segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A carta de 1886 de Antero de Quental a Maria Amália Vaz de Carvalho, acerca da sua recensão dos "Sonetos" e o comentário dela, já após a morte de Antero, contextualizados.

 Transcrição comentada e sublinhada do 2ª e último capítulo do pequeno ensaio acerca de Antero de Quental por Maria Amália Vaz de Carvalho, escrito em 1896, e comemorando a sua morte e  incluído no livro Pelo Mundo Fora.  
Maria Amália transcreveu nele a carta que Antero de Quental lhe dirigira em 24-XII-1886, agradecendo um conjunto de seis artigos publicados no Jornal do Comércio de Lisboa a propósito dos Sonetos completos, então dados à luz.   

 Esses  seis artigos foram publicados num livro em 1889, Alguns Homens do meu Tempo, merecendo então de novo uma carta de Antero de Quental a agradecer o livro enviado, a qual carta Maria Amália não partilha nesta espécie de texto de homenagem (pois Antero morrera em 1891) crítico de 1896, mas que já reproduzimos e interpretamos no blogue, no texto anterior a este, intitulado: Maria Amália Vaz de Carvalho e a crítica aos "Sonetos" de Antero de Quental, e à sua demanda da Verdade, excesso de pensamento, inacção e Budismo. As réplicas. 
 Passemos então a ouvir Maria Amália Vaz de Carvalho, na segunda parte do seu artigo jornalístico em memória de Antero de Quental, incluído no seu livro Pelo Mundo Fora. Os sublinhados estão apenas nas partes mais importantes da carta de Antero. O texto escrito dentro dos sinais [[   ]] é o meu comentário...                                                
                                                      
«Quando o livro dos Sonetos apareceu escrevi eu um estudo sobre eles, que não tinha, já se vê, outro merecimento além de uma sinceridade absoluta e de uma imensa simpatia. 
Lembra-me de que lamentava do fundo da alma que o autor dessas belas poesias tão raras na nossa literatura, ― a qual como todas as literaturas meridionais não peca pelo excesso de pensamento ― tivesse consumido a vida, que tão belas coisas podia dar-lhe, metido em si mesmo, naquela espécie de meditação alucinada que se traduzia, é verdade, em versos magníficos, mas versos que eram, como as pérolas, produtos de uma dor mortal. 
E revoltava-me contra a solidão mental em que Antero se concentrara, contra as hesitações do seu querer, contra as flutuações do seu pensamento, contra o pessimismo búdico da sua doutrina, contra tudo que fizera dele um filósofo germânico, ou um sonhador nebuloso e doente, e o separava da vida, da vida que tem tantos risos no meio das suas charnecas desoladas, ou dos seus sarçais cheios de espinhos e de répteis...
Mesmo com o risco de parecer vaidosa, não quero deixar de oferecer aos meus leitores, a carta, até hoje absolutamente inédita, que Antero de Quental me escreveu então, depois de ter lido os meus artigos que se publicaram primitivamente no Jornal do Comércio de Lisboa, e que hoje estão incluídos no volume intitulado Alguns homens do meu tempo
Aí vai a formosa e eloquente carta: 
Porto, 24 de Dezembro [1886]
Minha Senhora
Agradeço-lhe muito os seus artigos no Jornal do Comércio, e creia V. que o não faço só por civilidade, ainda que não é cousa que se deva desdenhar par le temps qui court. Não lhe direi que me agradaram os seus artigos, porque isso é o menos; dir-lhe-ei que me comoveram. Há neles uma sinceridade, que me encantou, e um tom fraternal que me foi direito ao coração, onde quero que não morra nunca a vibração dessas palavras amigas. 
 Creio que V. se engana na apreciação que fez das doutrinas chamadas (quanto a mim impropriamente) pessimistas e nos receios que lhe inspiram as tendências búdicas que começam a manifestar-se por todos os lados, em sociedades que atingiram o nec plus ultra da civilização, ou em indivíduos que atingiram o nec plus ultra do pensamento. 
