segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A carta de 1886 de Antero de Quental a Maria Amália Vaz de Carvalho, acerca da sua recensão dos "Sonetos" e o comentário dela, já após a morte de Antero, contextualizados.

 Transcrição comentada e sublinhada do 2ª e último capítulo do pequeno ensaio acerca de Antero de Quental por Maria Amália Vaz de Carvalho, escrito em 1896, e comemorando a sua morte e  incluído no livro Pelo Mundo Fora.  
Maria Amália transcreveu nele a carta que Antero de Quental lhe dirigira em 24-XII-1886, agradecendo um conjunto de seis artigos publicados no Jornal do Comércio de Lisboa a propósito dos Sonetos completos, então dados à luz.   

 Esses  seis artigos foram publicados num livro em 1889, Alguns Homens do meu Tempo, merecendo então de novo uma carta de Antero de Quental a agradecer o livro enviado, a qual carta Maria Amália não partilha nesta espécie de texto de homenagem (pois Antero morrera em 1891) crítico de 1896, mas que já reproduzimos e interpretamos no blogue, no texto anterior a este, intitulado: Maria Amália Vaz de Carvalho e a crítica aos "Sonetos" de Antero de Quental, e à sua demanda da Verdade, excesso de pensamento, inacção e Budismo. As réplicas. 
 Passemos então a ouvir Maria Amália Vaz de Carvalho, na segunda parte do seu artigo jornalístico em memória de Antero de Quental, incluído no seu livro Pelo Mundo Fora. Os sublinhados estão apenas nas partes mais importantes da carta de Antero. O texto escrito dentro dos sinais [[   ]] é o meu comentário...                                                
                                                      
«Quando o livro dos Sonetos apareceu escrevi eu um estudo sobre eles, que não tinha, já se vê, outro merecimento além de uma sinceridade absoluta e de uma imensa simpatia. 
Lembra-me de que lamentava do fundo da alma que o autor dessas belas poesias tão raras na nossa literatura, ― a qual como todas as literaturas meridionais não peca pelo excesso de pensamento ― tivesse consumido a vida, que tão belas coisas podia dar-lhe, metido em si mesmo, naquela espécie de meditação alucinada que se traduzia, é verdade, em versos magníficos, mas versos que eram, como as pérolas, produtos de uma dor mortal. 
E revoltava-me contra a solidão mental em que Antero se concentrara, contra as hesitações do seu querer, contra as flutuações do seu pensamento, contra o pessimismo búdico da sua doutrina, contra tudo que fizera dele um filósofo germânico, ou um sonhador nebuloso e doente, e o separava da vida, da vida que tem tantos risos no meio das suas charnecas desoladas, ou dos seus sarçais cheios de espinhos e de répteis...
Mesmo com o risco de parecer vaidosa, não quero deixar de oferecer aos meus leitores, a carta, até hoje absolutamente inédita, que Antero de Quental me escreveu então, depois de ter lido os meus artigos que se publicaram primitivamente no Jornal do Comércio de Lisboa, e que hoje estão incluídos no volume intitulado Alguns homens do meu tempo
Aí vai a formosa e eloquente carta: 
Porto, 24 de Dezembro [1886]
Minha Senhora
Agradeço-lhe muito os seus artigos no Jornal do Comércio, e creia V. que o não faço só por civilidade, ainda que não é cousa que se deva desdenhar par le temps qui court. Não lhe direi que me agradaram os seus artigos, porque isso é o menos; dir-lhe-ei que me comoveram. Há neles uma sinceridade, que me encantou, e um tom fraternal que me foi direito ao coração, onde quero que não morra nunca a vibração dessas palavras amigas. 
 Creio que V. se engana na apreciação que fez das doutrinas chamadas (quanto a mim impropriamente) pessimistas e nos receios que lhe inspiram as tendências búdicas que começam a manifestar-se por todos os lados, em sociedades que atingiram o nec plus ultra da civilização, ou em indivíduos que atingiram o nec plus ultra do pensamento. 
Tudo isso, é verdade, está ainda bastante obscuro e confundido com elementos estranhos e até contraditórios, e por isso me não admira que não possa ainda ser apreciado sem grandes apreensões. O meu livrinho, apenas aqui ou ali em meia dúzia dos últimos sonetos, fere a nota exacta e sã, porque infelizmente morreu-me o dom dos versos, precisamente quando começava a pensar e a sentir alguma cousa que realmente merecesse ser posta em verso.
Não podia ele, tão incompleto e obscuro, justamente onde mais cumpria que fosse claro e amplo, dissipar aquelas apreensões, antes era natural que contribuísse para as radicar. Mas a minha convicção é que tais apreensões não são fundadas e que entre os
sentimentos naturais e espontâneos do coração humano, entre o seu ideal de justiça, de harmonia e de beleza, e o ponto de vista ascético do Budismo, não só não há contradição verdadeira, mas que, pelo contrário, é só nessa esfera que eles encontram a sua mais perfeita expressão, libertos de muitas ilusões e de muitas imperfeições que lhe andam forçosamente misturadas, e atingem a plena consciência do que são e para que são. E seria singular com efeito que a doutrina, que entre todas, faz consistir no Bem a verdade suprema da existência humana, pudesse colidir com aqueles espontâneos impulsos da nossa natureza, que não são, no fundo, senão formas e momentos, mais ou menos obscuros, mais ou menos incompletos da nossa fundamental aspiração a esse mesmo Bem! 
A verdade é que a civilização moderna chegou, no século actual, como a civilização antiga, no período do Império Romano, a um ponto em que, sob pena de completa ruína, o problema metafísico-psicológico tem de ser sondado a uma profundidade desusada e proporcional ao grau superior da mesma civilização.
Hoje, como então, as questões metafísico-psicológicas são a chave de todas as outras questões porque, tendo o próprio progresso das instituições e das ideias arruinado os antigos alicerces morais da sociedade, a grande questão, a questão vital e inadiável não é já a do aperfeiçoamento das instituições nem do aumento dos conhecimentos, mas a da organização teórica e prática da vida moral, a criação da ordem nas consciências, em uma palavra a remodelação do homem interior, sem o qual o outro homem, da sociedade e da vida prática, por forte e sábio que pareça é mais miserável que o escravo mais embrutecido. 
O progresso gigantesco do naturalismo, filho de uma civilização poderosa e complexa como nenhuma, só poderá ser equilibrado por um progresso equivalente do ascetismo. Sem esse equilíbrio a sociedade moderna, que já hoje nos causa mais terror do que admiração, poderá continuar ainda por algum tempo de poderosa, tornada formidável, e, de formidável, bestial: mas o homem, o verdadeiro homem, isto é, o homem moral, terá morrido: e morto ele, tudo cairá, por que só ele sustenta a grande mole social. A sociedade é, antes de tudo, um facto de ordem moral.
Mas não continuo com estas reflexões, porque desejo fazer delas o assunto de um escrito, até a certo ponto em resposta aos artigos de V. e que publicarei em forma de carta, se V. levar isso a bem. 
E termino, minha senhora, pedindo a V, que me consinta assinar-me daqui em diante, como realmente sou, seu muito amigo. ― Antero de Quental” 
*******
Destacarei apenas na carta de Antero de Quental, para além dos sublinhados, a sua valorização da libertação das ilusões e desejos, bem como da compaixão, o Bem supremo búdico, ou iluminado, e o considerar que estamos na altura de aprofundar as questões metafísico-psicológicas, o que em outros momentos denominou Transcendentalismo, Panteísmo espiritualista e ainda Panpsiquismo, e que são conducentes ao renascer do ser moral, ético, o "homem interior", fundamental para a evolução das sociedades.
Prosseguem agora as reflexões, sobre o teor da carta, escritas por Maria Amália Vaz de Carvalho, seguidas pelos meus comentários entre [[...]]

