domingo, 11 de novembro de 2018

Iconologia, 1º: Iconografia de Santo António. Contributo espiritual e até ecológico. Sua evolução.

                                      
                        Maestro di S. Francesco. séc. XIII. Pinacoteca de Vannucci, Perugia
A iconografia (representação por imagens) tradicional de S. António,  iniciada pouco depois da sua morte, já que em 1232, apenas um ano depois de morrer com 39 anos de idade, já estava canonizado pelo papa Gregório IX (que o conhecera bem), manifesta claramente quanto ele se tornara conhecido e amado em Itália, França e Portugal, e baseia-se nas memórias e nos primeiros escritos ora biográficos ora hagiográficos.
 O primeiro retrato que surge ou que temos é ainda no séc XIII, o do dito "Maestro di S. Francesco" ou de Margaritone d'Arezzo. Seguindo-se, no séc. XIV, o da escola de Giotto e que se encontra na basílica de Pádua, a seguir fotografado sobre um pano verde oriental. Mas não se pode dizer que eram a "verdadeira efígie" dele, mas antes aproximações...






Também no séc. XIV,  em frescos de Giotto e da sua escola, e de outros, vemo-lo  como  um franciscano santo, um companheiro e amigo de S. Francisco de Assis, em geral no gesto de ensinar ou abençoar, no caso do fresco de Giotto vendo clarividentemente o seu mestre S. Francisco de Assis súbita e miraculosamente surgir  abençoadoramente numa das suas aulas do curso de Teologia no convento franciscano de Bolonha, para as quais fora nomeado por ele e pelo Papa graças aos seus dotes e à sua boa formação de base nos Cónegos Regrantes de S. Agostinho, em Coimbra, onde estudara  de 1212 a 1221, só depois passando a Franciscano.
 O século XV, com o aparecimento da tipografia e das xilogravuras, e com o aperfeiçoamento da pintura e do retrato vai ser altamente potencializador de imagens de S. António começando a  surgir tipicamente com o livro e com a mão a abençoar, e só mais tarde com o menino divino numa mão e na outra um livro, lírio ou açucena ou cruz.
Simultaneamente é representado em cenas e milagres da sua vida (65 cenas ou prodígios, em geral, desde 1371, com a redacção por
Arnaldo de Serrano do Liber Miraculorum, entre nós traduzido e publicado como as Florinhas de Santo António de Lisboa.
                                          
Algumas das cenas serão muito trabalhadas, tais como o sermão aos peixes, o abençoar afastando o mal, a doação do pão (dos pobres), não sendo porém frequentes representações da clarividência algo profética e do desdobramento ou ubiquidade que teria vivenciado algumas vezes, tal como vemos nesta imagem:
                           