Tudo isso, é verdade, está ainda bastante obscuro e confundido com elementos estranhos e até contraditórios, e por isso me não admira que não possa ainda ser apreciado sem grandes apreensões. O meu livrinho, apenas aqui ou ali em meia dúzia dos últimos sonetos, fere a nota exacta e sã, porque infelizmente morreu-me o dom dos versos, precisamente quando começava a pensar e a sentir alguma cousa que realmente merecesse ser posta em verso.
Não podia ele, tão incompleto e obscuro, justamente onde mais cumpria que fosse claro e amplo, dissipar aquelas apreensões, antes era natural que contribuísse para as radicar. Mas a minha convicção é que tais apreensões não são fundadas e que entre os
sentimentos naturais e espontâneos do coração humano, entre o seu ideal de justiça, de harmonia e de beleza, e o ponto de vista ascético do Budismo, não só não há contradição verdadeira, mas que, pelo contrário, é só nessa esfera que eles encontram a sua mais perfeita expressão, libertos de muitas ilusões e de muitas imperfeições que lhe andam forçosamente misturadas, e atingem a plena consciência do que são e para que são. E seria singular com efeito que a doutrina, que entre todas, faz consistir no Bem a verdade suprema da existência humana, pudesse colidir com aqueles espontâneos impulsos da nossa natureza, que não são, no fundo, senão formas e momentos, mais ou menos obscuros, mais ou menos incompletos da nossa fundamental aspiração a esse mesmo Bem! 
A verdade é que a civilização moderna chegou, no século actual, como a civilização antiga, no período do Império Romano, a um ponto em que, sob pena de completa ruína, o problema metafísico-psicológico tem de ser sondado a uma profundidade desusada e proporcional ao grau superior da mesma civilização.
Hoje, como então, as questões metafísico-psicológicas são a chave de todas as outras questões porque, tendo o próprio progresso das instituições e das ideias arruinado os antigos alicerces morais da sociedade, a grande questão, a questão vital e inadiável não é já a do aperfeiçoamento das instituições nem do aumento dos conhecimentos, mas a da organização teórica e prática da vida moral, a criação da ordem nas consciências, em uma palavra a remodelação do homem interior, sem o qual o outro homem, da sociedade e da vida prática, por forte e sábio que pareça é mais miserável que o escravo mais embrutecido. 
O progresso gigantesco do naturalismo, filho de uma civilização poderosa e complexa como nenhuma, só poderá ser equilibrado por um progresso equivalente do ascetismo. Sem esse equilíbrio a sociedade moderna, que já hoje nos causa mais terror do que admiração, poderá continuar ainda por algum tempo de poderosa, tornada formidável, e, de formidável, bestial: mas o homem, o verdadeiro homem, isto é, o homem moral, terá morrido: e morto ele, tudo cairá, por que só ele sustenta a grande mole social. A sociedade é, antes de tudo, um facto de ordem moral.
Mas não continuo com estas reflexões, porque desejo fazer delas o assunto de um escrito, até a certo ponto em resposta aos artigos de V. e que publicarei em forma de carta, se V. levar isso a bem. 
E termino, minha senhora, pedindo a V, que me consinta assinar-me daqui em diante, como realmente sou, seu muito amigo. ― Antero de Quental” 
*******
Destacarei apenas na carta de Antero de Quental, para além dos sublinhados, a sua valorização da libertação das ilusões e desejos, bem como da compaixão, o Bem supremo búdico, ou iluminado, e o considerar que estamos na altura de aprofundar as questões metafísico-psicológicas, o que em outros momentos denominou Transcendentalismo, Panteísmo espiritualista e ainda Panpsiquismo, e que são conducentes ao renascer do ser moral, ético, o "homem interior", fundamental para a evolução das sociedades.
Prosseguem agora as reflexões, sobre o teor da carta, escritas por Maria Amália Vaz de Carvalho, seguidas pelos meus comentários entre [[...]]

«Esta carta tão bela na forma, e tão profunda no pensamento, apresenta porém a contradição fundamental a que Antero sucumbiu.