«Esta carta tão bela na forma, e tão profunda no pensamento, apresenta porém a contradição fundamental a que Antero sucumbiu.
[[Não foi por contradições filosóficas que Antero sucumbiu seja em vida seja na morte, pois quando foi preciso entrou em acção e quando se suicidou fê-lo pelo estado dos seus nervos e pela desilusão emotiva e social que o afectou muito nos Açores, nos últimos dias da sua vida]])
O ascetismo é a contemplação mais inerte: o Bem demanda a actividade mais incansável, o esforço mais tenaz.
[[Certa pequenez de afirmação, pois o ascetismo é recomendado em todas as religiões, de algum modo. E hoje, com o excesso de consumismo, agitação e informação, mais ainda é útil nem que seja para estarmos mais calmos, lúcidos, não manipulados e alienados. E a contemplação, difícil, só é possível havendo certa imobilidade das vagas de pensamentos, desejos e acções, dando-se então a experiência da unificação ou mesmo da Unidade, mas daí resultando frequentemente inspirações para a acção.]]
Como conciliar estes dois termos opostos? Se para o extático e contemplativo pensador a quem o nirvana sorri como o supremo fim da sua ascensão ideal, cada homem não é mais do que um momento que toma consciência de si e logo passa, aquele que na terra procura o Bem e tenta pelo seu esforço criá-lo, sabe que se dissolvem as formas em que a consciência se encarna, mas que ela, a sublime chama não se apaga jamais... Nós os passageiros de um dia que conseguimos por instantes guardá-la no nosso seio mortal, passamos rápidos sim, mas não antes de a transmitirmos àqueles que nos sucedem sempre mais pura, e sempre mais intensa...
[[O nirvana não tem de ser o supremo fim dos contempladores que atingem em geral apenas estados mais claros, serenos e ampliados de consciência. Algumas outras compreensões e visões do fim supremo podem ser demandadas ou encontradas. Tanto Antero de Quental como Maria Amália Vaz de Carvalho falham ou erram quando não conseguem descobrir, intuir, sentir, vivenciar conscientemente a individualidade espiritual e perene no ser humano, ambos soçobrando, ainda que transmitindo o bem às próximas gerações, no que eles pensavam ser a mortalidade da alma-espírito... Para uma católica, como pensaríamos ser Maria Amália, até parece algo contraditório, o não afimar a imortalidade espiritual individualizada...]]
O património real da humanidade é este: por este lhe vale a pena padecer e lutar. Este não morre com as pobres gerações que se sucedem como as folhas das árvores, como as ondas do mar...
Não é pelo Budismo antigo, ou pela ascética renúncia aos bens reais da vida que a sociedade tem de salvar-se. É pelo exercício activo das suas energias espontâneas, é pela fé na sua missão do bem, na sua ascensão a qualquer eminência moral, que ela ainda não antevê de longe, mas que existe decerto, mas que deve existir, ou este instinto de progresso a que obedecemos, seria mais uma ironia atroz entre outras tantas!...
[[Maria Amália Vaz de Carvalho, depois de mais uma vez atacar o ascetismo e renúncia aos bens ilusórios da vida, como se no ascetismo fosse necessário renunciar a tudo, repete o que Antero escreveu e recomendou sobre o Bem em dezenas de cartas, embora provavelmente não o soubesse senão pela leitura das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX. ]]
A prova de que esse ascetismo a que Antero recorre na sua bela carta é estéril, é que ele, querendo salvar por este modo a sua clara consciência e o seu espírito genial, veio acabar na morte voluntária, no suicídio banal dos vencidos e dos fracos!
[[Que maluquice, pois Antero no fim da sua vida estava a perder ou a obscurecer a sua clara consciência, esfrangalhada pelos nervos, apreensões e sofrimentos. O ascetismo de Antero, ou seja a sua vida frugal e o seu desprendimento da vida social e das ilusões da vida só o ajudou a viver mais tempo. Embora certamente a morte voluntária assinale um excesso de desprendimento em relação ao corpo físico e ao seu normal ou natural morrer. Sofrimento afectivo pela separação das crianças e pela dificuldade de se ambientar na ilha açoriana? Orgulho, falta de paciência, consciência das limitações cada vez maiores que impendiam sobre ele? Difícil acertamos plenamente no que mais pesou na sua decisão]]
Infelizmente era eu, tão mesquinha, e não ele, tão grande, que tinha razão, e essa razão, foi o seu acto extremo que ma veio dar.
[[Que exagero, a “mesquinha”, ou pequena, mas bem teimosa , tentando interpretar mal o suicídio do grande ser, culpando o seu ascetismo e budismo de o terem levado a tal]]
Ninguém pensara mais alto e mais justo que esse homem de uma consciência tão delicada, de uma penetração filosófica tão subtil, e cujo entendimento parecia talhado para as mais elevadas especulações da metafísica e da psicologia.
E no entanto ele não achou outra resolução ao problema que está presentemente posto diante dos olhos das sociedades extra-civilizadas e dos indivíduos que pensam intensamente, senão a do suicídio silencioso. 
 [[Como se Antero tivesse pensado que o suicídio fosse a solução para qualquer questionamento metafísico-psicológico, vivenciando-o provavelmente apenas porque se sentia em forte sofrimento físico e psíquico e porque considerou que pouco mais de valioso conseguiria fazer na Terra]]
É profundamente desoladora a fase do espírito humano que, de vez em quando, se manifesta em factos como este.
Como escapar a este estado de descrença absoluta em qualquer destino ulterior da nossa espécie? Retroceder à boa Natureza, à primitiva ignorância dos simples, como manda Tolstoi? Mas em primeiro lugar a natureza não é boa, depois, quem sabe pode porventura, e só por efeito da sua vontade, começar de um dia para o outro a ignorar?...
[[Retroceder à boa natureza não implica retornar à primitiva ignorância, tanto mais que é bem difícil ignorarmos o que se passa, como alude. Todavia, o contacto maior com a natureza e uma vida mais simples, certamente facilitam o desabrochar de forças vitais e espirituais, tão enaltecidas por Tolstoi (alguém que Maria Amália Vaz de Carvalho também estudou) e que impediriam o suicídio. Pouca gente se lembra ou tem em conta quão mal Antero digeria os alimentos ou dormia, dois aspectos essenciais para se estar com a mens sana, algo que certamente foi uma das causas predisponentes à libertação voluntária do corpo, que já tanto o fazia sofrer e do qual estava  desprendido]]
Cada sociedade que chega ao extremo da sua civilização particular, o que, exaltando de um lado o orgulho natural do homem, produz por outro, no espírito dele, uma irritação doentia, uma penosa desesperação resultante dos limites que este acha sempre à sua curiosidade transcendente ― cada sociedade que atinge esta perigosa eminência, está por esse mesmo fato, muito próxima da sua fatal degeneração.
[[O lado algo mesquinho e rasteiro dos seres humanos manifestando-se de novo em Maria Amália, como se os limites encontrados à sua “curiosidade transcendente”, e deveria ter escrito à sua aspiração ao divino imanente e transcendente, levassem à desesperação e irritação, como se a Divindade ou, se quisermos, a Ordem do Universo tivessem originado no ser humano tal aspiração em vão ou mesmo para lhe fazer mal. Maria Amália não é uma mística, nem espiritual, nem metafísica, apesar de ser certamente uma boa psicóloga, escritora, moralista, mas a realidade do espírito, ou da demanda da Verdade, desconheceu-a ou não a quis procurar]]
Nenhuma civilização se elevou mais alto nas abstracções do pensamento, nos arrojos da metafísica do que esse Budismo em que Antero de Quental tentava encontrar a suprema paz da consciência humana. E o que tem ele produzido senão resultados negativos, e alucinações doentias? A civilização antiga, grega e romana, procurou resolver o problema do destino do homem divinizando-lhe as paixões, e fazendo a permanente apoteose da força. E todos sabem em que agonia vasquejante o mundo antigo se diluiu. A Idade Média teve uma compreensão harmónica e grandiosa da vida e do destino humano, mas tanto exigiu do espírito e tão pouco pensou na fatal realidade, que fez de cada organismo de homem um anjo e um animal perpetuamente identificados, e ao cabo do sublime esforço, respondeu-lhe o retrocesso pagão da Renascença.
[[Estas apreciações das civilizações são também fracas, com erros. Porque falou na civilização Budista e não na Indiana? Porque ignora as jóias valiosas do Hinduísmo, do qual o Budismos é uma derivação, especialização ou se quisermos até uma heresia? Como reduzir a imensa sabedoria em textos e em vidas de milhares de obras e seres da Índia e do Budismo a alucinações doentias? Também discordamos de que a Renascença tenha sido um retrocesso pagão, afirmação em que se parece contradizer, pois se a Idade Média tinha separado tanto o anjo e o animal no ser humano, a Renascença e o Humanismo foram de facto uma movimentação forte para unir o ser humano e as civilizações clássicas e até orientais com o catolicismo, tal como Pico della Mirandola, Marsilio Ficino, Eugubinus Steuco, Giordano Bruno e  outros fizeram com pioneirismo.]]
O mundo moderno quer achar na ciência a chave do todo o eterno enigma que até hoje se conserva inviolado, a explicação do universal mistério que o envolve e penetra, a resolução de todos os problemas complexos que se têm acumulado diante do seu espírito em dois ou três mil anos de pensamento ― e a ciência impotente, incompleta, desconsoladora não tem água que sacie a nossa sede, não tem piedade que unja a nossa lenta agonia!
[[Certa actualidade no século XXI, pois há muita gente que faz da ciência a sua religião, o seu critério de justo e verdadeiro, e infelizmente sabemos quão manipulada ela está e como tantos estudos são falsos. Todavia, há já muitos cientistas que conseguem explicar e manifestar o Campo Unificado de Energia Consciência Informação, ao qual subjaza Unidade da Ordem e Amor, sendo esta uma zona de investigação contemporânea que Antero bem gostaria de conhecer e sobre ela filosofar, criar explicações abrangentes e clarificadoras, capazes até de se tornarem dinamismos psico-metafísicos, psico-mórficos.]]
Os melhores abdicam ou pelo indiferentismo inerte, ou pelo suicídio; que é ainda uma vitória do espírito ultrajado sobre si mesmo!
[[Eis uma frase e ideia complexa pois ela nºao nos explica o que entende por espirito, se a mera mente, como parece, se a centelha espiritual e divina, eterna. Quererá Maria Amália dizer que o Espírito ultrajado e enganado  vence em batalha  quem estava ultrajando-o, matando-o, pondo fim à existência terrena do ego e da persona? Mas quem sobreviveria à morte física? Apenas o espírito, ou um todo unificado no qual algo do ego e da persona ainda passam para o post-mortem, amalgamados ao espírito e seu corpo espiritual?]]
E um véu de tristeza densa e plúmbea envolve este mundo enorme, agitado, convulso, atravessado de fios eléctricos que em minutos transmitem de um ao outro dos seus extremos o pensamento e a palavra; cortado de locomotivas vertiginosas; abarrotado de riquezas brutas; ébrio de orgulho material, de luxo e de vaidade; persuadido de que é a realização mais completa da felicidade e do triunfo moral do homem; mas tremendo a cada abalo subterrâneo que revele quão minados estão os seus alicerces e em que movediça areia assentam os seus edifícios de Babel!
Contudo há uma afirmação, no meio de tantas dúvidas e de tanta desordem mental, que pode ser feita sem medo!
O Bem existe! A consciência humana conhece-o mesmo quando o atraiçoa ou o desdenha. É ela que o tem criado em séculos de luta sublime! Os humildes de coração são talvez os que estão mais perto das fontes vivas de onde ele promana, e é pela humildade e pela aceitação resignada do seu destino incompleto e triste e eternamente obscuro, que a pobre humanidade definitivamente se salvará!
[[De novo, ainda que com crença e optimismo no bem, uma certa linha positivista e materialista a sobressair em Maria Amália, anti-platónica, poderemos dizer, pois não há o mundo das ideias ou o mundo espiritual, anterior e acima do mundo físico, humano e histórico, e onde em seres ou em qualidades divinas o Bem preexiste, e para o qual o ser humano se vai abrindo e manifestando. Não, para Maria Amália o Bem existe apenas porque é criado pelo homem, e o Bem existe, ou salva os seres humanos, se eles tiverem uma "humilde aceitação resignada do seu triste destino eternamente obscuro”.
Que visão lúgubre do Universo nos dá para terminar, Maria Amália Vaz de Carvalho, incapaz mesmo de referir o seu Logos ou Inteligência e Palavra, seja apenas como Anima Mundi, dos antigos gregos e romanos, seja já cristãmente incarnado em Jesus, como reza o prólogo do Evangelho de S. João. Acabamos assim por ver algo surpreendentemente que nem verdadeiramente cristã, é, mesmo nas suas faces postergadoras, tal a de S. Paulo, que remetem a visão da Verdade ou de Deus apenas para quando estivermos libertos do corpo físico e no mundo espiritual, aqui terrenamente restando-nos então a fé, algo que Maria Amália nem sequer refere bem, condenando-nos antes para a “aceitação resignada e humilde da obscuridade do seu destino incompleto e triste”]]
Por mais que amenos e veneremos a memória de Antero, não podemos pois achar justo o seu suicídio.
Contentamo-nos em achá-lo explicável. »
 Assim termina a sua apreciação da vida, obra, ideias e suicídio de Antero de Quental, a Maria Amália Vaz de Carvalho. Como vimos, com erros justificados pela sua discutível cultura filosófica, religiosa e espiritual e no seu empenho voluntarista em lutar contra o ascetismo, a contemplação, o desprendimento, a inacção, o pessimismo, o budismo, que considerava erróneas escolhas do poeta e perigosas para a sociedade.
A afirmação final "Não acha justo o seu suicídio", pode ter alguns sentidos; em quais terá ela pensado e valorizado mais não poderemos adivinhar, mas provavelmente queria dizer que não foi justo que um homem tão bom e tão sensível se tivesse deixado matar pelo excesso de pensamentos contraditórios e filosofias erróneas e pessimistas.
O que lança alguma perturbação neste final da sua explicação do suicídio de Antero de Quental é a oposição enorme que para ela existe entre o máximo de amor que possa haver a Antero de Quental e a aceitação do seu suicídio como justo. O máximo que se lhe poderá fazer é achá-lo explicável, pelas diversas causas ascéticas, pessimistas e budistas que o enlearam, enfraqueceram e levaram à morte. Como já vimos, não creio que tenham sido essas as determinantes
E se o levaram à morte física também o levaram à imortalidade, acrescentaremos nós, embora por vias ascensionais subtis e misteriosas, em grande parte ainda desconhecidas pelo comum da Humanidade, já que o melhor dos seus recursos humanos e naturais é gasto e destruído em armamentos, opressões e guerras, para não falar dos consumismos e poluições, impedindo-se o desenvolvimento psíquico, cultural e espiritual.
                         