Há variantes ou pormenores valiosos na iconografia de S. António de Lisboa, de Pádua e da Terra que será instrutivo destacar e
contemplar, e já dentro ou no âmbito de uma iconologia, ou seja, numa tentativa de entrada no logos, ou alma e inteligência espiritual, da imagem-gravura-símbolo desafiante, inspiradora, impulsionadora....
Neste sentido diremos que as mais puras e valiosas representações serão aquelas na qual há apenas a chama do Amor no coração ou peito do místico e santo António (de nascimento, Fernando Martins de Bulhões), ou então já o Menino, assim se simbolizando  o Amor que nele ardia para o mestre Jesus para o Pai Divino, ou seja, o Amor à "criança divina" (o puer eternus) que está em todo o ser.
No fundo, mostra-se a existência nele, no seu coração ou íntimo da alma, da criança pura e divina que está em todo o ser e que é tanto um estado ou modulação consciencial de amor como uma forma de representar a presença Divina latente, o Deus vivo, no ser humano.
Na realidade,  S. António, depois da sua tentativa malograda de ser missionário em Marrocos, realizou, na Itália onde desembarcara em 1221 com outros monges franciscanos, uma forte via purgativa, ascética, purificadora, em especial nos nove meses (1221-122) em que esteve recolhido numa gruta eremitério no Monte Paulo, em Forli, e nessa fase mais ascética o vemos em algumas pinturas e gravuras, lembrando-nos que para se chegar aos tradicionais estados conscienciais iluminativos e unitivos é necessário passar pelos purgativos, purificadores... 
Gravura de livro italiano, reproduzido numa obra de Luís d' Oliveira Guimarães, 1931.
Revelando-se inesperada e forçadamente um notável orador, foi nomeador Pregador da Ordem e depois até director e Mestre de Teologia em Bolonha,  exercendo em simultâneo o studium, o diálogo, o ensino universitário (numa linha menos escolástica e mais espiritual),  a pregação (com sucessos extraordinários, e de 1224 a 1227 na Provença francesa, dos cátaros e albigenses), a oração e a aspiração, bem como o amor a Deus e à salvação da alma dos outros, intensificando assim a chama  ou Presença  Divina nele fortemente, a qual foi reconhecida e manifestada no seu coração e permitiu que não fosse representado tradicionalmente  apenas com a auréola da santidade mas também com o coração ardente ou cheio de Deus, como já antes acentuámos...
Iluminura em pergaminho do Livro de Horas de D. Manuel I. (MNAA). 
 Se considerarmos a divisão tradicional tripla das potências da alma - a vontade, o afecto e o intelecto -, é natural encontrarmos imagens em que tais níveis e capacidades anímicas estão claramente simbolizados,  para ressoarem internamente e estimularem nas almas devotas  o desenvolvimento de tais qualidades.  E assim encontramos o gesto de abençoar (da vontade), o ensinar ou pregar, a  leitura e o livro (do intelecto) e os diálogos e carícias (da afectividade). 
Também o S. António militar, ou protector do povo e exército português, em Portugal (sobretudo  na guerra Peninsular, de 1812-14, contra os invasores franceses, mas recebendo já um soldo desde o rei Filipe II) e no Brasil (contra os Holandeses), o pregador com o livro e a cruz e, finalmente, o Santo António casamenteiro são aplicações da mesma regra, ou outros exemplos dessa tripartição, em vontade, intelecto e coração.
De um modo geral podemos dizer que nas representações mais antigas predominou o S. António simples, isto é asceta, pobre, pregador da pobreza e amor a Deus, ou o crítico das injustiças e dos pecados dos religiosos e leigos e que tenta converter, transformar, comunicar a mensagem do mestre Jesus e sendo por isso representado com um livro.  Só depois surge o S. António místico e prodigioso,  já com o divino Mestre ou menino, ou o espírito santificado, dentro de si brilhando.
Depois, materializando-se ou tornando-se mais visível ou expresso tal nível, vivência e realização espiritual e divina, sucederam-se as  representações de receber o Menino Jesus que descia das nuvens, em geral acompanhado de Anjos, o que se pode interpretar não só literalmente mas também  simbolicamente como  a subtileza, a espiritualidade, a graça de tal dom ou capacidade de ligação aos mundos espirituais.  
Ou ainda, se quisermos interpretar ainda mais anagogicamente, ou seja, mais ascensional ou espiritualmente,  diremos que temos de esforçar-nos por conseguir e merecer um bom grau de oração e ardência mística interior, unificadora das nossas ondas mentais e propiciadora da contemplação e visão interior, para podermos ver ou sentir a Divindade, seja por que forma Ela se queira manifestar tal graça.
Foi representado também com frequência com o Menino sobre o livro religioso, que o santo segura, de acordo com a narração do milagre ou prodígio, seja a meio seja já no fim da sua vida, em Campo Sam Piero, em que teria sido visto em oração e comunhão dialogante com o Menino, tornando-se esta a representação mais comum.
 Mas por fim foi suplantada (a contagem comparativa entre as duas imagens, sobre o livro ou nos seus braços, será naturalmente impossível de se comprovar tantas são as imagens constantemente a serem geradas...)  por aquelas em que o Santo tem mesmo o Menino-Amor (que tem algo de Cupido ou Eros, da tradição grega) nos seus braços, imagem bem mais natural e assimilável.
Estas últimas representações, e que se desenvolverão mais no período  Barroco, permitem um enternecimento bastante grande, pois tanto a criança apela ou brinca com o santo, tanto S. António se debruça, se suaviza e fragiliza no contacto terno com ele. 
Foi certamente ao longo dos séculos um arquétipo (tipo primordial) para muitos pais quando seguravam os filhos nos braços e alma e se deixavam envolver pela aura da pureza e inocência infantil que tanto as crianças como tais imagens do Menino e  S. António sugerem, irradiam, partilham...
Que esta ideia de imagem arquetípica e mesmo susceptível de visão interior ou espiritual estava presente em alguns artistas  podemos nós intuir ou deduzir ainda pelo facto de frequentemente Santo António, além da sua aura ou manifestação do corpo espiritual, ter como fundo um céu de nuvens aberto, donde ele se destaca, recriando-se assim a visão do santo, ou de algo luminoso, no olho espiritual  do devoto e emergindo de entre as nuvens, ou seja, por entre ou sob a forma de ondulações de energias subtis...
Este aspecto não deve ser descurado pois em geral um santo taumaturgo é invocado pela oração sendo a resposta interior, seja pela paz e acalmia que se recebe, seja até pela visão do que se procura, ou mesmo do próprio santo,  seus atributos  ou até das suas partes corporais preservadas, estas com o tempo se erguendo a um certo culto ou veneração que se transmitia ao que nelas era tocado e depois, por exemplo, em santinhos, inserido.
Atributo companheiro de muitas das representações está a açucena ou lírio branco, símbolo do desprendimento, simplicidade e pureza e que todo o ser que procura uma melhor relação com Deus deve cultivar em si.
Aliás o próprio António dos Bulhões num dos seus sermões (Dom. Post Trinit. N) interpretou-os assim: «Os lírios figuram pelo seu alvor, a pureza da alma e do corpo... Representam a pureza e santidade de todo o ser justo...»
De realçar que em algumas representações Nossa Senhora aparece
ao alto das gravuras, donde parte ou vem o menino, como se ela permitisse a S. António usufruir do privilégio que foi o seu de se deliciar com a criança que fora Jesus, ou até com a imanência do espírito divino. Há certamente analogias com a Anunciação do Anjo a Maria, com uma descida divina à Terra.
Uma das mais conhecidas é a de Francisco Vieira Lusitano (1699-1783), e da qual reproduzimos o belo espécimen aguarelado da Biblioteca Nacional, mostrando, num céu aberto por entre nuvens e Anjos e cupidos, Nossa Senhora a entregar o menino Jesus a S. António, o qual tem nas mãos um pano para o acolher. Este pano acolhedor e transitivo da alma  é  um dos ícones  subtis das graças antonianas místicas que podemos também sentir-ver...
                               