[[Não foi por contradições filosóficas que Antero sucumbiu seja em vida seja na morte, pois quando foi preciso entrou em acção e quando se suicidou fê-lo pelo estado dos seus nervos e pela desilusão emotiva e social que o afectou muito nos Açores, nos últimos dias da sua vida]])
O ascetismo é a contemplação mais inerte: o Bem demanda a actividade mais incansável, o esforço mais tenaz.
[[Certa pequenez de afirmação, pois o ascetismo é recomendado em todas as religiões, de algum modo. E hoje, com o excesso de consumismo, agitação e informação, mais ainda é útil nem que seja para estarmos mais calmos, lúcidos, não manipulados e alienados. E a contemplação, difícil, só é possível havendo certa imobilidade das vagas de pensamentos, desejos e acções, dando-se então a experiência da unificação ou mesmo da Unidade, mas daí resultando frequentemente inspirações para a acção.]]
Como conciliar estes dois termos opostos? Se para o extático e contemplativo pensador a quem o nirvana sorri como o supremo fim da sua ascensão ideal, cada homem não é mais do que um momento que toma consciência de si e logo passa, aquele que na terra procura o Bem e tenta pelo seu esforço criá-lo, sabe que se dissolvem as formas em que a consciência se encarna, mas que ela, a sublime chama não se apaga jamais... Nós os passageiros de um dia que conseguimos por instantes guardá-la no nosso seio mortal, passamos rápidos sim, mas não antes de a transmitirmos àqueles que nos sucedem sempre mais pura, e sempre mais intensa...
[[O nirvana não tem de ser o supremo fim dos contempladores que atingem em geral apenas estados mais claros, serenos e ampliados de consciência. Algumas outras compreensões e visões do fim supremo podem ser demandadas ou encontradas. Tanto Antero de Quental como Maria Amália Vaz de Carvalho falham ou erram quando não conseguem descobrir, intuir, sentir, vivenciar conscientemente a individualidade espiritual e perene no ser humano, ambos soçobrando, ainda que transmitindo o bem às próximas gerações, no que eles pensavam ser a mortalidade da alma-espírito... Para uma católica, como pensaríamos ser Maria Amália, até parece algo contraditório, o não afimar a imortalidade espiritual individualizada...]]
O património real da humanidade é este: por este lhe vale a pena padecer e lutar. Este não morre com as pobres gerações que se sucedem como as folhas das árvores, como as ondas do mar...
Não é pelo Budismo antigo, ou pela ascética renúncia aos bens reais da vida que a sociedade tem de salvar-se. É pelo exercício activo das suas energias espontâneas, é pela fé na sua missão do bem, na sua ascensão a qualquer eminência moral, que ela ainda não antevê de longe, mas que existe decerto, mas que deve existir, ou este instinto de progresso a que obedecemos, seria mais uma ironia atroz entre outras tantas!...
[[Maria Amália Vaz de Carvalho, depois de mais uma vez atacar o ascetismo e renúncia aos bens ilusórios da vida, como se no ascetismo fosse necessário renunciar a tudo, repete o que Antero escreveu e recomendou sobre o Bem em dezenas de cartas, embora provavelmente não o soubesse senão pela leitura das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX. ]]
A prova de que esse ascetismo a que Antero recorre na sua bela carta é estéril, é que ele, querendo salvar por este modo a sua clara consciência e o seu espírito genial, veio acabar na morte voluntária, no suicídio banal dos vencidos e dos fracos!
[[Que maluquice, pois Antero no fim da sua vida estava a perder ou a obscurecer a sua clara consciência, esfrangalhada pelos nervos, apreensões e sofrimentos. O ascetismo de Antero, ou seja a sua vida frugal e o seu desprendimento da vida social e das ilusões da vida só o ajudou a viver mais tempo. Embora certamente a morte voluntária assinale um excesso de desprendimento em relação ao corpo físico e ao seu normal ou natural morrer. Sofrimento afectivo pela separação das crianças e pela dificuldade de se ambientar na ilha açoriana? Orgulho, falta de paciência, consciência das limitações cada vez maiores que impendiam sobre ele? Difícil acertamos plenamente no que mais pesou na sua decisão]]
Infelizmente era eu, tão mesquinha, e não ele, tão grande, que tinha razão, e essa razão, foi o seu acto extremo que ma veio dar.