Enviemos-lhe esperançada e optimisticamente os nossos maiores ou melhores raios de simpatia grata, amor e de força no seu caminho ascensional rumo à Divindade, que é a Realidade, o Bem, a Fonte Primordial...

domingo, 18 de novembro de 2018

Maria Amália Vaz de Carvalho, crítica dos "Sonetos" de Antero de Quental, e da sua demanda da Verdade, excesso de pensamento, inacção e Budismo. As réplicas.

                                     
Maria Amália Vaz de Carvalho, embora nunca se tenha encontrado com Antero de Quental, era praticamente da mesma geração, apenas quatro anos mais nova e escreveu acerca da sua vida e obra em seis artigos para um jornal, que foram depois incluídos num livro, ainda em vida de Antero. Recebeu dele três cartas, a 1ª em 1-IV-1884, quando ela lhe pedira poemas para o Feixe de Penas, a 2ª de 24-XII-1886 e a propósito dos artigos saídos num jornal lisboeta, a 3ª de 23-II-1889,  logo  após a oferta do livro que continha os artigos ensaísticos.
Viveu bastante mais tempo que Antero, pois passados dois anos da saída à luz da obra Alguns Homens do meu tempo, Lisboa, 1889, a que incluiu a análise psicológica e literária de Antero Quental e dos Sonetos e publicada originalmente em seis artigos no Jornal do Comércio, de Lisboa,  este suicidava-se com 49 anos, em 11-IX-1891. 
E seria já só em 1896 que o homenagearia e criticaria de novo, em dois capítulos do livro Pelo Mundo a Fora (originalmente escritos com emoção um mês depois do suicídio) inserindo e comentando "a carta, até hoje absolutamente inédita" que Antero lhe endereçara no Natal de 1886, e mantendo as suas críticas fortes ao pessimismo e budismo. (Este  livro está apresentado em dois artigos neste blogue).  
Maria Amália Vaz de Carvalho viveria até aos 79, desencarnando apenas em 1921, já em plena República e, tendo granjeado certo sucesso em ensaios de crítica literária e sobretudo educação e civilidade, entrou no panteão da Academia das Ciências como a primeira mulher sócia.
A sua bibliografia é razoavelmente extensa, dividindo-se por vários campos e mostrando bem a sensibilidade e acuidade da sua alma para vários temas, podendo dizer-se que foi uma crítica literária, psicóloga e socióloga, uma educadora, tentando mostrar o positivo e o negativo das vidas de pessoas, instituições, costumes, épocas, com bastante empatia e abertura social, embora fosse em muitos aspectos uma conservadora em termos de costumes e recato feminino, e uma mulher algo assustada com o ascetismo, inactivismo e budismo de Antero de Quental e,  de certo modo ainda, talvez com a sua não aceitação de Jesus como Deus...
 O livro Homens do meu Tempo abrange as seguintes personagens: o seu marido e poeta brasileiro Gonçalves Crespo, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Antero de Quental, António Cândido e Teixeira de Queirós, além dos franceses, George Sand, Octave Feuillet e os irmãos Goncourt.
Desde quando conheceria de nome Antero? Certamente desde muito cedo, pois já em 1870 publica poesia, e em especial depois do casamento com Gonçalves Crespo, que ocorre em 1874, quando este ainda estudava em Coimbra, com ele, a quem muito amava (bem testemunhado no prefácio dos Arabescos, 1880),  gerando dois filhos. Gonçalves Crespo morre porém cedo demais (1846-1883) da tuberculose arrasadora da época, havendo numa carta de Antero de Quental a Joaquim de Araújo a menção seguinte: «Senti a morte do Crespo, de que só agora tive notícia. Não conheço a Maria Amália, mas nem por isso tenho deixado de pensar nela com pesar e simpatia sincera».
 A Gonçalves Crespo dedicou Antero de Quental uma poesia, e só três tiveram tal associação amistosa na ainda reduzida edição dos Sonetos de 1880, preparada no Porto pelo infatigável Joaquim de Araújo, bastante alargada nos Sonetos completos de 1886. Mas não se conservam cartas de tal relacionamento, que não deve ter sido grande já que Maria Amália casando-se com ele em 1874 e vivendo até 1883, confessa em 1889 jamais ter estado com Antero. Mas que Antero de Quental apreciava Gonçalves Crespo não há dúvidas, pois no último ano da sua vida mencionava-o assim numa carta de 12-V-1891, ao seu tradutor sueco Görab Bjorkman, a propósito da melhor literatura portuguesa: «Um poeta encantador  e original, morto muito recentemente e bem jovem, é Gonçalves Crespo: o seu  pequeno volume Miniaturas, estou certo que lhe agradará».
                                             
