:« O Compêndio de Teosofia, de Leadbeater é obra que não deve faltar na estante de quem preze a filosofia, em qualquer dos seus aspectos, que todos deviam ler, por onde todos deviam começar. A versão de Fernando Pessoa, literato exímio e linguista ilustre não trai o grande valor do original, notando-se a falta de um índice, que auxilie o compulsar do livro, que não é para ser lido de uma só vez.» Teria F. Pessoa considerado desnecessário o índice? Anote-se ainda uma crítica muito elogiosa a Leonardo Coimbra pelo seu último livro A Luta pela Imortalidade, «um grito de alma, orquestrado de luz, cor e forma».
Helena P. Blavatsky nesse ano de 1887 ainda funda a Loja Blavatsky, independente do domínio de Sinnett, e já em Outubro de 1888, a Secção Esotérica da Sociedade em Londres, o que não agradou nada Sinnett, pois introduzia um nível mais reservado e elevado dentro da Sociedade Teosófica em Inglaterra, que ele dirigia, enquanto Henry Olcott regia a mundial, de Adhyar, secundado e influenciado por Besant e Leadbeater.
E em Dezembro publica os dois grandes volumes da Doutrina Secreta, com mais de 1500 páginas, inegavelmente a opus magna teosófica, uma obra enciclopédica com bastantes dados valiosos da sabedoria oriental, recolhidos de várias fontes e especulados, embora se discuta, ou se negue em geral, a autenticidade das estâncias ou Livro de Dyzam, que teria colhido no Tibete, no qual se baseia e interpreta, com  fabulosas especulações,  os tempos primitivos do Cosmos e depois da Terra e da Humanidade e muitos outros aspectos e formulações. O 1º volume, Cosmogenesis, está dividido em Evolução Cósmica, A evolução do Simbolismo na sua ordem aproximada, e A Ciência e a Doutrina Secreta contrastadas. O 2º volume, Antropogenesis, divide-se em Antropogénese, O Simbolismo Arcaico das Religiões Mundiais e A Ciência e a Doutrina Secreta contrastadas Inegavelmente uma obra pioneira em vários aspectos, com uma massa gigantesca de informações e especulações por vezes incorrectas, infundadas e até inutéis quando enredam as pessoas em labirintos mentais e enfraquecem a verdadeira demanda espiritual íntima...
 Um teósofo importante, o jovem advogado indiano, Subba Raw (1856-1890, e que já abordamos no blogue), e que fora quem aconselhara o local de Adyar para sede e que ajudara muito à divulgação da teosofia no meio hindu, convidado a rever e corrigir certas partes, sentiu um tal repúdio interior por muito do contido (seja na forma seja na ideia) na Doutrina Secreta  que se demite da Sociedade. Mas morrerá poucos anos depois. Na realidade houve várias reacções críticas a essa enciclopédia ocultista, equilibrando as de louvor, e já mencionámos alguns nomes.
Blavatsky publicará ainda em 1889 a Chave da Teosofia, onde tentou resumir de uma forma simples e clara como via a Teosofia e a Sociedade Teosófica em 14 capítulos ou secções, e apesar de na 1ª secção o último capítulo se intitular: A Teosofia não é budismo, na 5ª secção, Os Ensinamentos fundamentais da Teosofia, apresentados em cinco capítulos: Sobre Deus e a Oração. É Necessário Orar? A oração mata a auto-resistência. Sobre a fonte da Alma Humana. Os Ensinamentos Budistas acerca do acima mencionado, persevera no seu ataque forte ao Cristianismo e à concepção limitada do Deus pessoal e pensante derivada em parte do antigo Jehová, que rejeita e tenta basear-se na Cabala para justificar-se. Algumas das respostas são certamente  provocadores e exageradas,   tal a que eles (teósofos) não rezam, ou falam porque agem, e a que a  força da oração "é a  vontade e que ela é mais um comando interno do que uma petição". Aconselhando os cristão a não serem israelitas ou judeus, mas a seguirem o verdadeiros ensinamentos de Jesus, porá em causa as orações pela morte dos inimigos ou a violência da civilização cristã. E em seguida apoiar-se-á em textos e concepões budistas. É uma obra valiosa, pois sumariza no fim da sua vida as suas principais compreensões do universo, do ser humano e do caminho espiritual, nas quais pende para uma linha algo advaitica vedantica, ou mesmo budista, ao recusar constantemente a relação pessoal com a Divindade, seja nas formas mais exotéricas das religiões seja nas mais internas desenvolvidas pelos indianos na linha dvaita vedanta, e da ishta devata, a divindade manifestada pessoalmente na interioridade da alma devota que aspira e medita nela.
No fim da obra, o carácter messiânico e utópico de Blavatsky afirma-se numa linha até justificativa do sonho abortado de um novo Messias e nesse sentido retirando parte das culpas dos iludidos mas ambiciosos Annie Besant e Leadbeater: «mas além de uma literatura grande e acessível pronta nas mãos dos homens, o próximo impulso encontrará um corpo numeroso e unido de pessoas preparadas para receber o novo portador da tocha da Verdade. Ele encontrará as mentes dos homens preparadas para a sua mensagem, uma língua pronta para ele a fim de revestir as novas verdades que traz, uma organização aguardando a sua chegada, o que removerá os obstáculos e dificuldades meramente mecânicos e materiais do seu caminho.» Até que ponto ou grau é que Fernando Pessoa sonhou ou acreditou mesmo que os seus escritos sebastianistas e quinto-imperiais contribuiam para aplanar a vinda do Encoberto e Desejado é certamente de se considerar provavelmente afirmativamente, tendo em conta os seus apoios a Sidónio Pais e depois, no início, a Salazar (conforme o folheto de 1928 O Interregno), já que no fim estava completamente contra ele e o Estado Novo.
O sonho mitificante pessoano do Encoberto, nos azulejos de Lima de Freitas na estação do Rossio em Lisboa
 Já a mítica, e mistificante enquanto se afirma como proveniente das estâncias de Dyzan,  A Voz do Silêncio, foi obra de mais sucesso, pelo seu caracter algo ascético-místico de conselhos aos discípulos, num estilo e fraseologia oriental,  e que Fernando Pessoa conheceu bem, pois traduziu-a mesmo em 1916. 
Entretanto a jovem fabiana e feminista Annie Besant, que se entusiasmara com a leitura da Doutrina Secreta e fora entrevistar Blavatsky,  é escolhida por esta, depois de Besant se  tornar teósofa, para ser a sua sucessora na Loja Blavatsky. 
Desgastada, com a sua missão cumprida, com mais ou menos erros ou fraudes, Blavatsky liberta-se do corpo terreno, tão trabalhado e fecundo, em casa de Annie Besant, em Londres, no dia 8 de Maio de 1891, que passou a denominar-se dia do Lótus Branco, comemorado anualmente por milhares de teosofistas. Pouco depois, os principais teosófos admitem que Blavatky reincarnara logo num corpo já maduro, Annie Besant anunciando-o em 1897, e Leadbeater no Boletim de Adyar de 1913, o que levantou mais celeumas e críticas.
                                    