[[Que exagero, a “mesquinha”, ou pequena, mas bem teimosa , tentando interpretar mal o suicídio do grande ser, culpando o seu ascetismo e budismo de o terem levado a tal]]
Ninguém pensara mais alto e mais justo que esse homem de uma consciência tão delicada, de uma penetração filosófica tão subtil, e cujo entendimento parecia talhado para as mais elevadas especulações da metafísica e da psicologia.
E no entanto ele não achou outra resolução ao problema que está presentemente posto diante dos olhos das sociedades extra-civilizadas e dos indivíduos que pensam intensamente, senão a do suicídio silencioso. 
 [[Como se Antero tivesse pensado que o suicídio fosse a solução para qualquer questionamento metafísico-psicológico, vivenciando-o provavelmente apenas porque se sentia em forte sofrimento físico e psíquico e porque considerou que pouco mais de valioso conseguiria fazer na Terra]]
É profundamente desoladora a fase do espírito humano que, de vez em quando, se manifesta em factos como este.
Como escapar a este estado de descrença absoluta em qualquer destino ulterior da nossa espécie? Retroceder à boa Natureza, à primitiva ignorância dos simples, como manda Tolstoi? Mas em primeiro lugar a natureza não é boa, depois, quem sabe pode porventura, e só por efeito da sua vontade, começar de um dia para o outro a ignorar?...
[[Retroceder à boa natureza não implica retornar à primitiva ignorância, tanto mais que é bem difícil ignorarmos o que se passa, como alude. Todavia, o contacto maior com a natureza e uma vida mais simples, certamente facilitam o desabrochar de forças vitais e espirituais, tão enaltecidas por Tolstoi (alguém que Maria Amália Vaz de Carvalho também estudou) e que impediriam o suicídio. Pouca gente se lembra ou tem em conta quão mal Antero digeria os alimentos ou dormia, dois aspectos essenciais para se estar com a mens sana, algo que certamente foi uma das causas predisponentes à libertação voluntária do corpo, que já tanto o fazia sofrer e do qual estava  desprendido]]
Cada sociedade que chega ao extremo da sua civilização particular, o que, exaltando de um lado o orgulho natural do homem, produz por outro, no espírito dele, uma irritação doentia, uma penosa desesperação resultante dos limites que este acha sempre à sua curiosidade transcendente ― cada sociedade que atinge esta perigosa eminência, está por esse mesmo fato, muito próxima da sua fatal degeneração.
[[O lado algo mesquinho e rasteiro dos seres humanos manifestando-se de novo em Maria Amália, como se os limites encontrados à sua “curiosidade transcendente”, e deveria ter escrito à sua aspiração ao divino imanente e transcendente, levassem à desesperação e irritação, como se a Divindade ou, se quisermos, a Ordem do Universo tivessem originado no ser humano tal aspiração em vão ou mesmo para lhe fazer mal. Maria Amália não é uma mística, nem espiritual, nem metafísica, apesar de ser certamente uma boa psicóloga, escritora, moralista, mas a realidade do espírito, ou da demanda da Verdade, desconheceu-a ou não a quis procurar]]
Nenhuma civilização se elevou mais alto nas abstracções do pensamento, nos arrojos da metafísica do que esse Budismo em que Antero de Quental tentava encontrar a suprema paz da consciência humana. E o que tem ele produzido senão resultados negativos, e alucinações doentias? A civilização antiga, grega e romana, procurou resolver o problema do destino do homem divinizando-lhe as paixões, e fazendo a permanente apoteose da força. E todos sabem em que agonia vasquejante o mundo antigo se diluiu. A Idade Média teve uma compreensão harmónica e grandiosa da vida e do destino humano, mas tanto exigiu do espírito e tão pouco pensou na fatal realidade, que fez de cada organismo de homem um anjo e um animal perpetuamente identificados, e ao cabo do sublime esforço, respondeu-lhe o retrocesso pagão da Renascença.