São cinquenta e sete as páginas, em caracteres tipográficos bons, dedicadas a Antero, estando dividido o seu ensaio em seis capítulos, pois em seis artigos o publicara em Lisboa no Jornal do Comércio: o 1º sendo uma leve aproximação a Antero e uma apresentação dos seus conhecimentos acerca da crítica literária que se começava então a afirmar mais científica e contextualizante, referindo a genealogia Villemain, Saint-Beuve, Taine e Bourget (discípulo de Schopenhauer) e fazendo algumas ligações e analogias com Antero de Quental.
                 
No 2º capítulo aproxima-se dos sonetos e da personalidade de Antero de Quental com acuidade e o começo do capítulo é um pioneiro testemunho feminista: «A mim, se me faltam, como já disse, muitos dos predicados exigidos para analisar e estudar a obra, tão profundamente pessoal, do autor dos Sonetos, não me falta contudo para lhe compreender a alma agitada e sacudida por tantas ideias que se combatem entre si, produzindo uma trágica luta interior, o que neste caso supre vantajosamente a ciência e a crítica: refiro-me à minha alma de mulher, contraditória também, também flutuante, e que não foi corrigida nem mutilada pela necessidade fatal da acção, pela despótica lei social que impele o homem a pronunciar-se num sentido definido, a caminhar para um fim determinado, a comprometer, por assim dizer, as suas opiniões e as suas crenças dando-lhes uma forma precisa e limitada, encerrando-as numa esfera positiva e restritiva.»
Neste ponto Antero de Quental guardou, a par das qualidades poderosas e criadoras de um espírito viril, a plena independência mental que é talvez a maior felicidade da mulher, quando a mulher, - o que é raro – a sabe aproveitar no enriquecimento, na ampliação e na cultura do seu mundo interior.»

Este período do ensaio-crítica acerca de Antero é particularmente feliz e pioneiro já que acentua o valor do pólo Feminino no ser humano, incarnado mais na Mulher mas também manifestado no Homem, e que é apontado como sensibilidade e "plena independência mental", considerando tal como decisivo em Antero de Quental.
Numa época ainda bastante patriarcal e machista, esta menção do androginato no ser humano e da indispensabilidade de se manter a anima feminina viva e livre em cada ser é muito pioneira. Contudo mais à frente, Maria Amália criticará bastante a inacção contemplativa de Antero de Quental e parecendo assim esquecer-se desta sua crítica à fatalidade obrigatória da acção no homem, para ela limitadora e castradora da independência interior, algo que sem dúvida Antero sempre quis viver e demandar. Quanto à inactividade ela foi-lhe mais forçada pelo ambiente e sugerida por amigos, em especial Oliveira Martins.
A continuação deste capítulo é discutível, pois embora seja certeira na sua apreciação a «o livro dos Sonetos, que para mim vale muitíssimo como obra de arte e de poesia, vale principalmente como documento psicológico, como notação sincera, espontaneamente, feita de dia a dia, de sensações requintadas, como confissão duma alma que, - nas suas dores imaginárias ou reais, nas suas ardentes aspirações dum espiritualismo doloroso, nas suas dúvidas desnorteadoras diante de todos os problemas insolúveis da Vida, no seu desejo dilacerante dum absoluto impossível, nas suas ansiosas interrogações em face do incognoscível eterno, nos seus gritos melodiosos, de apaixonada tristeza e de amargura revelada – condensa, representa, sintetiza em si o estado sentimental de todo um mundo, o mundo a que nós pertencemos».
Deveremos realçar o questionamento de Maria Amália Vaz de Carvalho: em Antero poeta, quantas das dores são sentidas, quantas das visões foram alcançadas, ou o que é imaginário e de certo modo fingimento poético, ainda que consubstanciando crenças ideológicas ou metafísicas?
Fernando Pessoa anos mais tarde, e sabemos como muito leu, traduziu para inglês e apreciou Antero de Quental, proclamará o poeta é um fingidor que acaba por sentir a sua dor de tão imaginada. Terá ele pensado em Antero, já que tanto o leu, traduziu e valorizou, antes de formular tal equação poética, ou sentiu-o e considerou a sua poesia como vivência anímica real?
Quantas das dores foram verdadeiramente sentidas por participação psico-espiritual no que pensava ou descrevia ou poetizava?
Quantas certezas, ou verdades, nessas poéticas visões, deduções ou sínteses, foram mesmo alcançadas interiormente por ele?
Parece-nos exagerar a Maria Amália Vaz de Carvalho quando considera «que não foi impunemente, e sem que um medonho e forte abalo se produzisse nos espíritos e nas consciências, que a ciência implacável e tranquila, despovoou os céus, destruiu na nossa alma, ambiciosa e sofredora, o sonho da triunfante imortalidade», talvez glosando a esclarecedora e famosa carta a Wilhelm Storck em que Antero narra o impacto destrutivo ou niilista, das doutrinas filosóficas modernas europeias, vivido no meio estudantil de Coimbra.
Talvez possamos dizer que as correntes filosóficas e do pensamento comum da época diminuíram muita crença no divino e no além, mas já nessa época o o magnetismo animal, o espiritismo, o ocultismo, o budismo e o orientalismo se estavam a erguer, a bem ou a mal, opondo-se ao materialismo e positivismo, e permitindo assim uma via do meio entre o materialismo e um espiritualismo ou mais até religiosidade já algo ultrapassada de piedosas crenças do qual se distanciará, ainda que certamente mantendo um espiritualidade interior que é a essência de qualquer forma de culto, religião ou ética.
Antero de Quental, apesar dos seus posicionamentos niilistas, os que por osmose do ambiente filosófico da época e por fraqueza dos nervos poetizou com regularidade, testemunhou nas cartas e na prosa uma constante crença ou fé num mundo espiritual e no bem, tendo até tido experiências de magnetismo e espiritismo que o terão confirmado em algumas das suas intuições sobre o panpsiquismo e o transcendentalismo, de certo modo duas faces complementares da cosmovisão a que terá aderido mais...
Mas lamentar-se-á mais de uma vez que poucos dos seus versos representam a desejável e entrevista compreensão de unidade de ciência e religião, filosofia e ética, espiritualidade e activismo, pois alcançara-a já na época em que a sua veia poética definhava. E sabemos que o seu último poema é um de 1887, e mesmo esse porque lhe pediram muito nos Açores, pois tal veia já fenecera em 1886. A nós de os alcançarmos...


Também não estamos de acordo com Maria Amália quando diz, e aplicando-o a Antero: «A extraordinária revolução científica e social, que faz do nosso século, uma quadra sem precedentes na história, se trouxe a tantos a felicidade, a libertação, a vitória, se deu às massas o gozo de regalias ignoradas (...) não podia contudo deixar de repercutir-se de um modo violento e profundo, dilacerante às vezes, outras vezes entontecedor, em certas almas impressionáveis, em certos espíritos delicados, em certas organizações doentiamente acessíveis.»
 
Destas três últimas caracterizações das almas afectadas pelo que se passava pensamos que só se deverá aplicar a Antero, a última, já que a sua doença ou enfraquecimento nervoso verdadeiramente o perturbou na preservação da sua vida, a qual a partir de certo momento passou de poeta a sobretudo pensador metafísico com pendor espiritualista, algo que contudo se estava ainda apenas a abrir como via do meio...
Terá Maria Amália dado conta desse desabrochar que ecoa por exemplo no Eça de Queiroz dos últimos livros (tal como nas Cartas Contemporâneas), ou ficou contra o positivismo, e agarrada ao Cristianismo, e à moralidade rígida e vitoriana que caracterizava a Europa e que Maria Amália de algum modo verte nas suas obras de pedagogia, ainda que vejamos por vezes nela (Leão XIII e o seu Pontificado) uma visão da Igreja ao serviço dos pobres e mais fracos?
O período seguinte também é exagerado e não se aplica bem a Antero de Quental, pois ele nunca quereria perder o que lera e aprendera, mas apenas poderia desejar ter tido melhores condições físicas, nervosas e ambientais para fazer a sua síntese luminosa, como exprime em parte no seu último ensaio as Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX, e confessa a Oliveira Martins em 26-XI-1889: «Escuso de dizer-lhe que não é a minha filosofia, aquela que você sabe que eu tenho, com o seu método próprio e teorias particulares. Essa, infelizmente, desisto de a expor, porque está acima das minhas forças o fazê-lo - e depois ninguém me entenderia».
 A ideia finalizadora do capítulo: «(...) iniciados que dariam tudo para ignorar, curiosos e complicados espíritos que anseiam debalde por se salvarem pela simplicidade e pela inocência, a cujo seio, nunca mais, nunca mais, poderão retroceder» soa um pouco a maldição dramatizante de uma conservadora, ameaçando os que se lançam em grandes demandas filosóficas, recomendando antes serem mais humildes e simples, contentando-se com o que é da terra e do animal humano...