Desde ced
o interessado no misterioso, no secreto, no oculto, no religioso,  Fernando Pessoa manifesta-o em algum poemas e textos, nem que só fosse pelo título deles, e começa a ler obras de ocultismo, mesmo na África do Sul, certamente a mais importante sendo a de Hargrave Jennings, cuja 1ª edição saiu em 1870, sendo a que Fernando Pessoa possuía e leu e releu a 3ª edição já de 1907, e da qual deixou não só apontamentos na marginália do livro como em papéis, mas testemunhando-o até numa carta muito esclarecedora sob o seu  início do conhecimento mais específico da teosofia da Sociedade Teosófica, a de 6 de Dezembro de 1915 a Mário de Sá Carneiro, confessando as razões do seu desassossego: «A primeira parte da crise intelectual, já V. sabe o que é; a que apareceu agora deriva da circunstância de eu ter tomado conhecimento com as doutrinas teosóficas. O modo como as conheci foi, como V. sabe, banalíssimo. Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de forca, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Cousa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz.[de Hargrave Jennings.] A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me «hante». Não me julgue V. a caminho da loucura creio que não estou. Isto é uma crise grave de um espírito felizmente capaz de ter crises desta. Ora, se V. meditar que a Teosofia é um sistema ultracristão—no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus — e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, V. terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se, depois, reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu Panteão todos os deuses, V. terá o segundo elemento da minha grave crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (V. compreende?) essenciais, atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental» (é este o nome que eu dou ao modo de pensar a que havia chegado), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito. E o horror e a atracção do abismo realizados no além-alma. Um pavor metafísico, meu querido Sá-Carneiro!»

Mas reagirá logo com escritos pró-paganismo  e anti-teosóficos, nomeadamente contra o feminismo, o humanitarismo, o fraternalismo, a divulgação superficial, confusa e incomprovável em vários aspectos do ocultismo. O mais importante é o texto (54A-85) intitulado Princípios de Metafísica Esotérica, atribuído ao astrólogo Rafael Baldaya e que começa assim:
«Recentemente tem tomado um g
rande relevo pelo mundo a propaganda da religião chamada Teosofia. Essa religião pretende ser a da Verdade; se não tivesse essa pretensão não seria uma religião. Pretende estar por detrás de todas as religiões. Pretende ser a depositária das antigas doutrinas ocultas; pretende representar uma comunicação para o exterior feita pelos chamados “Mestres”. Urge expor do modo mais claro e preciso qual é, segundo a ciência esotérica verdadeira, a constituição real do Universo.Não importa ao leitor como estas verdades se determinaram, de onde elas partem. A sua aceitação não é necessária para ninguém. Mas elas expõem-se, porque chegou a hora de se exporem, porque é preciso que elas sejam dadas ao mundo. O resto não tem importância.
Compêndio de Hiperciência.
Compêndio de Cosmologia oculta.
Este trabalho, de que fui encarregado, procuro fazê-lo o melhor que possa, sendo preciso, lúcido e esquemático, quanto possível, na

minha exposição.
Uma ú
ltima pergunta poderá ocorrer aos leitores: qual a razão porque este tratado sai primeiro em português do que em outra língua qualquer, porque em uma das línguas, não talvez menos faladas, mas por certo menos lidas, do mundo? Porque isso tem de ser assim, dado o grande Destino oculto que Portugal tem de cumprir, continuando o que já cumpriu, aquele destino que o Senhor da Ciência segredou ao Infante D. Henrique em Sagres, para que ele o pusesse em prática.
Portugal é um Ente. Esse ente tem que cumprir um destino. Esse destino envolve que as verdades que este livro revela sejam dadas primeiro em português do que em outra língua qualquer.
Este sistema não será exposto como um sistema metafísico, que se prove; mas sim como um sistema religioso, dogmaticamente. Mas ele tal é, que, uma vez lido, a sua verdade será vista por aqueles que está destinado que a vejam.»
[E este texto do espólio termina aqui, embora algumas das pessoas que têm publicado algo incorrectamente os escritos de Fernando Pessoa continuam-no com um outro como se fossem o mesmo, quando é distinto, até no suporte de papel,  e apenas  foi apenso na arrumação dos documentos do espólio a seguir ao outro. Algo que podemos observar em mais do que um caso, em escrito ou papel de Fernando Pessoa e que evidencia má leitura inicial e apropriação e reprodução dum documento já com erros, ou errado].