[[Estas apreciações das civilizações são também fracas, com erros. Porque falou na civilização Budista e não na Indiana? Porque ignora as jóias valiosas do Hinduísmo, do qual o Budismos é uma derivação, especialização ou se quisermos até uma heresia? Como reduzir a imensa sabedoria em textos e em vidas de milhares de obras e seres da Índia e do Budismo a alucinações doentias? Também discordamos de que a Renascença tenha sido um retrocesso pagão, afirmação em que se parece contradizer, pois se a Idade Média tinha separado tanto o anjo e o animal no ser humano, a Renascença e o Humanismo foram de facto uma movimentação forte para unir o ser humano e as civilizações clássicas e até orientais com o catolicismo, tal como Pico della Mirandola, Marsilio Ficino, Eugubinus Steuco, Giordano Bruno e  outros fizeram com pioneirismo.]]
O mundo moderno quer achar na ciência a chave do todo o eterno enigma que até hoje se conserva inviolado, a explicação do universal mistério que o envolve e penetra, a resolução de todos os problemas complexos que se têm acumulado diante do seu espírito em dois ou três mil anos de pensamento ― e a ciência impotente, incompleta, desconsoladora não tem água que sacie a nossa sede, não tem piedade que unja a nossa lenta agonia!
[[Certa actualidade no século XXI, pois há muita gente que faz da ciência a sua religião, o seu critério de justo e verdadeiro, e infelizmente sabemos quão manipulada ela está e como tantos estudos são falsos. Todavia, há já muitos cientistas que conseguem explicar e manifestar o Campo Unificado de Energia Consciência Informação, ao qual subjaza Unidade da Ordem e Amor, sendo esta uma zona de investigação contemporânea que Antero bem gostaria de conhecer e sobre ela filosofar, criar explicações abrangentes e clarificadoras, capazes até de se tornarem dinamismos psico-metafísicos, psico-mórficos.]]
Os melhores abdicam ou pelo indiferentismo inerte, ou pelo suicídio; que é ainda uma vitória do espírito ultrajado sobre si mesmo!
[[Eis uma frase e ideia complexa pois ela nºao nos explica o que entende por espirito, se a mera mente, como parece, se a centelha espiritual e divina, eterna. Quererá Maria Amália dizer que o Espírito ultrajado e enganado  vence em batalha  quem estava ultrajando-o, matando-o, pondo fim à existência terrena do ego e da persona? Mas quem sobreviveria à morte física? Apenas o espírito, ou um todo unificado no qual algo do ego e da persona ainda passam para o post-mortem, amalgamados ao espírito e seu corpo espiritual?]]
E um véu de tristeza densa e plúmbea envolve este mundo enorme, agitado, convulso, atravessado de fios eléctricos que em minutos transmitem de um ao outro dos seus extremos o pensamento e a palavra; cortado de locomotivas vertiginosas; abarrotado de riquezas brutas; ébrio de orgulho material, de luxo e de vaidade; persuadido de que é a realização mais completa da felicidade e do triunfo moral do homem; mas tremendo a cada abalo subterrâneo que revele quão minados estão os seus alicerces e em que movediça areia assentam os seus edifícios de Babel!
Contudo há uma afirmação, no meio de tantas dúvidas e de tanta desordem mental, que pode ser feita sem medo!
O Bem existe! A consciência humana conhece-o mesmo quando o atraiçoa ou o desdenha. É ela que o tem criado em séculos de luta sublime! Os humildes de coração são talvez os que estão mais perto das fontes vivas de onde ele promana, e é pela humildade e pela aceitação resignada do seu destino incompleto e triste e eternamente obscuro, que a pobre humanidade definitivamente se salvará!
[[De novo, ainda que com crença e optimismo no bem, uma certa linha positivista e materialista a sobressair em Maria Amália, anti-platónica, poderemos dizer, pois não há o mundo das ideias ou o mundo espiritual, anterior e acima do mundo físico, humano e histórico, e onde em seres ou em qualidades divinas o Bem preexiste, e para o qual o ser humano se vai abrindo e manifestando. Não, para Maria Amália o Bem existe apenas porque é criado pelo homem, e o Bem existe, ou salva os seres humanos, se eles tiverem uma "humilde aceitação resignada do seu triste destino eternamente obscuro”.