O começo do III capítulo também é bem discutível, tanto mais que retoma a maldição da dor que castiga os eleitos da sensibilidade e que os tem de perseguir implacavelmente até à morte.
Não será bem assim, pois Antero de Quental apenas se fartou dum corpo e mentes enfraquecidos, e dum ambiente que não lhe era favorável, e partiu voluntariamente. Não sabemos bem os prós e contras que fez em relação a tal acto, nem quantas vezes terá equacionado tal desfecho trágico ao longo dos últimos meses ou dias. Nem sequer com que tipos de estados conscienciais, ora de paz interior ou não perturbado, ou já algo fragilizado e acossado, embora saibamos que nos últimos dias em Ponta Delgada, seu berço de nascimento, isso já se tornava um uma ameaça, não como ideia fixa mas ainda assim recorrente como testemunham alguns dos seus amigos co-ilheus em cartas realçadas por Ana Maria Almeida Martins no seu valioso Antero de Quental e a génese do In Memoriam.
Maria Amália, metafisica e espiritualmente, é demasiado conservadora e pinta um cenário dantesco para os metafísicos e pesquisadores da verdade que saem do rebanho das crenças e comodismos, como que querendo atemorizar os seus leitores candidatos a poetas e metafísicos na linha anteriana.

E nesta sua visão algo reaccionário acaba por comentar desapropriadamente um dos poemas de Antero, a Fada Negra, no qual Antero agradece à Razão tê-lo conseguido levar a um estado sem desejos, e que Maria Amália descreve ou caracteriza contudo assim:
«E, no entanto, maldizendo as dores de que a razão lhe foi origem, Antero de Quental não pode amaldiçoar essa faculdade superior, comprada à custa de tais agonias, mas que lhe tem dado – gozo contraditório e estranho! - o austero orgulho dos que sabem.»

Ora nada indica que haja austero orgulho dos que sabem em Antero, neste poema ou noutros textos e histórias da sua vida. Antero apenas agradece ter saído da ilusão do que adorava - o que podemos considerar sobretudo os ensinamentos infantis mas piedosos da Igreja Católica, em especial a adoração de Jesus feito Deus -, e ter o seu coração em paz, já sem desejos nem esperanças... Nisto não há orgulho. Decorrerá, porém, e aí Maria Amália intui bem, disso uma diminuição da sua capacidade de agir, a qual depende em certo nível de desejarmos e esperarmos ou, se quisermos de outro modo exprimir, do Amor que estava acesso e vivo nele.
Amor que Maria Amália, e também eu, podemos pensar que faltou a Antero de Quental, não na juventude idealista ou estuante de força revolucionária, mas depois de gorados os seus namoros, e da diminuição das suas forças e nervos, e portanto das suas expectativas de cooperação ou intervenção maior na sociedade.
Embora quanto a isto se deva referir que Antero de Quental uns meses antes de morrer se lançou corajosamente no movimento contra imperialismo inglês, e o seu Ultimatum a Portugal, liderando a Liga Patriótica do Norte, em 1891, a uns meses de morrer...
É certo que quando Maria Amália interroga e quase o invectiva nesse ano de 1889, Antero ainda não saíra da sua Tebaida ou ermo de Vila do Conde para se lançar na acção revolucionária que empreende em 1891, mas não tinha razão, e também não conseguirá responder quando, desenhando bem a súmula épica do jovem Antero, afirma algo audaciosa e convencida, ao terminar o capítulo, que vai conseguir explicar porque é que ele não conseguiu ou falhou a sua potencialidade ou missão.
Há nesta asserção alguma hybris de Maria Amália, que nem sabemos porquê, pois normalmente, deveria apenas dizer: vamos tentar esclarecer os mistérios do estado e posicionamento de Antero. Mas não, é peremptória... 
Oiçamo-la então a tentar explicar porque é que Antero não conseguiu continuar a ser "um porta estandarte de uma ideia civilizadora e grande", lembrando nós contudo que ele tanto tivera a sua hora de líder estudantil lutador e triunfador e porta voz da nova geração literária e ética, e fora também um activo obreiro da nascente causa socialista.
Mas com o amadurecimento da vida e o enfraquecimento corporal e nervoso, e dada a sua natureza mais mental e filosófica do que voluntariosa, compreendeu que não era a pessoa mais ideal para continuar na batalha revolucionária que tinha como perspectivas o socialismo, a república, pelo que a sua linha de força, de aspiração e de crença foi passando dos campos da acção social e política para os da filosofia e espiritualidade, algo que aliás germina desde cedo, nomeadamente depois da sua experiência de tipógrafo em França, essa grande metrópole e formigueiro revolucionário mas onde não sentia humanidade e amizade. E tal interiorização solidifica-se nos últimos anos de Vila de Conde, onde gerou alguns dos sonetos mais sábios e as páginas tão valiosas e pioneiras da Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX.
Antero de Quental não falhou, apenas foi mudando os seus objectivos e metas principais. Embora certamente o suicídio, que poderá sempre prestar-se a críticas, indique que realmente ele se sentiu por fim diminuído para continuar na batalha ou demanda da vida...
Poderíamos até especular até que grau estas afirmações negativizantes de Maria Amália Vaz de Carvalho, ou de outros, poderão tê-lo fortalecido ou influenciado na decisão de partir voluntariamente da Terra, sentindo e pensando que, tal como alguns diziam, era já um vencido, um derrotado...
Perante a promessa de explicar o mistério do falhanço de Antero de Quental, que ela nos anuncia ser dada no próximo capítulo, e de facto há algo de folhetim, quase de suspense, justificado pela sua publicação espaçada em seis artigos de jornal, nós podemos tentar antecipar tal descoberta, de acordo com o que já transpirou nos capítulos anteriores: provavelmente Maria Amália vai "acusá-lo" de se ter dispersado por muitas ideias, assuntos, filosofias e doutrinas. De se ter perdido religiosamente, deixando de ter a âncora de paz e consolação das crenças católicas. E de, finalmente, não ter conseguido encontrar e desenvolver  Amor, nele, para alguém e para ele, suficiente para o tornar feliz; embora saibamos como, com os amigos, Antero sentiu, recebeu e projectou bastante dessa amizade de estudantes, e depois de companheiros de luta social e literária, e, por fim, seja de trabalhadores da mesma faina da escrita reflexão e até contemplação, como dos seis a dez que com ele mantiveram sempre uma relação mais próxima, embora frequentemente apenas por cartas...
Oiçamo-la e vejamos como ela dá sinal logo ao princípio que vai ser contrária ao que se pensa e diz de Antero:

Considerando Antero destruído pelo excesso de pensamento e de análise de busca de verdade, algo para o qual o ser humano não estaria fadado, desvendando-se de novo como algo conservadora e submissa, tanto mais que todos os grandes mestres e filósofos fizeram e recomendaram tal demanda e caminho virtuoso, Maria Amália conclui: « a nós homens não é dado achar a Verdade!»
Seriam realismo, humildade, intuição feminina, ou antes conservadorismo religioso e ausência de aspiração espiritual, o que a levavam a afirmar isto?
Maria Amália Vaz de Carvalho vê então Antero de Quental perdido no meio de tanta confusão doutrinária e refugiando-se cansado numa inacção contemplativa, numa renuncia mística e numa espécie de budismo mental que se reflectiria «em alguns dos sonetos em cantos resignados e imortais...»
Embora pensamos que certa resignação, paciência ou resiliência se encontra advogada em todas as religiões, do Cristianismo ao Budismo, pensamos que Antero de Quental chegou a uma certa renúncia o exterior e à valorização da via interior e mística por ter compreendido que só através dela se poderia ter mais capacidade de aprofundar a sua demanda filosófica e transcendentalista, não obstando tal a que se envolvesse na acção quando fosse necessário, como vemos acontecer magnificamente a uns meses de morrer no episódio da Liga Patriótica do Norte.
A caminhada de Antero de Quental para "a felicidade, a glória, o amor" é resumida a dado passo com beleza por Maria Amália e no
fim interroga-se acerca dos desalentos que teriam causado a sua paragem e desânimo.
 