Assim começava ardentemente indignado e prometaicamente mistificador o geminiano Fernando Pessoa, através do seu semi-heterónimo astrólogo Raphael Baldaya, essa obra intitulada Princípios de Metafísica Esotérica,  da qual nos ficaram apenas fragmentos, caracterizados por reacção forte tanto a afirmações e ensinamentos de Blavatsky, tal a de que «a Teosofia era a matemática pura da religião», como à vulgarização e democratização do Ocultismo ou mesmo da Sabedoria Oriental, afastando-os das suas fontes  expressões luminosas, e que a Sociedade Teosófica (infelizmente por certos membros) realizava, dirigida então já por Annie Besant (1847-1933, e desde 1908 presidente da Sociedade Teosófica), e secundada pelo famigerado clarividente Charles  Leadbeater (1854-1934), dois seres por Fernando Pessoa em alguns textos criticados, o mais divertido sendo o da ignorância da gramática, tema que repetiu ainda outra vez mas sem o mencionar, o que tem passado desapercebido tal como vários outros sinais de entrelinhas...: «Um Rosicruciano é uma espécie de ocultista, um homem que a nossa mente pode compreender. Ela não pode compreender um neo-budista. A detestável rede de prestidigitação indiana chamada Teosofia, tirada baixamente e longe da grandiosa, ainda que obscura, beleza do Budha do Oriente, pela sua mistura com movimentos ocidentais.

E um homem como o Senhor Leadbeater, que tem em casa a chave de todo o mistério, esqueceu-se de pôr no molho a chave da Gramática Inglesa».
O bispo da Igreja Católica Liberal, teosófica e maçónica, Charles Leadbeater (e chegaram a pensar que tal Igreja teria um grande futuro à sua frente), segura com o auxílio de alguns dos seus chelas ou discípulos, noutras vidas seres certamente muito importantes, um grande mapa genealógico que presumimos ser das reincarnações de Alcione-Krishnamurti e seus companheiros de muitas vidas... Reparem-se bem nas faces dos protagonistas de tal investigação quase que de gambuzinos...

Acrescentemos outro texto de Pessoa crítico dos teosofistas da Sociedade Teosófico: «Cometeram o crime de revelar as doutrinas do ocultismo, fazendo o oculto visível, o que a própria palavra proíbe que se faça. E isto com uma indizível mistura de charlatanismo e de mera drogaria social como no caso de vários teosofistas conhecidos e, notavelmente, da notória Mme Blavatsky, iniciada talvez na ciência dos invisíveis tibetanos, mas com certeza na de qualquer Mackelgue (?) ou Crookes mais da nossa civilização. A investigação do Dr. Hodgson fez explodir essa charlatanice da russa. A confusão mental, a indisciplina característica dos teosofistas atraiu apenas os congéneres incompletos de espírito. Que lhes façam muito bom proveito! Que diferença, mesmo de mero tom, entre a pobreza de espírito dos teosofistas e a magnífica misteriosidade dos escritos dos Rosa Cruz! Nestes, mesmo quando nada compreendemos, sentimos a força, a ciência dos Mestres da Sabedoria» .
                                               
Para terminarmos, deixando ainda bastante por transmitir, diremos que Fernando Pessoa, embora sempre crítico da Sociedade Teosófica, reconheceu natural e justamente ainda assim um certo valor de iniciação menor e equiparou-a  à Maçonaria e à Antroposofia, por exemplo, ao escrever «iniciado exotérico é, por exemplo, qualquer maçon, ou qualquer discípulo menor de uma sociedade teosófica e antroposófica»
(125A-8),  entendendo que a entrada ou avanço no caminho espiritual era possível nelas, e reconhecendo o relativo valor das obras teosóficas como divulgações pioneiras que permitem melhor «compreender os fenómenos, conhecimentos e poderes ocultos, os fins das sociedades místicas e, em certo modo, reler mais inteligentemente os tratados» (54-50).
Já interrogando-se apreensivo sobre o carácter confuso de Blavatsky e do seu "penúltimo mestre" Aleister Crowley, adentro dos esquemas caracterizadores dos graus das ordens ocultistas inglesas, que tanto o enredaram, escreveu como que desculpando-os: «O que são os graus místicos, mágicos e alquímicos? O que é o subgrau de Senhor do Limiar (A confusão psíquica em Cagliostro, Blavatsky, Crowley, é isso?
Finalizemos esta homenagem a Blavatsky e a Fernando Pessoa, no dia dos seus 88 anos de libertação da Terra e entrada nos mundos subtis e espirituais, citando-o numa pequena frase em que  se afirma elo e discípulo da sua crença e aspiração à tradição dos mestres, que sempre manteve, sob diversas designações, ao longo do seu percurso sinuoso e serpentino, nos sentidos positivos e negativos,  e que afirmou mesmo iniciática e templariamente no final da vida, reconhecendo que «fora de dúvida Blavatsky era um espírito confuso e fraudoso; mas também é fora de dúvida que recebera uma mensagem e uma missão de Superiores Incógnitos».

domingo, 26 de novembro de 2023

Dia de Nossa Senhora. Uma oração e consagração íntima e templária, transcrita dum diário de 1986.