Que visão lúgubre do Universo nos dá para terminar, Maria Amália Vaz de Carvalho, incapaz mesmo de referir o seu Logos ou Inteligência e Palavra, seja apenas como Anima Mundi, dos antigos gregos e romanos, seja já cristãmente incarnado em Jesus, como reza o prólogo do Evangelho de S. João. Acabamos assim por ver algo surpreendentemente que nem verdadeiramente cristã, é, mesmo nas suas faces postergadoras, tal a de S. Paulo, que remetem a visão da Verdade ou de Deus apenas para quando estivermos libertos do corpo físico e no mundo espiritual, aqui terrenamente restando-nos então a fé, algo que Maria Amália nem sequer refere bem, condenando-nos antes para a “aceitação resignada e humilde da obscuridade do seu destino incompleto e triste”]]
Por mais que amenos e veneremos a memória de Antero, não podemos pois achar justo o seu suicídio.
Contentamo-nos em achá-lo explicável. »
 Assim termina a sua apreciação da vida, obra, ideias e suicídio de Antero de Quental, a Maria Amália Vaz de Carvalho. Como vimos, com erros justificados pela sua discutível cultura filosófica, religiosa e espiritual e no seu empenho voluntarista em lutar contra o ascetismo, a contemplação, o desprendimento, a inacção, o pessimismo, o budismo, que considerava erróneas escolhas do poeta e perigosas para a sociedade.
A afirmação final "Não acha justo o seu suicídio", pode ter alguns sentidos; em quais terá ela pensado e valorizado mais não poderemos adivinhar, mas provavelmente queria dizer que não foi justo que um homem tão bom e tão sensível se tivesse deixado matar pelo excesso de pensamentos contraditórios e filosofias erróneas e pessimistas.
O que lança alguma perturbação neste final da sua explicação do suicídio de Antero de Quental é a oposição enorme que para ela existe entre o máximo de amor que possa haver a Antero de Quental e a aceitação do seu suicídio como justo. O máximo que se lhe poderá fazer é achá-lo explicável, pelas diversas causas ascéticas, pessimistas e budistas que o enlearam, enfraqueceram e levaram à morte. Como já vimos, não creio que tenham sido essas as determinantes
E se o levaram à morte física também o levaram à imortalidade, acrescentaremos nós, embora por vias ascensionais subtis e misteriosas, em grande parte ainda desconhecidas pelo comum da Humanidade, já que o melhor dos seus recursos humanos e naturais é gasto e destruído em armamentos, opressões e guerras, para não falar dos consumismos e poluições, impedindo-se o desenvolvimento psíquico, cultural e espiritual.
                         
Enviemos-lhe esperançada e optimisticamente os nossos maiores ou melhores raios de simpatia grata, amor e de força no seu caminho ascensional rumo à Divindade, que é a Realidade, o Bem, a Fonte Primordial...

2 comentários:

Luama Socio disse...

Excelente!!!! A crítica ao ensaio de Maria Amália traz à tona uma série de questões que ainda agora são tratadas de modo leviano ou supersticioso. Maria Amália representa com perfeição a opinião convencional, segura de si, a respeito de assuntos que na verdade não conhece em profundidade, combinada com uma espécie de não-aceitação da realidade... parece-me. As elucidações de Pedro Teixeira da Mota, passo a passo, são de uma clareza notável... são de "lavar a alma".

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Muitas graças pela sua generosa apreciação, Luama. E peço desculpas de só agora ver o seu comentário e enviar algum eco de gratidão e sabedoria. Ao revê-lo há pouco, melhorei-o, estando bem de acordo com o que diz, e sobretudo que temos de tentar aprofundar com constância tudo na vida, o que o merece ou o que nós mais trabalhamos, criamos, nos desafia ou amamos. Muitas inspirações criativas brotando do fogo tão belo do Amor em si.