                   
E pensa que foram as injustiças sangrentas e cruéis da vida, condenando o ser humano à maldição de Sísifo, nunca chegar ao cimo ou à verdade que o levaram ao niilismo, concluindo que «o livro [ Sonetos] tão profundamente espiritualista, sob o ponto de vista prático e razoável é desconsolador e com alcance funesto para o espírito humano», afirmando mesmo logo em seguida que «o sonho de perfeição que o inspira, leva-o a uma compreensão da existência errónea e perigosíssima».
Eis uma afirmação de quase "cruzes credo" em relação à obra de Antero de Quental, algo exagerada e dramatizada, pois Antero por mais de uma vez disse que a sua aspiração contemplativa seria para uns poucos, dando mesmo o nome da Ordem dos Mateiros para tal grupo de alguns mais interessados e capazes de tal recolhimento propiciador de uma possível maior captação das realidades espirituais e divinas, algo que Maria Amália Vaz de Carvalho ignora, receia, ou tem consciência de que não é capaz, e que portanto não recomenda e pinta como perigosíssimo, de novo vindo com o orgulho da inactividade, indiferença ao Mal, apelando antes a uma luta intensa na vida pelo Bem. 
Ora Antero Quental nunca pregou ou recomendou a passividade e a desistência de luta, embora certamente compreendesse que cada um tem de descobrir as suas linhas ora mais activas ora mais contemplativas e de certo modo harmonizá-las. Em várias das cartas e nas Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX tal visão está bem expressa e não a do niilismo e desistência da luta pelo bem...
Oiçamos Antero de Quental, por exemplo, na sua maravilhosa carta a Fernando Leal, datada de 12-XI-1886: «Mas, para além da natureza, ou, se quiser, escondido, envolvido no mais íntimo dela, está o mundo moral, que é o verdadeiro mundo, ao qual a harmonia, a liberdade e o optimismo são tão inerentes, como ao outro a luta cega, a fatalidade e o pessimismo. A final, não vivemos verdadeiramente senão na proporção do que partilhamos desse mundo íntimo e perfeito, ou, mais exactamente, da parte dele que desentranhamos de nós mesmos e fixamos nos nossos pensamentos, nos nossos sentimentos e nos nossos actos. Já vê que a existência tem um fim, uma razão de ser (...)»
 
Maria Amália Vaz de Carvalho era naturalmente mais superficial e menos vivenciada e culta espiritualmente que Antero de Quental e só nesse sentido é que podemos aceitar a sua afirmação, como se ela conseguisse compreender e sentir as dimensões mais íntimas, profundas ou espirituais do que aflorava no filósofo espiritualista.
E podemos ver tal superficialização e manipulação conservadora, algo catolicizante e anti-metafísica e espiritualidade quando dá alguns exemplos desses estados que ela compreende e justifica, mas que na realidade não compreende ou não sente nas suas dimensões mais subtis e verdadeiras. Assim são algo caricaturizados ou pelo menos diminuídos na forma como os descreve,  resultado e reacção da sua leitura e sensibilidade aos Sonetos, e às ideias e demandas que neles se podem sentir ou discernir...
E conclui então este capítulo, considerando que Antero não é um retórico mas um ser que sente e sofre e que é sincero, mesmo que contraditório, mostrando de certo modo para o desvalorizar, um soneto apresentado pela alma de Maria Amália, algo assustada com os perigosos erros de Antero de Quental, como que avisando as pessoas para terem cuidado e não o lerem:«Querem ver como ele proclama, numa dolorosa amargura a inanidade final de todo o esforço humano?»
Ora Antero de Quental, na carta já citada a Fernando Leal, afirmava exactamente: "É bom, é até necessário passar pelo Pessimismo, mas não se deve ficar nele por muito tempo. O Pessimismo não é um ponto de chegada, mas um caminho. É a síntese das negações na esfera da natureza, a luz implacável caída sobre o acervo de ilusões das coisas naturais. Mas, para além da natureza, ou, se quiser, escondido, envolvido no mais íntimo dela, está o mundo moral (...)».

No V capítulo, Maria Amália revela de novo alguma contrariedade em aceitar Antero e desdiz-se até, após ter apresentado o poeta sincero nas suas contradições, ao escrever assim nos dois primeiros parágrafos:
«É-me absolutamente impossível, e nem com esse intento se compadece a índole deste rápido esboço crítico, fixar aqui completamente a fisionomia literária tão expressiva e tão complexa de Antero de Quental.
De resto, eu escrevo apenas para os que leram e apreciaram o poeta, para aqueles que se sentiram mais impressionados diante das suas contradições, tão humanas, tão genialmente sinceras».
Detenhamo-nos aqui e observemos no início admitir a hipótese de explicar completamente Antero, se a isso se entregasse, algo de uma certa presunção já que passados mais de 120 anos da sua morte ainda se escreve ou se discute tanto a sua vida e obra, sempre  multifacetada e
enigmática.
Depois, não nos parece sincera a afirmação que só escreve para os que o leram e apreciaram, mas sim para qualquer pessoa, tanto mais que ela quase desejaria que ele não fosse lido pois enferma de opiniões perigosas.
Também o acrescento posterior, os que se sentiram impressionados pelas suas contradições "tão genialmente sinceras", parece fraco ou enfraquecedor, pois pode admitir-se que o génio está no ser sincero, ou ainda os que o "leram e impressionaram" são os que se impressionaram ou lamentaram ou disseram coitadinho face as suas contradições, não geniais mas confessadas num "sinceridade (ou ingenuidade) genial."..
Mas é no salto quase mortal que dá no terceiro parágrafo que somos levados a constatar uma certa vontade, talvez inconsciente, de desvalorizar Antero:
«Pois qual é o homem verdadeiramente digno desse nome, que nunca sentiu dentro da sua alma o terrível embate de mil pensamentos dolorosamente hostis».
A contradição de Maria Amália está em depois de ter afirmado que Antero pensara muito e que se perdera nessa floresta de opiniões contraditórias, e afirmar que poucos são os que se aventuram nessa demanda mental perigosa, a qual sempre os vai fazer sofrer e perder-se, estende agora a toda a gente essa luta interior entre mil pensamentos dolorosamente hostis.
Um exagero grande, pois podemos e temos luta entre dois ou três pensamentos ou desejos, mas mil, ou que seja muitos, dolorosamente hostis, é raríssimo, embora certamente os "mil" seja uma expressão proverbial de muitos.
Com isto, parece-nos que Maria Amália está até a desvalorizar as contradições e o perder-se de Antero de Quental, pois toda a gente tem em si tal, e porventura não se desorientam ou desalentam como ele...

É certo que nos dois parágrafos seguintes ela vai apresentar "os dois pólos do pensamento", entre os quais se apresentam então as "mil gradações e cambiantes", e eles são o primeiro «o doce coração piedoso e crente da mãe querida, da velha avó, que outrora foi levar à sombra austera do templo, ao altar onde o Homem Deus sorri resignado e triste"» e o segundo «assim como o mais piedoso de entre nós, nem sempre logra fugir à acção dissolvente do cepticismo universal, que vai crescendo, crescendo, como uma maré de perdição».
É em seguida que Maria Amália entra no ataque ao nirvana, ao Budismo e ao Budismo em Antero de Quental e as primeiras linhas são também sintomáticas:
«Pouco a pouco, porém, por uma espécie de lenta gradação, com retrocessos fugitivos, a alma de Antero do Quental, cansada de sonhar, de aspirar, de desejar em vão, vai-se iniciando nessa paz suprema a que os sectários do velho Budha [no texto estava Bhuda] índico chamaram o nirvana!
O nirvana é uma espécie de renunciamento da alma que nada espera, e que, fora da esperança, achou a tranquilidade beatífica do não-ser.»
Tão curiosas e significativas as palavras empregadas, umas convergindo numa impressão depreciadora dos "sectários do velho Budha" pregador da não esperança e da renúncia, outras resumindo o Budismo dum modo até razoável (" o mundo é uma ilusão imensa", desinteresse do sensível, coração benévolo, renúncia aos desejos, acções e esperança, desprendimento), e correlacionando-o modernamente com Schopenhauer. Assim Maria Amália avança, e exprime simpaticamente a sua compreensão do desanimado Antero: «Nesta doutrina tão velha, que o espírito germânico remoçou e como que adaptou às complicações extraordinárias e imprevistas da vida moderna, acolhe-se adoravelmente o poeta em muitas das suas horas de desalento e cansaço»...
Como se Antero, "o poeta" precisasse de refugiar-se em tais crenças quando estava deprimido...
 