Podemos dizer que, às iluminuras historiadas de manuscritos e de Livros de Horas, e às pinturas  em frescos, telas, painéis ou retábulos e azulejos, na posse de reis, nobres, conventos ou igrejas, com o começo da tipografia, sucedeu uma ampla divulgação e acessibilidade da memória, invocação e culto do santo através das milhares de xilogravuras e gravuras que foram sendo geradas em tipografias e lojas e que para livros, ou vendidas em lojinhas e sacristias, circulavam depois por toda a parte  graças a devotos, almocreves e ceguinhos, algumas sendo exportadas até aos confins do mundo.
Xilogravura portuguesa, anterior a 1541, existente na Torre do Tombo. O Menino com uma cruz em forma de Tau, o Santo com uma tripla floração pura na mão.
Destacavam-se então algumas esculturas,  pinturas, ou simplesmente gravuras, veneradas em certas igrejas e capelas, onde as pessoas peregrinavam, rezavam e podiam adquirir uma imagem impressa portátil do santo, protectora ou abençoadora...
Lisboa, tal como outras cidades, tinha vários locais de culto e de gestação e impressão de estampas, desde a casa onde nascera junto à Sé (sobre a qual se edificara uma igreja, reedificada depois do terramoto de 1755 pelo arquitecto Mateus Vicente, a qual vendia o seu "verdadeiro retrato", em baixo reproduzido, sendo ainda hoje o grande local do culto, a par da basílica de Pádua, e donde parte a grande procissão a 13 de Junho), às imagens que se veneravam no Convento de Jesus, no Convento de Belém, na Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, etc. 
Fora da capital, destacavam-se a Sé de Coimbra e a Sé Catedral do Porto, onde o S. António como menino de Coro (que teria sido na Sé de Lisboa) era venerado.  No Brasil foi e é vasto o culto popular de S. António, e bem necessita, nestes tempos depois das eleições de 2018, da sua inspiração...
As capelas, igrejas e conventos, e os hospícios e hospitais dos Franciscanos e da Ordem Terceira eram também centros difusores do culto de Santo António, que tinha em Lisboa no mês de Junho os seus momentos mais intensos e entusiasmantes, em especial na noite de véspera (infelizmente nos nossos dias demasiado reduzida à sardinhada convivial e a um ou outro bailarico e às marchas), com as trezenas que a antecediam,  as missas e prédicas, as procissões e arraiais, os tronos e bailaricos, as fogueiras de alecrim e rosmaninho, as sortes casamenteiras e os descantes poéticos. 
 Nasceram e se forneceram assim a milhares e milhares de pessoas gravuras que tanto podiam inspirar desenhadores e pintores como podiam ser envolvidos mais ou menos artisticamente nos famosos "registos" emoldurados, e assim intensificar a devoção não só ao santo, mas à Divindade, ao Pai, ao Espírito Santo, a Jesus, a Maria, aos Anjos e ainda ao Amor, à Ordem e Providência que tanto faziam encontrar as coisas perdidas como achar ou atrair a mulher ou marido, pois como já o ditado popular rezava: "O casamento e a mortalha no céu se talha".
 Também em mapas cartográficos, cartas de marear os profundos, volúveis e difíceis oceanos e suas costas, exteriores e interiores, encontramos a invocação confiante e abençoante em S. António. 
Carta náutica de João Teixeira Albernaz I. [1620-1640].  Torre do Tombo.
Nos ex-votos de reconhecimento por graças de S. António (o 1º  em Tomar, o 2º no Museu da Cidade em Lisboa) encontramos outra das fontes da iconologia do santo, plenos de sentimentos,  quase quantificáveis por vezes na piedade e gratidão que emanam da composição e legenda, outrora em geral oferecidos e conservados nas sacristias, hoje em geral mais em museus e colecções.
E, finalmente, entre as fontes iconográficas, há ainda a mencionar tanto as esculturas em barro, tão populares, como  os desenhos em pratos de cerâmica, como ainda as medalhas e escapulários a levar ao peito e os santinhos e pagelas que se podiam levar no bolso, carteira ou missais e que tiveram e ainda têm milhares de representações e gestações, com grande procura, em especial nos locais ligados a S. António.
S. António, numa colecção de olaria de devotos tomarenses.
 No domínio da Palavra ou Verbo, bem valiosas são as quadras, poemas jaculatórias, orações, litanias, hinos, sinfonias e responsos criados ao longo dos séculos  para fortalecer a ligação com S. António e através dele com as qualidades divinas de Confiança, Fé, Esperança, Paz, Amor, Luz, ou ainda com Jesus e com Deus.  Ou, algo mais pragmaticamente, para ele arranjar um casamento ou inspirar o descobrimentos de objectos perdidos. Um dia desenvolveremos e aprofundaremos mais o contributo dos poetas, dos mais populares e anónimos ao Fernando [António Nogueira] Pessoa, nascido no seu dia e de algum modo seu devoto, pois conservava um santinho na sua carteira...
Um desses responsos centenários que nos chegou, e do qual há outra versões, recolhido por Arnaldo de Mariz Roseira de uma velhinha minhota, explica a razão da sua efectiva presença intercessora entre nós, é maravilhoso de crenças, ritmos e sugestões quase milenárias e  até universais, por exemplo, na analogia com o Bodhisattva da tradição Budista: «Santo António se alevantou, // Suas santas mãos lavou,// Na sua varinha pegou.// E o Senhor lhe perguntou:// - E tu, António onde vais?// Ó Senhor, eu ao Céu vou.// - Tu comigo não virás;// Tu na Terra ficarás;// Quantas coisas se perderem,// Quantas tu encontrarás."// .
No fim acrescenta-se a fórmula de petição, que varia apenas na parte final da explicitação da graça desejada: «Milagroso Santo António, fazei com que eu encontre (...) , [por exemplo] a minha alma gémea», no caso de aspirarmos a tal nível elevado de união...
E se muitos dos responsos são  longos, já algumas jaculatórias bem pequenas e incisivas, parecidas até com as endereçadas ao Anjo da Guarda, merecem ser relembradas e pronunciadas:
"António Santo, de Jesus Amado,
Valha-me sempre vosso amparo."
Ou: 
"António Santo, de Jesus amante,
No vosso amor me fazei constante."
E:
"Santo António, meu inspirador,
Fortalece-me no Divino Amor!»

Certamente que as mais eficazes terão sido e serão as espontâneas provindas do coração, ardente em aspiração, aflição ou contrição, em esperança ou em amor, e essas não as poderemos aqui registar, cada um de nós devendo-as emanar da sua alma e escrever nas entrelinhas dela e de eventuais diários...
Podemos, contudo, assinalar outras bem simples e eficazes no objectivo principal que é o de se controlar a agitação da mente e estabelecer uma afinidade e ligação vibratória com Espírito, com o Santo   e com o Divino, e que se podem repetir durante minutos, tais como os mantras orientais são empregados:
«Santo António,/ eu te saúdo, eu te invoco.»
«Santo/ António,/ Santo/ António,/  Santo/ António,»
Dos objectos que se tornaram icónicos, realcemos as relíquias suas e os objectos ou tecidos que tocaram essas relíquias  e que de algum modo se embeberam, diante da fé do devoto, de uma capacidade de bênção espiritual.
 Através da ajuda destes diversos meios, ou mais asceticamente sem nada de suporte, quem ora e medita em, ou com, S. António de olhos fechados com o seu espírito de contrição (de frade franciscano e bastante asceta) ou de aspiração amorosa, mística ou de amor à Divindade, certamente será abençoado com alguma graça interior...
Artisticamente, sendo o santo português, deveremos mencionar alguns dos seus compatriotas que se esmeraram na tentativa de imortalizarem visivelmente alguns aspectos dele ou da sua vida e entre os notáveis pintores e desenhadores lembraremos apenas (e pedimos desculpas aos outros, embora num próximo texto os possamos trabalhar) e exemplificaremos agora com um: Gregório Lopes, nomeadamente com o seu S. António a pregar não só aos peixes mas também aos animais (havendo ainda episódios com um burro e rãs), neste aspecto na linha não violenta e de amor fraterno aos animais, bem demonstrada pelo seu mestre S. Francisco, tão actual nos dias de hoje, com um partido político português em parte consagrado até a eles e à não sub-animalização do ser humano, o PAN...
Para além das milhares de obras valiosas de escultores, pintores e desenhadores expostas em museus, igrejas  e capelas existem muitas outras conhecidas apenas de algumas pessoas, que as veneram ou amam ou não. Saibamos nós ter algumas, nem que seja de uma gravura, santinho ou reprodução, ou então simplesmente de cor, ou seja no coração. 
Pintura bem original e actual de Maria de Fátima Silva.
Podemos assim, com o auxilio das imagens, tanto dialogarmos e invocarmos S. António, como cultivarmos a imanência divina mais desenvolvida pelos amigos e amigas de Deus, os santos e santas e mestres, seres  já mais identificados ao espírito e ligados à Divindade e por isso fontes de forças e inspirações, para nós vivermos mais ecológica, sábia e amorosamente e ajudarmos a Humanidade e o Planeta a sobreviverem ao neo-liberalismo capitalista e imperialista, inepto e irresponsável, que têm aos poucos destruídos tantos países, povos, eco-sistemas e condições climatéricas...
Como protector individual, de Lisboa ou nacional, lembremos a
quadrinha alentejana, recolhida pelo sábio Tomás Pires e transcrita pelo musical Alfredo Pinto (Sacavém), para momentos mais difíceis: 
                     «Santo António de Lisboa
                        Espelho de Portugal,
                        Ajudai-me a vencer
                          Esta batalha real»
 Demos então graças  S. António e à sua protecção e inspiração nos  Caminhos rumo à, ou na companhia da, Divindade imanente, do Amor e do Bem...
Nesta gravura de Francisco Vieira Lusitano, vemos S. António, eventual inspirador e protector dos ecologistas, dos viajantes, dos animais e das árvores, sobretudo nativas, no caso protegendo um pinheiro manso de ser abatido por forças destrutivas ou diabólicas, como tantas hoje há ligadas a grupos de pressão e de ideologias egoístas e negativas violentos... 
Mas para quem achar que este atribuição de protector das árvores é invenção nossa, dada a ferocidade com que Câmaras e juntas de freguesia tratam ou abatem as árvores, relembro como ele acabou os seus últimos dias numa cela-eremitério construída para ele numa árvore no Monte Paulo e foi  representado sentado dentro da copa dessa nogueira, bem frondosa e doadora de frutos tão bons para a harmonia cerebral e anímica, qual eixo entre o céu e a terra, como todos devemos ser, ensinando, irradiando: 
                                                                PAX - LUX - AMOR