                                          

8 de Dezembro de 1986 [Mítico dia da Concepção imaculada ou pura de Maria]

«Dia de Nossa Senhora, e ao mar venho  e saúdo o seu excelso ser e  abro-me ao fogo que do Sol desce e à espuma pura que do abismo sobe e meu ser sente-se então baptizado na sua intimidade ou interioridade...

Quem és, ó Senhora da Noite e do Oceano sem fim?

Meu ser prescruta teus mistérios e  prometo até diariamente alguma devoção que seja esforço de penetrar nos teus segredos e de receber as tuas vibrações para que a mulher seja sagrada e pura, para que o lar seja virtude  e exemplo, para que o amor e alegria brotem da harmonia da polaridade interna e externa...

Meu Deus, que habitais nos corações e nas casas dos que te invocam como Pai e Mãe, dá-me a graça de ser um bom Pai com a mulher que será a Boa Mãe e em quem eu encontro o Maria e o Jesus que será em mim não o refém dum mundo egoísta, mas o portador do Cristo glorioso, transfigurador.

Das brumas do longínquo e do possível a nossa esperança erguer-se-á sempre melhor. Que prosperemos, porque senão estagnamos, e não nas posses mas nas dádivas puras, e nas religiões, mas justas, e nas orações sinceras e consequentes. 

 Meu Deus, aqui renovo os meus votos de castidade, pobreza e obediência. Que os desfaça apenas se for meu destino ou missão casar-me nesta vida. Aceita-me como discípulo eremita, ou então como homem casado, ó Cristo Jesus, mestre da minha alma.

E para ti, Virgem, neste dia de Ti, que a mulher em mim, o desejo de amor, de compaixão, de beleza e de conforto se realize no puro contacto com o Todo, as  pedras, sol, vento, dor; que não precise assim de intimidades especiais com quem quer que seja nem as desenvolva, antes haja em mim um fogo sagrado que arda no meu coração e que eu adoro pela atenção ou consciência alentadora dele, e que é um diálogo com a Inteligência e o Amor puros que és, ó imensa e infinita Divindade que enches tudo enquanto vida e em quem temos o nosso ser, subtilmente, desconhecidamente...

Deus, Deus: Non nobis, Domine, Non Nobis sed Nomine Tuo da gloriam. [Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu Nome [vibração despertante] dá glória]

Invoco os cavaleiros de Santa Maria, os Templários de Cristo, os Fiéis do Amor e os Anjos e Arcanjos para que estejam na minha guarda ou inspiração e que eu seja um deles.  Amen, INRI. [In nobis regnat Ignis]»

Arcanjo de Portugal, na charola do convento templário de Tomar. Em madeira, séc. XVI.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

"A Franco-Maçonaria Mística" por Bô Yin Râ. Tradução do alemão para francês por Oswald Wirth, em 1926, e para português em 2023 por Pedro Teixeira da Mota.

Para celebrarmos o 147º aniversário do nascimento do notável mestre alemão Bô Yin Râ resolvemos traduzir do francês para português, este tão valioso texto escrito em 1925 em alemão por Bô Yin Râ e oferecido a Oswald Wirth, que o traduziu em francês e  o publicou em 1926 na revista mensal que dirigia Le Symbolisme organe d'Initiation a la Philosophie du grand Art de la Construction Universelle, com treze linhas de apresentação e duas pequenas notas, com pouca importância e que não transcrevemos. 

O texto de Bô Yin Râ é  bem valioso  sobre a essência da realização espiritual e que a Maçonaria Mística que surgiu nos primórdios civilizacionais saberia e transmitiria, ao ensinar a construir templos e edifícios exteriores e simultaneamente o templo espiritual interior, . As pedras vivas, a pedra de fundação são expressões da mesma linguagem e tradição no Cristianismo, que perpassara também nos mistérios egípcios e greco-romanos, e em vários dos seus livros Bô Yin Râ utilizará esta linguagem simbólica, com alguns dos seus quadros dando-nos perspectivas visuais dos templos internos ou espirituais de que os terrenos são aproximações.

  O texto é tão bom, toca nos aspectos mais importantes da realização espiritual e religação íntima divina, que dispensa, pelo menos por agora comentários, embora deva surpreender os mais conhecedores da obra publicada de Bô Yin Râ pois desconhecerão este texto, do qual provavelmente o original em alemão se perdeu ou eventualmente se encontra inédito. Oiçamos então o profundo e tão elevado ensinamento deste notável mestre.
                                        