 
     
No fim do capítulo culminará a sua algo indignada crítica a Antero e ao budismo, após transcrever o II soneto do Elogio da Morte, e que de budismo e de nirvana nada tem senão uma referência mais poética e estética de fingimento que filosófica, e compreende-se pois Antero era ainda bastante jovem em 1872, dedilhava a sua faceta pessimista e pouco estudara, intuíra ou visionara seja do Nirvana seja dos mundos imensos citados.
Transcrevamos os dois tercetos finais do soneto:

«Que místicos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade.

Nesta viagem, pelo ermo espaço,
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irmã do Amor e da Verdade!»
Eis o "ataque" que se segue de Maria Amália, quase com boas armas retóricas: «Ó poeta, - eu, uma pobre mulher condenada, pelas leis fatais da fisiologia e pelas leis lógicas da sociedade, à inacção completa, não posso deixar de protestar contra essa paz egoísta em que o teu coração pretende afundar-se». Interroguemo-nos: É como feminista que ela fala, protestando contra a opressão patriarcal da mulher, ou é antes para acentuar que as mulheres pelas leis fatais da natureza corporal e pelas regras lógicas ou justas da sociedade, têm que estar numa inacção? E a consequência disso será que portanto não é permitido que haja também inacção do pólo masculino, ou como escreve mais à frente: «Mas imagine-se por um momento o budismo triunfante, alastrando pelo mundo inteiro a sua doutrina de inerte contemplação, de êxtase inútil e vago!
O que seria hoje o mundo?!...
Não, o Homem não se deixou vencer; em vão o convidaram à preguiça, à covarde resignação, ao renunciamento estéril as religiões fatalistas e a Natureza hostil e inviolada ainda! Ele resistiu»...
Ora esta linha de pensamento de Maria Amália é confrangedora porque vai culminar num hino ao progresso destruidor da Natureza que só agora no séc. XXI atinge as proporções catastróficas que já desde os anos sessenta do séc. XX alguns escritores e ecologistas anunciavam, entre nós primacialmente o amigo e companheiro Afonso Cautela. Eis o hino, em parte: «sondando os oceanos sem fim, resignado e tenaz, revoltoso, indómito, terrível, mas sempre com os olhos fitos no ideal, que pouco a pouco se ia desvendando, que pouco a pouco se ia tornando definitivo e claro, ele chegou enfim a fazer da Natureza, seu algoz, a Natureza, sua escrava, e, das quimeras de ontem, as verdades libertadores de amanhã»,
É um hino cego ao progresso humano e à destruição da Natureza, mas compreensível no idealismo de então.
E depois de citar um dos sonetos mais optimistas de Antero, mas no fundo bastante teórico e idealista, e no qual Antero glosa em 1º a algo estafada mas incorrecta visão que "os celestes guias te hão abandonado" e em 2º a prometaica aspiração do terceto final «faz um templo dos muros da cadeia/ Prendendo a imensidade eterna e viva/ no círculo de luz da tua ideia», a 1ª tendo consequências algo trágicas, pois os mestres e anjos nunca deixaram a humanidade e temos apenas de aspirar e merecer a sua ajuda. E se não os reconhecemos ou admitimos ficamos bem menos ligados ao mundo espiritual e até ao Divino.
No 2º aspecto, Antero de Quental incorre no erro de pensar que a sua endeusada Razão, Ideia ou pensamento consegue circunscrever a imensidade eterna e viva, quando ele apenas pode pensar e descrever um pouco melhor a tal imensa Realidade se a sentir pelo seu coração e ver interiormente, pelo seu olho e ser espiritual, algo que Antero de Quental infelizmente não meditando nesse sentido, ou não sabendo com maior consciência vivencial da existência desse órgão de visão interior, acaba por não o ter desabrochado suficientemente e assim vislumbrar melhor a Realidade. Aliás as descrições que Antero de Quental faz nos seus sonetos dos mundos do além ou espirituais sente-se que não são muito reais, embora algumas vezes a sua intuição e entusiasmo tenham captado algo, e mais até no começo da sua florescência poética quando o amor ardia nele mais livre e fortemente.
E depois de transcrever tal segundo soneto da Ideia, termina assim o capítulo:
«Oh! Como isto é mais belo do que a derrota confessada do pensador que se refugia no pessimismo, achando no pessimismo uma solução, quando ele não é mais que um estado transitório da alma contemporânea, um dos sintomas mais característicos da doença de vontade, de que mais ou menos hoje estamos – ainda mal – todos contaminados».
Sobre esta crítica ao pessimismo, budista anteriano, apenas lembraremos as múltiplas vezes em que Antero explicou que o pessimismo era apenas um ponto de partida ou de passagem para um estado de maior consciência e aspiração de mudança, por vezes em cartas aos amigos de grande beleza e sabedoria.
O VI e último capítulo começa com alguma humildade, retórica ou não, só intuiremos talvez no fim: «Chegado ao termo deste trabalho percebo que há nele, além dos mil defeitos, que outros lhe notarão, uma lacuna enorme que eu próprio reconheço.
Tentando explicar o pensador, eu não tenho dado ao poeta o merecido relevo que ele tem; quero dizer, o pensamento destes sonetos tem-me às vezes feito esquecer a beleza singular da sua forma artística», e reconhece a dificuldade da forma do soneto «fixar em formosa escultura, as abstracções metafísicas em que o génio de Antero de Quental se compraz principalmente.»
Há algo de novo de levemente crítico às "abstracções metafísicas" em que o "seu génio se compraz", mas avançando Maria Amália compara Antero de Quental com os poetas Heinrich Heine (1797-1856) e Sully Prudhomme (1839-1907), e vê bem e valoriza a capacidade que ele tem de «cantar a dor de toda uma geração que a si própria se estuda, sonda e interroga, e sendo profundamente pessoal, como é, repercute-se todavia em muitas almas igualmente angustiadas e vacilantes».
Este final parece de novo crítico, pois caracteriza a geração que busca como de almas angustiadas e vacilantes, e esquece ou não menciona as mais destemidas, sábias ou místicas nas quais a alma de Antero se inclui e que ele também tanto reflecte como repercute...
Também na comparação que faz em seguida, o juízo sobre o valor da capacidade introspectiva é discutível: «Já ouvi, não me recordo neste momento a quem, que o livro dos Sonetos lembra também em muitos pontos o Diário de Amiel. É que realmente estas duas obras diverssísimas entre si, filiam-se na mesma necessidade inteiramente moderna que o homem sente de auscultar-se, de conhecer-se, e de fazer a si próprio inúmeras perguntas.
A antiguidade não tinha este prurido de penetração psicológica; por isso a antiguidade foi feliz, radiosa, activa e sã.»
Deparamos uma certa condenação da busca do auto-conhecimento e um ocultamente, menosprezo ou ignorância de toda a busca de auto-conhecimento e de iniciação que perpassou pela Antiguidade e bem patente em Sócrates em Pitágoras, em Platão e nos mistérios gregos...
               
Avança em seguida para uma crítica às "hesitações do querer" e "flutuações permanentes do pensar", e à inacção tanto de Antero como de Amiel, por excesso de uma vida interior e de pensamento o que gera «o enfraquecimento progressivo nos órgãos que determinam a acção e predispõem para o combate», mas ao contrário de Amiel que se perdeu numa absorção de abstracções germânicas, elogia bem Antero, «um escritor de raça, um escritor de primeira ordem, dando ao seu sonho, vago como é, o molde nítido e magistral duma linguagem riquíssima, e sabendo em certas horas ser um prosador de largo fôlego, um crítico sagacíssimo e cheio de penetração genial.
Bastariam para provar esta asserção, os seus dois magníficos opúsculos: Considerações sobre a História da Literatura Portuguesa e Causas da decadência dos povos Peninsulares.
Pena é que um espírito tão extraordinariamente dotado não enriqueça a literatura nacional com alguns livros de crítica e de história, que, tão bem como os melhores, ele poderia escrever».
Neste avaliação tem certa razão, embora Antero na altura estivesse a escrever as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, o seu testamento filosófico e de algum modo também espiritual, mas que não poderia ter o impacto das Causas da Decadência
dos povos Peninsulares...
Considerando que Antero «aspira infatigavelmente a alguma coisa de muito superior ao que a vida pode dar «tal como Amiel que terá confessado no fim da vida que o ideal seria uma vida empregada em favor do ser adorado, vai transcrever um soneto dele o qual «é como a suprema condenação do seu funesto credo, que é como a lágrima que se desprende da pupila cansada de contemplar inutilmente as profundezas insondáveis do eterno abismo», como se o budismo estivesse ligado necessariamente com o abismo, ainda que tal, literariamente, acabou por quase ser sinónimo da imensidade ou infinidade do cosmos.
E transcreve então o soneto juvenil ardente de Antero, intitulado Enquanto outros combatem, e do ciclo de 1862-1866, no qual aspira ao combate «por entre os campos onde a Morte e o Fado dão lei», e a «viver mais do que sonhos e ansiedade». Mas de modo algum é uma condenação do seu funesto credo, se é que se pode dizer que ele tivesse um credo, pois Antero sobretudo vivenciou uma demanda ao longo da vida, num combate em grande parte dentro de si próprio, pelo conhecimento e, certamente, a partir de dada altura com bastante renúncia à exteriorização e superficialidade mundana, referindo até a lisboeta.
As conclusões finais são talvez das mais acertadas de todo o ensaio: a obra destaca-se na literatura portuguesa e na "babel em que a arte então se transformara onde as raças e as línguas se confundem" (e o que diria de hoje...), «mostrando uma alma angélica, uma destas almas raras, que não podem deixar de sofrer muito num mundo para que não são feitas...»
Confessa então que todavia o mais íntimo e sagrado do livro ainda não tocou embora ela o "sentiu em lágrimas muitas vezes" e que foi a falta de um amor que o plenificasse, ou na sua expressão "consolasse", donde todo o seu sofrimento.