domingo, 4 de novembro de 2018

Livros estúpidos e maus, ditos sucessos de vendas: "Heidegger e um Hipopótamo chegam às portas do Paraíso"

Há livros que são tão pretensiosos, no título, na introdução, na propaganda, que se tornam demasiado estúpidos e maus ao fim de algumas páginas de leitura obrigando-nos a um esforço para os continuar a ler.
Lida a introdução, por vezes de uma superficialidade assustadora, ainda que referindo alguns nomes e movimentos mas só testemunhando uma banalização do que deveria ser tratado com seriedade e importância, entramos com vontade de conseguirmos rapidamente dar por terminada a leitura, abreviando-a, até com receio que a obra afinal melhore e tenhamos que ler muitos capítulos para não sermos injustos, se queremos fazer um crítica ou juízo de valor com qualidade.
Vejamos então alguns desses livro maus, péssimos mesmo, e em primeiro lugar o que provocou este texto:
Thomas Cathcart e Daniel Klein são os autores do horrendo livro, mas com uma capa muito surrealista e atraente, com anjinhos e nuvens, intitulado "Heidegger e um Hipopótamo chegam às portas do Paraíso" e que pretende ser uma aproximação e investigação ao mistério da morte, e também ao da vida ou não depois da morte... 
Leva a chancela de uma editora aparentemente ainda com algum prestígio, D. Quixote-Leya,  mas a obra  revela-se fumo sem fogo, pois  é um aglomerado de piadas de mau gosto, literalmente más, torcidas, negativas, e informações dos mais diversos níveis de seres (de filósofos a espertos), em geral contraditórias, o que facilita o fazer-se piada com um assunto que mereceria ser mais bem tratado para poder despertar a sensibilidade anímica para se vivenciar ou intuir algo dos níveis espirituais, algo que estes autores desconhecem ou estão mesmo contra.. 
A capa e títulos originais, algo diferentes na tradução portuguesa
  Na realidade a informação fornecida acerca do subtítulo "Através da Filosofia (e de piadas) explica-se a vida, a morte, a vida depois da morte e todos os entretantos"  consta apenas de pequenos resumos de alguns autores, seres e obras escolhidas algo tendenciosamente talvez para se destruir a possibilidade de se fazer uma aproximação profunda e verdadeira ao mistério da morte e imortalidade e da vida depois da morte. 
São daqueles livros feitos para lançar a confusão na cabeça das pessoas fazendo-as perder a noção de verdade e dos caminhos  para ela.
O pretensiosismo da publicidade de sucesso de vendas para tolos, e não de sucesso na investigação,  apresenta-se bem na contracapa, com sublinhados meus: «Dos autores do sucesso de vendas Platão e Um Ornitorrinco entram num bar" chega-nos uma nova aventura filosófica, desta vez uma viagem às Portas do Paraíso, apenas para se saber o que os grandes filósofos, teólogos, psicoterapeutas e tipos espertos têm a dizer sobre a vida, a morte e a vida para além da morte.
Um filme com Freud! Groucho Marx, Socrates! Woody Allen! Kierkegaard! Lily Tomlin! Buda! Cartonistas do New Yorker! Zombies! E, claro, Heidegger!»
Perguntemos, os tipos espertos são os autores, e os zombies  serão as pessoas que lerem esta obra e que se tornarão tal pela confusão  em que ficarão face a tanta piada estúpida e apenas mostrando as piores características das pessoas, e a tanta manipulação da vida e obra de grandes autores, reduzidas a umas linhas tendenciosas, caricaturais frequentemente?
Quais foram os objectivos principais que levaram os autores a escrever este livro, além de quererem ser apregoados como um sucesso de vendas?
Creio que lançar a confusão nas pessoas sobre a existência distinta  do corpo, alma e espírito no ser humano bem como da imortalidade do espírito e da existência de uma vida depois da morte, misturando as mais diferentes visões, contradizendo-as constantemente e enchendo a cabeça dos leitores de lixo anedótico de mau gosto e citações truncadas e  constantemente manipuladas e contraditas, nem que seja pelo autor ou citação seguinte, certamente por vezes desmistificando algumas crenças e auto-sugestões reinantes seja nas religiões seja nos autores e movimentos actuais de nova era, nomeadamente utilizando um diálogo ao estilo das famigeradas pseudo-Conversas com Deus de Neale Donald Walsch.
Em suma, não perca o seu tempo nem o seu dinheiro com este livro e não se esqueça que o saber ocupa lugar, mesmo e sobretudo quando é um saber errado, distorcedor e que o afasta da sabedoria. Neste sentido corre a citação do mestre principal dos autores e que é Woody Allen: «não estou nada interessado em obter a imortalidade através do meu trabalho. Prefiro simplesmente não morrer».  
Ora no caso do tema da obra, a busca de uma consciência maior de quem somos e do que pode ser a nossa vida depois da morte, nos mundos subtis e espirituais, certamente que tal exige uma aprendizagem, uma prática, a arte de bem viver e bem morrer, a qual implica ou se consubstancia num despertar consciencial do espírito e da visão espiritual, já em vida terrena...
Este artigo ainda poderá ser acrescentado um pouco, pelo que recomendo que o leia passados uns dias. 22:00 do dia 4-XI-2018

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O jardim e busto Antero de Quental em Ponta Delgada, e os sonetos "Solemnia Verba" e "Contemplação".