«Apesar da aparência resultante da diversidade de ritos e obediências, existe uma só e única Maçonaria na Terra.
Os sistemas em prática reduzem-se a duas categorias, segundo a sua tendência seja esotérica ou exotérica.
A Maçonaria esotérica é velha como o mundo; foi ela a mãe das organizações exotéricas e da Maçonaria moderna dita humanitária.
O Ir: Henry Gray mostra-nos na [revista] Acacia, como ela se desenvolveu sob a influência das tradições dos Companheiros Artesões [des traditions compagnonniques]. Que nos seja permitido aqui chamar a atenção do leitor para uma evolução mais misteriosa, que não foi suficientemente tida em conta.
"Aprende a tomar conhecimento de ti mesmo!" Este é o preceito que está na base de toda a iniciação. A Maçonaria original, que se nos revela na essência da Maçonaria Mística, não é outra coisa senão o verdadeiro serviço divino aplicado a si mesmo. Eis como se exprime sobre este assunto um Mestre cuja competência se impõe:
No decorrer de uma longa série de milénios, o ser humano concebeu inúmeras formas de culto divino. Dependendo da representação que se conseguiu fazer da Divindade, alcançaram-se inúmeras possibilidades de expressão, desde as manifestações mais grosseiras 
até se atingir a mais alta espiritualidade.
Ora, todos os cultos procedem de uma concepção antropomórfica, como se Deus tivesse necessidade de ser servido pelo homem, como se a divindade esperasse do homem um serviço do qual ela não pode prescindir, tal como o ídolo inerte só é animado na imaginação dos seus adoradores que pelo culto que lhe é prestado.
Os modos superiores de semelhantes cultos são susceptíveis de fecundar o sentimento religioso, dando o impulso germinante a aspirações muito nobres, inspiradoras de símbolos expressivos de concepções refinadas.
Mesmo assim, tudo nestes cultos se reduz a um serviço humano e não divino, porque respondem à necessidade que o homem tem de fornecer ao seu próprio espírito um incentivo a se elevar, enquanto procura satisfazer a sua inteligência por formas cultuais que lhe permitem melhor discernir as suas relações com o fundo misterioso das coisas, objeto dos seus sonhos meditativos, que chegam a uma vaga adivinhação, a uma fé positiva ou ao esboço de um conceito filosófico.
Pode resultar para o ser humano uma estimulação poderosa impulsionando-o a descobrir o mundo espiritual, mas o seu avanço só é proveitoso à sua própria alma, pelo que não há serviço divino, no sentido rigoroso da palavra.
Servir a divindade pela celebração dum culto considerado como um tributo que a terra deveria ao céu não é o que consistiu o verdadeiro serviço divino. Este resulta da consagração livre de todas as energias e faculdades do homem para a realização da vontade divina, tendo em vista a sua dócil subordinação à direção do Deus vivo que se manifesta pela espiritualidade humana. Liberto do caos do desejo impetuoso, o verdadeiro servidor de Deus é objeto de um trabalho interior de cristalização, graças ao qual cada átomo energético sofre a influência da eterna força coordenadora cósmica, que o conduz ao lugar propício ao cumprimento da sua tarefa...
Que o ser humano peça aos cultos exteriores para contribuírem à sua elevação espiritual e que a acção do culto seja para a sua alma uma fonte de emoção salutar. Mas nem por isso deixará de ser certo que ele só pode unir-se a Deus devotando-se sem reserva à realização das intenções divinas.
Trata-se duma "servidão" que só pode conduzir à liberdade suprema. Quem serve aprende a reinar. Pela subordinação, o inferior tende a assimilar o superior, aceitando o ritmo vibratório dele. Na vida cósmica, a influência suprema transmite-se assim integralmente através de toda a cadeia dos éons.
As aspirações espirituais saudáveis do ser humano nesta Terra tendem, em última análise, à manutenção da individualidade em plena consciência por toda a eternidade, para além da dissolução do corpo e sem ser afetada por essa dissolução. Ora, como realizar esta imortalidade, senão pondo todas as forças em concordância com a centelha divina eterna: o núcleo de cristalização coordenador de tudo o que é consciente.
Todas as artes ocultas, incluindo as mais espantosas actuações dos faquires, não fazem avançar nada, pois os resultados obtidos limitam-se ao mundo da manifestação física, que desvanece-se para nós logo que o cérebro do nosso organismo animal deixa de estar à nossa disposição para transformar as nossas sensações.
De que servem, por outro lado, os privilégios de um visionarismo lúcido, que se presta, no máximo, à percepção das imagens geralmente não percepcionadas da aura planetária, onde as nossas formas-pensamento flutuam como fantasmas? E quando o visionário imagina consequentemente que as suas visões o levam para o mundo do puro espírito, está a ser vítima de uma ilusão grosseira e perigosa.
Não dissimulemos também a nós próprios a vaidade de todo o discernimento racional e de todo o conhecimento aplicando-se aos mundos do espírito, uma vez que toda aquisição é aniquilada assim que as funções do cérebro cessam. Nenhum vestígio permanece então na consciência animal, a menos que ela tenha conseguido antecipadamente, enquanto ainda possuía o cérebro, realizar a união com o seu Deus vivo, a centelha divina do nosso santuário interior.
Esta união de todas as forças da alma, de todas as possibilidades sensoriais, incluindo as que provêm unicamente do corpo, realiza-se no eu mais profundo, na intimidade mais sagrada da sensibilidade interior, a única capaz de sentir o divino e de o atingir no único santuário onde se pode encontrar o Deus que está efetivamente vivo em cada um de nós. A procura de semelhante união propõe-se ao ser humano enquanto tarefa espiritual, a única verdadeiramente digna de todos os seus esforços.
O Reino dos Céus sofre violência, e só os violentos se apoderam!
Sem "violência", como rejeitar as objecções incessantes de um intelecto apegado só ao mundo físico e às especulações que dele derivam? Como obter a calma interior que nos permite perceber o nosso eu no seu aspecto primordial, enquanto que Deus vivo, que, em cada momento da nossa existência nos recria à sua imagem? A eterna criação deste Deus faz de nós o que somos espiritualmente. Tornemo-nos cada vez mais semelhantes a ele, para que, participando no seu discernimento, possamos manter a nossa identificação de consciência através de toda a cadeia dos eons.
Não se trata aqui de um esforço tenso, nem de uma concentração torturadora da vontade, mas simplesmente de uma atenção constante para repelir com energia as intromissões indiscretas do intelecto, cuja presunção visa impor-se num domínio que lhe será sempre inacessível. Uma vez domado o intelecto, beneficiamos da grande calma recolhida, a qual permite  então que as nossas energias sentimentais se consagrem voluntariamente ao serviço do Deus interior, pelo qual vivemos e somos. Esta consagração permite ao homem eterno ressuscitar do seu túmulo, depois de ter nascido do espírito, para se tornar imagem e semelhança do seu "Pai" que está nele, no "céu" interior do homem.
Logo que conseguimos domar o nosso intelecto, ele presta-nos excelentes serviços como tractor favorecendo os nossos progressos, porque é bom considerar intelectualmente o que foi sentido em espírito. Juntamos assim os materiais de uma construção mental a erigir segundo as leis da lógica, a fim de nos ser possível conservar em boa ordem os tesouros da nossa sensibilidade interior. Estes correriam o risco de se dispersarem por todos os ventos se, graças ao abrigo que nós próprios construímos, não fossem subtraídos à agitação da nossa vida diária.