E recomenda então a todos, dum modo geral, e não sabemos se considerava Antero um caso já perdido para tal, a sermos bons e simples, retemperando o corpo nas alegrias simples da inocência e do amor, pois é aí e não nos "artificiais nirvanas" que a paz se encontra.
Esta crítica tem alguma razão de ser, pois na maior parte do casos as pessoas não estão vocacionadas para uma vida de recolhimento e auto-conhecimento libertador. Embora possamos ver nas quatro ashramas indianas a passagem gradual pela idade do jovem estudante casto, ao ser casado, ao ser que se retira mais da vida social e finalmente ao que renuncia ao mundo, assim se caminhando para a morte libertadoramente. Ora Antero fora entrando claramente nesse desprendimento e não desejo, estado anímico e vivencial que sendo para poucos compensa os excessos de muitos nos prazeres e ilusões sensoriais.
Nos cinco parágrafos últimos deste ensaio, autonomizados por uma separação com três estrelinhas, no VI e último capitulo, ela pede desculpa pela "ousadia mas sincera" a Oliveira Martins, o grande amigo e prefaciador dos Sonetos, reconhecendo nesse prefácio que Martins tocou com recolhimento e quase fervor religioso na alma de Antero de Quental, tanto mais que o conheceu pessoalmente ao contrário dela e ao terminar pede perdão se houve audácia da parte dela pois quis apenas mostrar o "livro extraordinário à luz da minha impressão pessoal»
Poderemos pôr em causa o adjectivo adorável com que termina o seu ensaio, pois como vimos continha, para ela, erros graves, mas de qualquer modo há uma aquiescência final com o "extraordinário" do livro e "o prazer íntimo e profundo que sentiu ao escrever sobre ele."
       
É claramente uma pessoa inteligente, que pensou e reveu bem o que escreveu.
O que terá sentido Antero, ao ser por um lado com simpatia elogiado aqui e acolá mas também criticado enquanto excessivo pensador metafísico vago, e socialmente inactivo e pessimista perigoso?
Temos para o saber, o que Antero lhe disse, primeiro quando leu os artigos no jornal, na carta escrita no Porto, na noite de Natal de 1886 (e que transcreveremos e comentaremos brevemente), e segundo quando lhe agradece o envio do livro, em carta de 23-II-1889. E se na primeira carta se confessa comovido e a tenta esclarecer demoradamente das suas incorrectas concepções filosóficas e espirituais, a segunda carta  já apenas elogia as apreciações críticas a George Sand e a Feuiellet e
nada diz  sobre o que ela escreveu sobre si, derivando antes de Feuillet para considerações valiosas sobre as ideias modernas, ainda sem «apresentarem aquela consistência, unidade e, sobretudo, humanidade indispensável para serem a base segura da educação», enquanto que "os sonhos do velho Credo" ainda falam ao coração e imaginação das multidões.
Mas aguarda para ver se uma "filosofia mais profunda", que se está incubando «é capaz de descobrir o caminho secreto das suas simpatias e da sua confiança. O Transcendentalismo tem de ser restaurado, dum feitio ou outro. Só ele pode satisfazer, ou, pelo menos, iludir e entreter as desmedidas aspirações, as ambições e esperanças incorrigíveis do coração humano».
Sabendo nós que Antero de Quental estava muito avançado para o seu tempo podemos interpretar este parágrafo final deste modo: o Transcendentalismo, isto é a espiritualidade, a afirmação da existência do mundo espiritual e dos espíritos, ou de uma transcêndencia em relação ao mundo físico sensorial, tem-se desenvolvido nos dois últimos séculos bastante embora ora verdadeiramente satisfazendo, saciando e plenificando as aspirações humanas mais profundas, ora apenas iludindo e entretendo. 

Este segundo aspecto, "iludindo e entretendo", cremos que predomina ainda nos nossos dias, conforme vemos com tanta alienação desde a pseudo-espiritualidade, esoterismos e quânticas, as mais vulgares explorações evangélicas como as Testemunhas de Jeova ou a Igreja Universal do Reino de Deus ou outras, que se baseiam sobretudo em pessoas pouco cultas, facilmente manipuláveis, e que pela excitação e auto-sugestão, fé e crenças são arrebanhadas por ogres a fazerem de pastores. O que pensaria e diria de tais grupos e igrejas, Antero de Quental?
Finalizemos com dois dos aspectos mais luminosos apontados por Maria Amália Vaz de Carvalho: "a alma angélica de Antero", e a necessidade de encontramos o amor da nossa vida, o amada ou a amada...
E a este amor unitivo acrescentaremos nós, e na linha anteriana e da sua desejada Ordem contemplativa dos Mateiros, o amor ao Espírito, ao Amor, ao Mestre e ao Divino, tanto transcendente como imanente, algo que Antero de Quental bem demandou e que devemos realçar pois embora expresse tal mais nas Cartas e nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, também nos Sonetos se encontra, e isso Maria Amália Vaz de Carvalho não discerniu bem vendo no Transcendentalismo ou no "credo" de Antero de Quental apenas a faceta de desprendimento, da renúncia, do não desejo, de certo modo negativa e de algum modo budista, e não a outra face da compreensão racional e científica das energias a harmonizar nas nossas vida e a realização interna do espírito e da sua força criativa de se sentir, e logo de ser, Amor e fazer o Bem e religar à Fonte Primordial...

Diários e Meditações. Da luz e da música nas igrejas. Registo do diário de VIII-1994.

          
As igrejas ou templos são dos melhores locais de elevação, por vezes consagrados há séculos por inúmeras devoções e que nos podem despertar as asas, a percepção delas ou o voo da alma espiritual...
« (...) Depois fui para a Sé de Lisboa, ouvir ou mergulhar no fogo de luz e som, forma e energia dum concerto de órgão, com as últimas composições a atingirem o sublime. A luz, ao atravessar a janela da capela-mór, enriquece-se com a tonalidade algo rosa das paredes e difunde-se numa vibração de unção de piedade mística que chega até aos nossos olhos e alma e nos faz quedar contemplativos da Luz Divina da Eternidade.
                                     
O mistério da Luz na catedral assinala-se-me pela primeira vez mais fortemente. São momentos de boa suspensão do fluxo das vagas de pensamento, e de criação de uma abertura ao Alto.
As mãos, que na audição ou participação da música são por vezes bem importantes para orientar as energias internas, param sobre o coração e o peito e dou-me por mim como que a querer puxar com os dedos a abertura central do peito à Luz e ao Amor. Bom e belo. Deus é Amor. E se abrirmos o coração a Ele, eis-nos na Felicidade.
                                    
              Fotografias na Sé de Lisboa, captadas por mim, quando se deu o concerto de música religiosa bem elevativa da alma... Lux Dei...
Na vinda para casa, paro na igreja do Corpo Santo, junto ao largo a ocidente do cais do Sodré. Uma Nossa Senhora belíssima segura o corpo exangue de Jesus, um S. Miguel forte e belo e um bom ambiente permitem-me nova elevação. Ajoelho-me junto à balustrada de mármore, deixo que a energia da igreja circule por mim e me leve à adoração, à sua maneira tradicional (de joelhos). Mas dei com as mãos abertas apoiadas na testa e elas são como dois cornos cervídeos abertos ao alto.
De novo, a luz coa-se por frincha da janela e assisto e participo dum crescendo de raios, revelando gradualmente a pujança colorida e encadeante da luz que nos chega do distante Sol.
Esta experiência do crescimento progressivo da intensidade de luz que afecta o meu ser é forte e interessante porque sentimo-la também a um nível da alma, ou seja, do corpo espiritual, e a nossa consciência expande-se e a nossa natureza solar espiritual é de algum modo sentida, fortificada.»
                  
Saibamos comungar mais com a Luz, o Amor e a Força do Sol, visível e invisível, espiritual, Divino....