 O jardim de Antero de Quental, aprazível recanto da Natureza dentro de uma cidade, Ponta Delgada, Açores, oferece árvores de grande porte, relvado, arbustos e sebes, água reflectindo o céu num lago, veredas e bancos, sombra e luz, criando assim um ambiente propício à paz, ao estudo e diálogo e à inspiração.  
Este discreto e simples jardim, antes denominado de Gaspar Frutuoso (o primeiro historiador açoriano, com as Saudades da Terra, nela vivendo de 1522-1591) e desde 18 de Abril de 1942, com a inauguração do busto, consagrado a Antero de Quental (1842-1891), relembra-o, acolhe-o e quem o avista de longe e por ele se interna não deixa de admirar-se com a simplicidade e a paz reinantes, quem sabe sob algum sortilégio anteriano.  E assim foi como ele nos surgiu ao longe numa súbita aparição e que fez deter a nossa marcha rápida no findar de uma jornada agro-florestal de seis dias aos Açores, com o Alfredo Cunhal Sendim e o Joaquim Malik.
 A superfície plácida das águas, a leve brisa que gera um murmúrio de ondulação, uma jovem estudante sentada na escadaria,  duas mulheres ou ninfas-musas ladeando o imortal pensador e poeta, eis um bom ambiente  oferecido a Antero de Quental  nascido nesta cidade em 1842 e nela dramaticamente fechando o seu anel de graça terrena em 1891, desiludido com o enfraquecimento do seu corpo e mente, e com o ambiente que subitamente se condensara malignamente sobre o seu desidério de se instalar definitivamente nos Açores, com as suas protegidas e os seus pensamentos e voos.
 As duas figuras femininas alegóricas, idealizadas e esboçadas pelo escultor Canto da Maia, mas só na década de 90 realizadas e acrescentadas, simbolizam a da direita o Conhecimento, a Filosofia, a Razão, e está apoiada em livros, tendo sobre a mão direita a interrogadora Esfinge, um ser e figura mítica que Antero bem desafiou e dialogou. A da esquerda, simboliza o Sentimento, a Afectividade, o Amor e parece ter um coração ardente na mão junto ao peito. 
Estão de certo modo próximas dos sonetos correspondentes pois no Solemnia Verba Antero alcança e reconhece que o Amor é o fim último da Vida e que para se chegar a ele todas as dificuldades e esforços valeram, e na Contemplação paira por entre ideias e espíritos, contempla a face das essências e sente (ou pressente) no sofrimento e luta da vida natural a aspiração à Luz e a um Fim supraterreno...
                                 
A tez de Antero de Quental surge irradiante de luz, o seu olhar é para o espaço infinito, ou talvez para nós, para o futuro, transmitindo-nos impulsos de coragem na luta pela Verdade e a Liberdade. 
A escultura, do notável escultor  açoriano Ernesto Canto da Maia (1890-1981), bem sofrido na vida pela morte precoce do seu filho, mostra essa determinação de ir para além das dores e aparências, enquanto as mulheres alegóricas funcionam também como Deusas da Natureza e Musas, de certo modo oferecendo a Antero de Quentl algo do Amor suave e da confiança psíquica dialogante, vivenciados com as jovens tão apaixonada e idealmente cantadas nas suas Primaveras Românticas e, mais tarde com a mulher divorciada que conhecera e pela qual se apaixonara  nas termas francesas de Bellevue. 
Como que numa compensação simbólica, já que com a idade elas jovens amigas deram lugar em Antero mais à Fantasia, à Poesia, à Irmã Morte, ao Não Ser e Noite Primordial, ainda que as crianças adoptivas e algumas amizades lhe permitissem ainda afectos amorosos...
Há algo da Grécia sagrada neste recanto açoriano, pois Antero de Quental emerge como um Hermes, uma coluna entre o Céu (bem enriquecido pelas nuvens), e a Terra (fértil), no meio das ideias-forças de dois dos seus imortais sonetos, apoiado ou alimentado vibratoriamente por duas mulheres alegóricas, de algum modo lembrando não só as que mais amou em jovem, ou as duas filhas de Germano Meireles que adoptara e educara, mas também o amor que as almas aqui peregrinantes, ou dos seus livros, vida e obra, lhe transmitem, mais ou menos inconscientemente. Ou mesmo, que cada poesia sua (e no monumento estão dois sonetos) foi-lhe e é uma psyche, uma anima, uma mulher...
 Apreciemos a forte e esforçada expressão que o poderoso escultor Canto da Maia conseguiu infundir à terracota e pó da vida, tornada depois bronze, insuflando-lhe esta força de determinação que irradia de Antero e se comunica a nós dos "olhos abertos", os físicos, e do olho espiritual, bem marcado pelos riscos verticais na raiz do nariz, ainda que alguma preocupação pareça desprender-se do rito esforçado e das sobrancelhas contraídas. 
Canto da Maia terá composto a sua evocação mágica de Antero  sabendo de antemão os sonetos que o rodeariam, mas fê-lo por si mesmo e com ele mesmo, lendo e respirando-o e assim a magia do génio perpassa e transmite-se-nos...
Chegar aos dois sonetos escolhidos, implicou sem dúvida uma escolha grave tendo em conta a riqueza da totalidade deles. Certamente cada um de nós faria a sua escolha própria, embora estes, e sobretudo o Solemnia Verba, sejam certamente dos mais profundos e desvendadores. E Antero, se tivesse ele voz audível entre nós, quais diria que queria afixados mais perenemente ao seu lado? Ou será que preferiria alguns extractos das suas cartas?
O Solemnia Verba (acerca do qual gravei um vídeo durante a escrita deste texto, publicado também hoje no blogue)  parece-me bem que seria um dos escolhidos por ele.
São poemas poderosos, o da Contemplação algo trágico, pois nele Antero espelha a sua tristeza por sentir vácuo, sombra e dor nos mundos, e apenas  pressentir outro fim e outra luz nas coisas, talvez  graças a uma dupla circulação anímica: a da sua empatia e compaixão com o sofrimentos dos outros, e por outro lado a sua elevação e ligação às essências, ideias e espíritos que ele, subtilmente intui; embora neste caso talvez algo apenas no pensamento e  mas não na vera visão espiritual, intuindo....
Já o soneto Solemnia Verba, Palavras Solenes, é dos mais conseguidos, é dos que mais sintetiza a vida de Antero: pela dor, a luta, o estudo, a aspiração e  a coragem, conseguir avançar e chegar a um cimo da montanha da vida e ver a luz nascente.
Poderemos dizer então que acompanha bem a escultura tão conseguida de Canto da Maia. E nela o clarão que vemos reflectido na testa de Antero poderá ser visto como a Luz e  o Amor que ele pressente ou vê intuitivamente,  é o Sol do Amor Primordial e Divino.
 Um súbito olhar para as Nuvens e Céus de Portugal, sobre o jardim de  Ponta Delgada, mostra-nos uma formação sugestiva, luminosa, que nos expande para os mundo subtis e espirituais onde Antero de Quental se encontra, quem sabe tendo algo a ver com a forma semi-transparente das nuvens que parece ecoar ou ressoar psico-morficamente este nosso culto a ele e à Divindade...
 O determinado Antero de Quental, o discípulo de Alexandre Herculano, que neste soneto o glosa de certo modo, inicia-nos neste falar com o coração, para que ele ou nosso ser se olhe auto-conhecendo e ganhe forças para concluir quem é, ao  que aspira, como está o Amor nele, auto-conhecimento este que Antero tão bem ensinou a vários dos seus amigos e particularmente a Fernando Leal, como algumas das cartas conservadas perpetuam: provoque essa voz da consciência, oiça-a no fundo seu coração, sinta a vontade do Bem que nos anima, siga-a... 
A Antero de Quental, a nossa gratidão pela sua sofrida peregrinação.
A Antero de Quental, e ao caminho de Justiça e  Liberdade,  Verdade e  Amor a que ele aspirou e se dedicou, a nossa adesão e identificação...
A Antero de Quental, desta altura temporal e vibratória da evolução histórica da Humanidade, pesem todos os constrangimentos e violências a que assistimos,  neste dia 1-XI-2018, o nosso empenhamento de continuarmos a luta pela Luz e o Amor que como ele, pan-psíquico, vemos e sentimos nos cimos interiores da alma e do Universo e na essência íntima de cada ser, esforçando-nos por realizar e partilhar mais o Amor e Fonte Divina que subjaz, abençoa e une todas as coisas e seres...