O que é essencial é que não nos abandonemos à direção do intelecto, quando, à luz pálida da nossa aurora intuitiva, enveredamos na via das explorações que nos devem conduzir à descoberta do núcleo vital que nos é comum a todos, tal como temos em comum o mesmo domicílio ultra-íntimo, uma mesma maravilha para sempre inconcebível, uma mesma "joia central da flor de lótus".
O intelecto é um excelente explorador, hábil a apanhar os traços susceptíveis de levar ao discernimento das coisas, cuja última manifestação se efectua através do mundo físico dos sentidos. Neste domínio, o intelecto merece toda a nossa confiança e devemos favorecer o seu pleno desenvolvimento, pois também ele é de essência divina e, desde que não ultrapasse as suas atribuições, a sua ação é benéfica.

Para chegar a Deus, não procuremos exteriormente, nem mesmo nesse exterior que tantos investigadores consideram como "interior", simplesmente porque não lhes é revelado por nenhum dos seus sentidos! A mente humana eternizar-se-ia em vão a procurar de Deus nas mais elevadas regiões espirituais; jamais a Divindade será encontrada aí, pois só se manifesta dentro de entidades espirituais: a divindade nunca será encontrada aí, pois só se manifesta no seio de entidades espirituais que são da sua própria natureza. Não procuremos representar-nos Deus isolado, como uma personagem existente por si mesma, confinada nas regiões espirituais mais sublimes; dele se dirá, como da força da natureza, que é acção até ao mais minúsculo átomo do universo físico, mas que se oculta a qualquer percepção direta.
Cabe a nós descobrir Deus em nós próprios, onde ele vive a sua vida eternamente criadora. Esta descoberta expõe-se a um erro de extrema gravidade, pois pode levar-nos a erigir-nos em ídolos aos nossos próprios olhos. É portanto prudente confiarmos nestes assuntos à orientação daqueles que já participam na consciência divina, cujas forças estão postas ao serviço de Deus e que vivem em união com o tipo primordial cri
ador.
                                         
É a estes eleitos que operam sobre a humanidade desde as eras mais recusadas que a Maçonaria deve as suas origens, pois, por intermediário da Arte, eles transmitiram ao homem ainda animal, o anúncio de um reino espiritual.
Sob a sua inspiração, o homem começou a construir. A construção do templo exterior fê-lo aprender a erigir um santuário no seu interior. Ao talhar a pedra para o edifício material, foi levado a trabalhar simbolicamente sobre si próprio, a fim de se adaptar ao Templo espiritual a que aspira tornar-se uma pedra viva.
Esta Maçonaria primitiva desenvolveu-se e manteve-se até ao Renascimento, época que determinou em declínio.
Num artigo intitulado Le Temple ensevelli, O Templo enterrado, propomo-nos explicar o que foi esta Maçonaria primitiva e como ela se constituiu.»

Bô Yin Râ.

Dado em português à luz no dia de aniversário de Bô Yin Râ, de 2023. Que ele nos possa inspirar luminosa e divinamente!

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

As mensagens dos cisnes chegarão perenemente aos jardins das almas, mesmo nas épocas de maior manipulação e opressão...