Antero de Quental e o soneto "Solemnia Verba". Gravação comentada. E prefaciada posteriormente a 21-12-24

                                  Solemnia Verba

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz de Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor. 
 
Eis-nos com um dos sonetos (ainda que por vezes mal transcrito, tal como n' O Citador...) que melhor desvenda o fundo da alma estóica, espiritual e de amor de Antero de Quental.
Como o escritor e realizador e cinema Pierre Schoendoerffer (1928-2012) disse belamente (e cheguei a saber de cor a frase), há alguns momentos na vida em que, chegados a um alto, paramos e, contemplando o caminho percorrido, recolhemos as razões e forças de continuar. 
Extrapolando no Tempo, não me parecerá completamente infundado admitirmos que esta realização anímica de Antero de Quental, transmitida  nas Palavras Solenes, e vivenciada efectiva e intimamente  num desses momentos singulares de auto-reflexão,  ao ser escrita no seu dia de anos em 1884, como registou na carta em que enviou o poema ao seu grande amigo e discípulo Joaquim de Araújo, poderá ter estado presente no momento do seu hara-kiri, da sua desincorporação voluntária, iluminando algum canto alto do ambiente post-mortem, e que portanto deveremos ter sempre presente este memorial-testamento de Antero (tal como no soneto Mors-Amor), de valorizar o amor e continuar a amar acima ou para além de todas as desilusões, traições e sofrimentos que tivermos de penar no percurso por vezes bem agreste da vida, tal como foi bem fixado no dito latino e  paracelsiano: ad astra per aspera... 
 Oiçamos então o poema lido comentado uns ano antes deste prefácio solsticial, pois escrito a 21 de Dezembro de 2024, numa outra ocasião comemorativa propícia à auto-gnose iluminadora do ser e dos caminhos para nova estação luminosa..
                      
        

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Dos ensinamentos do Gerês perene. Do entrar nas suas profundezes e intuir a mensagem angélica.

                        
Chegámos a estas paragens vindos das mais diversas terras e situações mas víamos diante de nós caminhos para os mistérios da plenificação do ser, sobre trilhos de pedras e areias, na borda da orla líquida que reflecte os céus e as estrelas e as profundezas dos sonhos e das imagens interiores...
                       
Por entre as nuvens, ao longe, qual mundo distante, a visão das montanhas sagradas estimula os peregrinos ou peregrinas do Caminho, que é tanto exterior como interior, com seres visíveis e subtis e no qual ligamos a Terra e os Céus, a Humanidade e a Divindade...
                                  
A natureza é um livro aberto, cheio de sinais, e pedras e cristais, arbustos e árvores, flores e frutos, animais e aves, em si mesmos ou pelo que neles emerge e nos impressiona, desafiando-nos a despertarmos mais a atenção, o equilíbrio e a intuição e logo a intenção do bem, da verdade e da liberdade, e a comunhão, em gratidão...
                          
Desci a encosta areosa, que parecia ter séculos de sedimentações para chegar miraculosamente até ti e te abraçar, e nas águas purificadoras mergulhar, nadar, amar...
                            
Das montanhas vêm energias e raios de Luz e Amor divinos que nos abençoam e inspiram, e estabilizam a nossa mente e alma no ser espiritual, no presente e na aspiração flamejante ao Ser Divino...
                         
O vasto mas estreito vale agora coberto de água, outrora de campos trabalhados, e as montanhas e picos ao longe, falam-nos tanto do esforço e da luta como da criatividade e escrita perene que as almas devem gerar e ecoar luminosamente, amorosamente, perenemente...
                                
O silfo, deva ou espírito do ar e das nuvens que está presente sobre o vale, hoje tornado lago e remanso de brandas ondulações, recebe as nossas orações e saudações e manifesta-se, inspirando-nos: - Por maiores que sejam as dificuldades e neblinas mantém o teu coração ardente e em comunhão com os seres afins e espirituais, e a Divindade, e avança firme e determinado no caminho do Bem, na vontade do Amor....

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Akbar, imperador mogol, místico e mestre pioneiro do encontro e síntese das Religiões.