"O cisne (hamsa, e os paramahamsas são as grandes almas) retorna ao jardim de Nala" e transmite a mensagem da amada Damayanti, de um episódio do Mahabharata... Pintura Pahari, c. 1800,  Museu Nacional de Nova Deli, onde comprei há muitos anos esta reprodução..
O aumento do custo da vida, a luta mais apertada pela sobrevivência, a agitação, a velocidade, a superficialidade, o ruído, o excesso de informação e contra-informação, a censura e perseguição ao pensamento livre por grupos de pressão, a globalização, as lutas políticas, os conflitos internacionais, a mortandade de crianças e mulheres, os extremismos e neo-liberalismos opressivos e a derrocada moral e ética da União Europeia e do Ocidente norte-americanizado tendem a tornar muitas pessoas mais inquietas, superficializadas, dispersas, frustradas. E assim enfraquecidas, tornam-se mais desconfiadas e menos genuínas, estáveis ou auto-conscientes da presença espiritual em si mesmas ou, que seja, de uma certa paz, calma, alegria próprias da alma pura...
Para não se perder o discernimento próprio e não se ser tão  manipulado e contaminado, há que resistir a tal mau tempo nos canais, a tal furacão de desinformação e corrupção, de insensibilidade e arrogância, evitando verem-se os canais televisivos de manipulação e, antes, recolhendo-nos mais e reagindo menos à pressa, perseverando-se no pensar, escrever, orar, meditar e intuir o que é o mais certo ou apropriado, justo ou verdadeiro. E realizá-lo...
E para que coração não se vá tornando traumatizado, insensível e petrificado é importante cultivarmos tanto gostos, altruísmos, amores, passatempos instrutivos, investigações, actividades artísticas e criativas, como algumas amizades ou amores maiores por onde ele se possa expandir, irradiar e melhorar os seres e o mundo...
Não se deixe portanto ir abaixo pela desilusão, a impotência, a inércia, o sofrimento e antes transmute e expanda a sua alma e consciência com regularidade, frequentando mais a  natureza, as artes, a criatividade, a espiritualidade, os diálogos estimulantes.
Foi o mestre indo-persa Dara Shikoh, um sufi universalista, pioneiro do comparativismo religioso, príncipe mogol semelhante ao príncipe indiano Nala representado na pintura, quem escreveu uma obra intitulada A Bússola da Verdade apontando para a necessidade da sintonização e meditação interna para discernirmos os melhores caminhos, ligações e realizações, alertando-nos para perseverarmos no trabalhar, aspirar, aperfeiçoar e partilhar.
O Caminho evolutivo e espiritual faz-se caminhando interiormente e exteriormente, ajudando, meditando, amando, e não tanto intelectualizando  ou "proselitando", e devemos relembrar-nos que a luz do Sol visível não dura sempre e que no além, se não desenvolvermos o corpo espiritual, poderemos estar semi-cegos para a luz do Sol Divino.
Assim não percamos muito tempo com o que não é essencial, com o que não contribui para o nosso despertar e iluminar, para o alinhamento criativo, aperfeiçoador e dinâmico com o corpo místico da Verdade e do Amor, da Humanidade e da Divindade.
Saibamos recolher-nos nos jardins da alma e da Natureza e neles receber as energias e ideias, aves e luzes mensageiras da alma mundi, dos mundos espirituais e da Divindade.
Saibamos ser lúcidos e livres, fraternos e verdadeiros, aspirando ao alto, aos mestres e santas, anjos e deuses, e sobretudo amando a Divindade e acolhendo suas aves, sinais e mensageiro(a)s...

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Tolstoi, 113 anos da sua morte. Pensamentos libertadores, extraídos de "A Anexação da Bósnia e da Herzegovina pela Austria", traduzido por Jaime de Magalhães Lima. 1909.

 Pensamentos bem simples, directos e verdadeiros, mas que parecerão muito utópicos ou revolucionários, de Tolstoi, e partilhados para comemorarmos o dia do seu aniversário de libertação da Terra, 20 de Novembro. Extraídos da tradução e apresentação por Jaime de Magalhães de Lima [1859-1936], anteriano e tolstoiano, pois peregrinara à  Iasnaia Poliana e encontrara-se com ele (e publicando sobre isso), do livro a Anexação da Bósnia e da Herzegovina pela Áustria, dado à luz em 1 de Janeiro 1909, na popular A Editora, ao Largo Conde Barão, 50.

«Estamos tão acostumados a pensar que alguns homens devem governar a vida dos outros que as leis emanadas de alguns deles, mandando aos outros crer ou proceder de certo modo, não nos parecem estranhas. Se os seres humanos podem publicar tais decretos e serem obedecidos é porque não reconhecem nas pessoas aquilo que é a verdadeira essência de todo o ser humano – a Divindade da sua alma, sempre livre e incapaz de se submeter a qualquer coisa que não seja a sua própria lei, isto é, à consciência e à lei de Deus...» p. 9-10.

[Eis uma afirmação altamente revolucionária mas baseada na realidade e verdade íntima do ser humano. Por isso tanto afã nos mentores e defensores da Nova ordem Mundial, do transhumanismo infrahumanista de negarem o espírito e a imortalidade da alma-espírito, e tentarem impor as mais diversas derrogações da leis naturais da Ordem do Universo e o seu Logos divino, isto é a Inteligência amorosa ou compassiva.]

«O patriotismo, para todo o membro de um grande Estado e para mim, um russo, não somente envolve a ausência de simpatia com milhares e milhões de homens, polacos, fínios, judeus, e várias tribos caucásicas, mas também resulta em que eu seja o objecto do ódio dos homens, aos quais não fiz mal algum e com os quais nenhum contacto tenho. Para as pequenas raças ou nações escravizadas é ainda pior: pelo lado espiritual é a causa justificativa do ódio a um povo que lhes é estranho, e pelo lado material produz toda uma série de opressões, perdas e sofrimentos; e este sentimento obsoleto, grosseiro, e moral e materialmente pernicioso é advogado e insinuado por todos os meios, da parte daqueles a quem aproveita, e é ingenuamente aceite como virtude e bênção por aqueles aos quais é manifestamente nocivo...». p. 22.

«Os povos devem ter consciência da sua dignidade humana, igual para todos, incompatível com o domínio de alguns sobre a vida dos outros, ou com a sujeição desses outros a qualquer. Esta consciência é unicamente possível para os homens que conhecem o seu destino na vida e seguem nos comportamentos a direcção que deriva daquele conhecimento. E só conhecem o seu destino na vida e seguem nos actos ou comportamentos a direcção que daí deriva, aqueles que tem religião [ou religação], ou que estão a nascer de novo permanentemente para o amor e o bem..
  p. 24
 

«Hoje ainda vivo; amanhã, provavelmente, já não existirei, mas terei partido, para sempre, para o lugar donde vim. Enquanto vivo, se estiver em relações de amor com os homens, será isso para mim a alegria, a paz e o bem...» p. 25

 «Para um ser humano que acordou para a compreensão religiosa ou espiritual da vida, o que se chama a autoridade do governo consiste meramente na atribuição, que a si mesmo fazem certos homens, de uma importância imaginária, que carece de qualquer justificação racional, mantendo a sua vontade por meio de violência. Para o homem acordado, esta gente desvairada e, em regra, venal, que coage os outros, é como salteadores de estrada que prendem os viajantes e os violentam. A iniquidade desta violência, as suas dimensões e organização, não pode alterar-lhe o carácter essencial. Para o homem que despertou, aquilo que se chama o governo não existe, e não há por conseguinte justificação alguma da violência cometida em nome do Estado, e não pode ter parte nisso. A violência dos governos será abolida, não por meios externos mas unicamente pela consciência dos homens que acordaram para a verdade».
  p 26.