Foi a 17 de Outubro de 1605, há quinhentos e poucos anos, que o valeroso e sábio imperador mogol Akbar, filho do turco-mongol Humayun e da persa Hamida Began, regressou ao mundo espiritual, com 63 anos de uma vida fabulosa, a muitos níveis, tendo nascido na noite de Lua cheia de 23-X-1542 na cidade rajputana de Umerkot, hoje no Paquistão.
Sem ter desenvolvido a capacidade de ler, mas gostando que lhe lessem livros, dotado duma memória prodigiosa, sabendo de cor os poemas de Hafiz, Saadi, Rumi e doutros poetas e místicos persas, sagaz, afável e justo, coroado Imperador muito jovem  em 1556, Jalaluddin Mohammad Akbar foi tanto um corajoso guerreiro e estratega, que foi derrotando afegãos e indianos que o tentavam vencer, como o iniciador duma política de aproximação das religiões dos diversos povos do seu império, que administrou cooperativamente com os indianos que o aceitavam,  interessando-se pelo Hinduísmo, Jainismo e mesmo pelo Cristianismo, convidando e protegendo os padres enviados da Goa portuguesa, em três sucessivas  missões à sua corte para debates religioso, de 1580 a 1605, das quais temos alguns relatos escritos bem valiosos dos missionários e dos historiadores da época.
Teve muitas mulheres, trinta e seis as principais, três das quais as rainhas e eram um meio de selar alianças com antigos adversários Doze eram princesas Rajput e mantinham muitos dos seus costumes hindus nas suas habitações. Algumas foram as suas principais conselheiras em matérias políticas e administrativas, outras dedicaram-se à arquitectura de jardins, nesta arte se destacando a princesa Rajkumari Shri Rukmawati Baiji Lall.
Fundou a cidade imperial de Fatehpur Sikri, construída sob a sua direcção e visão entre 1570 e 1580,  e nela a Casa de Adoração (Ibadat-khana), cenário de longos debates, primeiro só entre islâmicos sunitas e depois com shiias, e finalmente com mestres das diversas tradições, tais como brâmanes e yogis, mais os jesuítas vindos de Goa, os parsis ou zoroastrianos (tal como Dathur Mahayarji Rana, com quem muito dialogou) e Jainas, um dos quais Hiravijaya impressionará tanto Akbar que o consagrou como Jagat Guru, mestre universal, adoptando a partir de 1582 muitas das suas recomendações não-violentas. Foram verdadeiramente alguns anos de encontro pioneiro de religiões.
Mas as lutas de opiniões, e em especial as divisões dos islâmicos, ainda que esclarecendo-o em certas questões e fazendo-o sair do sunismo e passando a apoiar mais os shiias, foram-no fortificando-o na decisão de se libertar das limitações das religiões existentes, já que nenhuma representava nem conduzia plenamente à Realidade Divina, e tentar fazer a sua própria síntese.  
 No portal principal dessa cidade de Fatehpur Sikri, onde tantos e animados diálogos ecuménicos pioneiros se realizaram, afixará em 1601 uma lápide com um dito de Jesus proveniente de fontes islâmicas: «Jesus disse (a Paz esteja com Ele): o mundo é uma ponte. Portanto, atravessa-a, mas não construas em cima».
Em 1578, no Punjab, durante a preparação de uma caçada, tivera a sua iluminação, descrita assim pelo seu secretário e cronista (Akbarnama)
Abu-l Fazl, de quem o Padre Monserrate dissera «que o acume do seu engenho superava o de todos os seus contemporâneos»: «uma alegria sublime tomou posse do seu organismo corporal. A atracção da cognição de Deus lançara o seu raio».  
Já o historiador Badaoni (Abdul Qadir Badayuni) diz-nos que, após tal experiência mística, tendo determinado acabar essa caçada e libertando todos os animais que estavam a ser encurralados, Akbar poetizara assim: «Tende cuidado, pois a graça divina vem de repente// Vem de repente, à mente do ser sábio.» 
A partir de 1580 sabemos que na linha dos ensinamentos das litanias ou repetições de sons dos zoroastrianos ou parsis, dos hindus (japa) e dos sufis (zikr)  começou, como nos conta Baudani, «a repetir o nome do Sol à meia-noite para atrair as inspirações e bênçãos para as suas aspirações». Por outras fontes sabemos que faria uma certa tomada de consciência verticalizante com a Divindade três vezes ao dia.
Fez traduzir importantes livros religiosos de sânscrito para persa, desde o Atharva Veda ao Ramayana e Mahabaratha, tendo na sua corte vários sábios hindus a ajudá-lo e convidou e recebeu mestres famosos como Tulsidas, Dadu e Surdas, com quem dialogou e aprendeu. 
Akbar observa Tansen aprendendo com swami Haridas, músico e místico famoso.
  A partir de 1582 proclamou, depois de uma assembleia com vários religiosos, pandits e yogis, havendo algumas oposições, o seu desejo já maturo de haver uma paz universal sulh-i kul, no seu império, a par de uma religião, que não era a do Islão ou do Hinduísmo predominantes mas Tawhid Ilahi, a Unidade divina, também conhecida depois como Din-i Ilahi, a  Fé divina, ou a Religião divina, a qual congraçava princípios e práticas de várias religiões existentes ao mesmo tempo que se libertava de mistificações e superstições, opressões e limitações delas, recusando a infalibilidade de ditos tradicionais e advogando a tomada de decisões, mesmo sobre matérias teológicas, pela razão.
Através de uma valorização da justiça, pureza e paz, e a aspiração a Deus, Akbar e os seus discípulos e aderentes, que não foram muitos, reverenciavam a Divindade como Luz, em especial no Sol, no Fogo ou mesmo manifestada noutros modos naturais ou artificiais, tais como velas ou lâmpadas, sendo um momento celebrado diariamente aquele em que se acendiam os candelabros da corte. Sobre esse momento de transição (sandya), Akbar deu um dito que se tornou famoso: «Quando o disco do Sol se vai embora, o que podemos fazer senão acender luzes?»
A auréola com que será em geral representado pode aludir tanto à ligação iluminativa que teve ou tinha, ou ao espírito, ou ainda ao fogo do Sol do Amor, ou mesmo ao Ser Divino...
 Havia uma cerimónia de iniciação de entrega plena do discípulo ao mestre e na qual Akbar era considerado como vice-regente divino e guru, transmitindo poder e um mantra  Allahu Akbar, que tanto significa "Deus é grande" como "Akbar é Deus". Este é um mantra ainda hoje muito usado no Islão, melhor ou pior...
Mas Akbar não procurava converter pessoas à Tawid Ilahi, «mesmo aquelas que confessavam terem recebido energia espiritual do trono da sua Majestade», como narra Abu'l Fazl, o notável cronista, filho do sheik Mubarak. Era sobretudo um grupo de seres mais despertos e iluminados, próximos dele, que lideravam esse movimento de paz e ecumenismo universalizante mas que se sabia utópico...
Abu'l Fazl ibn Mubarak, o sábio autor da crónica de Akbar..
 No  dia de aniversário deveriam organizar uma festa e dar presentes e esmolas. Deviam abster-se de carne o mais possível, nisto seguindo yogis e jainas e contra os hábitos dos islâmicos. Deviam dormir com a cabeça para Oriente e os pés para o Ocidente, uma das orientações certamente recomendadas, a outra sendo a da cabeça para o Norte...
Entre o que foi legislado para todos, destacaremos que não se deviam construir mais mesquitas. Alho, cebola e carne de vaca eram proibidos, tal como pelos hindus, o alho e a cebola pelos yogis que consideravam esses alimentos "rajasicos" (predominância da guna rajas), demasiado estimulantes e portanto perturbadores do controle das vagas de pensamento, essencial na meditação. O jejum do Ramadão e peregrinação a Meca foram proibidos. O estudo e exegese do Corão foram desapoiados e o uso do alfabeto arábico abandonado. A morte na fogueira das viúvas hindus, sati, e os casamentos em idade menor foram também condenados ou atalhados. Deixou de praticar a caça e de a recomendar, ao mesmo tempo que proibia a prisão das aves em gaiolas, algo também muito típico dos Jainas, que surpreenderam os portugueses quando chegaram à Índia, como nos relata Duarte de Barbosa, no seu Livro, face a um hospital para animais.
Akbar, apesar do entusiasmo inicial dos jesuítas em converterem-no tendo em conta a sua natureza mística e até devocional, a sua apreciação de Jesus, de Maria e dos símbolos e rituais cristãos que lhe apresentaram, negou-se a aceitar a divindade especial de Jesus, considerando ainda os milagres de Jesus como resultantes dos seus conhecimentos e poderes de cura. 
Pouco depois de morrer, um dos jesuítas que mais convivera com ele, o Padre Jerónimo Xavier, escrevia «que Akbar nem morreu mouro nem morreu cristão, mas na fé gentia que abraçara», admitindo até que tivesse sido envenenado pois na véspera de morrer estava muito alegre e em animada conversa, de modo algum disposto a confessar-se, antes tendo a seta da sua alma apontada  por alguns mantras aspiracionais para os mais elevados mundos espirituais. Quem sabe se o Allahu Akbar,  se os nomes do Sol, ou mesmo o Aum...
O seu bisneto Dara Shikoh será quem retomará o  facho luminoso, dedicando-se à espiritualidade e a estudos comparativos e traduções de textos valiosos, tais como os Upanishads, que pelas vias (sânscrito>persa>latim) chegarão ao conhecimento do Ocidente, havendo algumas das suas obras traduzidas e comentadas em português por mim no youtube, nomeadamente a sua Majma'-Ul-Bahrain, Conjunção [ou Confluência, Mistura] dos Dois Oceanos, de 1655.
 Com Asoka, Dara Shikoh, Sant Prannath, Sai Baba de Shirdhi, Ramalinga, Ramakrishna e Gandhi, Akbar foi das mais notáveis individualidades, ou mahatmas, que procuraram mostrar e fomentar a unidade das religiões, a convivência ecuménica e o aprofundamento harmonizador da espiritualidade perene... 
 