 [Um certo idealismo utópico foi fortemente afirmado por Tolstoi, e hoje no século XXI, com os Estados cada vez mais organizados e opressivos nos seus actos, damos conta como os meios externos revolucionários são muitas vezes necessários pois a democracia instalada está rota e é nociva. Mas quantos acordam para algumas verdades externas e para a realização da sua verdade e missão íntima? Muito poucos, tanto mais que há milhões de limitados ou falsos pregadores ou instrutores, pelo que o discernimento do caminho da Verdade é bem difícil. Meditemos bem e seja a nossa acção ditada pela nossa justa e sã ideia ou convicção, e manifestada com inteligência e amor para o Bem...]

«A relação com a fé fazia com que a maioria dos seres humanos, não reconhecendo em si qualquer autoridade espiritual independente que os guiasse, submetia-se cegamente à direcção de uma minoria escolhida, tanto na compreensão da vida como na direcção das suas acções, enquanto a minoria, atribuindo-se qualidades supernaturais, considerava-se com o direito de dirigir simultaneamente a vida espiritual e a corporal da maioria.» p. 35.

 [Auto-conhecer-nos, e tornar-nos independentes, não perdendo as nossas forças em submissões erradas e nocivas.]

  «A consciência de que a lei velha  está antiquada, gasta e que levou-nos à maior miséria e anormalidade de vida, e de que a nova lei de liberdade e amor revelada há dois mil anos exige aplicação e realização, tomou-se agora tão íntima dos seres humanos, não só no nosso mundo cristão mas em todo mundo, que um despertar em relação à escravidão e à perversão, nas quais se vê mantido há tantos séculos, pode, julgo eu, surgir de repente. Porque na verdade, este acontecimento iminente, imensamente importante como é, depende não de quaisquer acções externas, que podem encontrar obstáculos invencíveis, mas inteiramente da consciência dos homens - que é sempre livre e nunca pode ser estorvada. De nenhumas façanhas ou acções difíceis em conflito com os inimigos mais fortes carece agora o povo do mundo inteiro para a sua emancipação, mas só de uma coisa, a coisa mais natural e normal ao homem - nem mesmo um acto, mas meramente uma abstenção - não fazer coisas contrárias à nossa convicção. E nem a convicção nem a abstenção de acções contrárias à convicção de cada um podem ser impedidas.»
p. 46 

[Eis pensamentos ou linhas de força para despertarmos e nos libertarmos mais: Não agir em desacordo com as nossas ideias, ideais, princípios, convicções...]

  «O ser humano pode libertar-se imediatamente de toda a posição difícil, se apenas se lembrar de que Deus vive dentro dele. Deixai apenas que os homens concebam clara e firmemente o que eles são: deixai-os conceber o que foi ensinado por todos os sábios do mundo e o que foi ensinado por Cristo: que em cada homem, - como em todos, - habita o espírito livre eterno, todo-poderoso de um filho de Deus; que o homem não pode governar nem estar sujeito, e que a manifestação desse espírito é Amor. Deixai que os seres humanos concebam isto (e já estão preparados para o reconhecer) e deixai  que eles procedam
em harmonia - ou antes, deixai que eles somente não procedam ou ajam contrariando a sua consciência, e rapidamente, da maneira mais simples e pacífica, todas as dificuldades se dissiparão...» p 49.

«O mal não pode ser suprimido pela força física do governo. O progresso moral da humanidade não é provocado só pelo reconhecimento individual da verdade mas também através do estabelecimento da opinião pública…» 

[No interior e exterior dos seres deveria a Verdade brilhar e fluir mas sabemos como a opinião pública é ou está completamente manipulada, enganada, oprimida, pelo que nos resta trabalharmos pela auto.realização interior e a irradiação possível no exterior, no ambiente, nos grupos e pessoas mais afins...]

E terminará assim o livro: «Os seres humanos só podem [ou devem] submeter-se aquela lei suprema do amor que dá o maior bem estar a cada indivíduo e a toda a humanidade. Só o reconhecimento, da parte dos homens e mulheres, do princípio espiritual que neles está, e o reconhecimento consequente da sua verdadeira dignidade humana [conforme Pico della Mirandola acentuara já no dealbar do Humanismo], pode libertar e libertará da servidão de uns e outros. Esta consciência vive já no género humano, e está pronta a manifestar-se em todo o momento.»

No bosque de faias da Iasnaia Poliana...

 Que estas corajosas, lúcidas e tão verdadeiras quão poderosas palavras e ensinamentos do Logos, inteligência-amor, e de Tolstoi nos fecundem e nos inspirem, tanto para  nos transformarmos como para impulsionarmos os outros a se descobrirem, iluminarem, realizarem e logo as pessoas, os ecosistemas planetários e a Humanidade melhorarem...