Bibliografia principal: MACLAGAN, Sir Edward. OS JESUÍTAS E O GRÃO MOGOL. Porto, Livraria Civilização,1946. 
ROYCHOUDHURY, Makhanlal. THE DIN-I-ILAHI or the Religion of Akbar. Calcutta, University, 1941. 
SMITH, Vincent A. AKBAR the great Mogul, 1542-1605. Delhi, S. Chand, 1962. 

domingo, 14 de outubro de 2018

Do nascer do Sol nas ilhas e fajãs dos Açores e seus efeitos benéficos nos corpos, almas e espíritos...

O nascer do sol nas ilhas dos Açores e, no caso desta vivência e imagens, na ilha de S. Jorge, Fajã do Belo, é certamente, com o culto e comunhão com o Espírito santo,  o meio de melhor harmonização e espiritualização para qualquer pessoa, das mais simples às mais intelectuais, das mais distraídas às mais melancólicas, das mais agitadas às mais recolhidas, ainda que exija momentos de consagração a ele, que podem ser contudo apenas de alguns segundos ou minutos.
A captação e absorção dos raios e partículas (prana) salutares, as cores com que as nuvens nos agraciam, a frescura matinal renovadora, as orações, louvores e sentimentos que desabrochamos, o enchimento do vaso ou graal do coração das múltiplas energias a que podemos associar tal momento e o despertar espiritual que se realiza são na realidade bem merecedores da nossa atenção e culto.
Estas imagens, aquando de uma jornada agro-florestal em S. Jorge, com o Joaquim Manik e o Alfredo Sendim, e orientada pelo Alfredo, nos primeiros dias de Outubro, foram obtidas na Fajã do Belo, no páteo mais térreo e próximo do mar, da casa reconstruída 
pelo mestre Relva, hoje já partido (que a Luz Divina esteja com ele) para os mundos espirituais, e são uma pequena mostra do muito que um simples nascer do sol no horizonte açoriano e no nosso ser, então, agora e sempre, pode suscitar ou iluminar...
Acordarmos cedo, despertados pela aspiração divina que perpassa a inteira natureza...
From the land and the reeds, through the sea, waves and the clouds, my soul flies to the Divine realm and is joyful...
Por entre a vegetação e as nuvens, os raios solares e os das nossas forças anímicas encontram-se e enchem-nos de amor e adoração.
Das faces que projectamos ou intuímos no Sol, ou da nascença dos deuses gregos e outros: Surya, Helios, Mitra
Bela imagem para contemplarmos e nos centralizarmos. Um mandala viva...
Na terra e em muitas almas ainda é noite, talvez falte mesmo a vontade de despertar, e contudo a beleza e a força do Sol, das ondas, nuvens e céu chamam-nos: "Vem comungar connosco....
My heart is ablaze in fire, my love is become one with the Sun...
Danças e beijos entre as nuvens. Com quem sua alma dançaria mais e melhor, com mais amor e cosmicidade neste momento? Para além da vida e da morte, do espaço e do tempo, expanda a sua alma e apoie ou mesmo comungue com outros seres.
In the heart of the Sun, the Divine source of Love is more strong...
Desfiles ou procissões poderosas e coloridas sobre o imenso oceano rumoroso e sob o infinito espaço cósmico misterioso..
Os arbustos e flores da terra e da alma erguem-se como as nuvens na aspiração solar e divina
Das bênçãos solares... Be blessed by the inner spiritual Sun...
Abrir o peito, expandir a alma, assumir-nos como corpos espirituais em comunhão com o horizonte imenso
Luz divina, Luz em mim, Eu sou Luz
As flores, com as suas cores ainda na sombra, agitam-se ao vento solar e falam-nos dos jardins maravilhosos que podemos reerguer...
Grupos coesos de almas afins, amigas e nos mesmos trabalhos e objectivos comungando são canais ligando a terra e o céu...
Brilhe o Sol divino, o Amor divino, o Espírito santo, a Divindade, em nós...