quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Akbar, imperador mogol, místico e mestre pioneiro do encontro e síntese das Religiões.

Foi a 17 de Outubro de 1605, há quinhentos e poucos anos, que o valeroso e sábio imperador mogol Akbar, filho do turco-mongol Humayun e da persa Hamida Began, regressou ao mundo espiritual, com 63 anos de uma vida fabulosa, a muitos níveis, tendo nascido na noite de Lua cheia de 23-X-1542 na cidade rajputana de Umerkot, hoje no Paquistão.
Sem ter desenvolvido a capacidade de ler, mas gostando que lhe lessem livros, dotado duma memória prodigiosa, sabendo de cor os poemas de Hafiz, Saadi, Rumi e doutros poetas e místicos persas, sagaz, afável e justo, coroado Imperador muito jovem  em 1556, Jalaluddin Mohammad Akbar foi tanto um corajoso guerreiro e estratega, que foi derrotando afegãos e indianos que o tentavam vencer, como o iniciador duma política de aproximação das religiões dos diversos povos do seu império, que administrou cooperativamente com os indianos que o aceitavam,  interessando-se pelo Hinduísmo, Jainismo e mesmo pelo Cristianismo, convidando e protegendo os padres enviados da Goa portuguesa, em três sucessivas  missões à sua corte para debates religioso, de 1580 a 1605, das quais temos alguns relatos escritos bem valiosos dos missionários e dos historiadores da época.
Teve muitas mulheres, trinta e seis as principais, três das quais as rainhas e eram um meio de selar alianças com antigos adversários Doze eram princesas Rajput e mantinham muitos dos seus costumes hindus nas suas habitações. Algumas foram as suas principais conselheiras em matérias políticas e administrativas, outras dedicaram-se à arquitectura de jardins, nesta arte se destacando a princesa Rajkumari Shri Rukmawati Baiji Lall.
Fundou a cidade imperial de Fatehpur Sikri, construída sob a sua direcção e visão entre 1570 e 1580,  e nela a Casa de Adoração (Ibadat-khana), cenário de longos debates, primeiro só entre islâmicos sunitas e depois com shiias, e finalmente com mestres das diversas tradições, tais como brâmanes e yogis, mais os jesuítas vindos de Goa, os parsis ou zoroastrianos (tal como Dathur Mahayarji Rana, com quem muito dialogou) e Jainas, um dos quais Hiravijaya impressionará tanto Akbar que o consagrou como Jagat Guru, mestre universal, adoptando a partir de 1582 muitas das suas recomendações não-violentas. Foram verdadeiramente alguns anos de encontro pioneiro de religiões.
Mas as lutas de opiniões, e em especial as divisões dos islâmicos, ainda que esclarecendo-o em certas questões e fazendo-o sair do sunismo e passando a apoiar mais os shiias, foram-no fortificando-o na decisão de se libertar das limitações das religiões existentes, já que nenhuma representava nem conduzia plenamente à Realidade Divina, e tentar fazer a sua própria síntese.  
 No portal principal dessa cidade de Fatehpur Sikri, onde tantos e animados diálogos ecuménicos pioneiros se realizaram, afixará em 1601 uma lápide com um dito de Jesus proveniente de fontes islâmicas: «Jesus disse (a Paz esteja com Ele): o mundo é uma ponte. Portanto, atravessa-a, mas não construas em cima».
Em 1578, no Punjab, durante a preparação de uma caçada, tivera a sua iluminação, descrita assim pelo seu secretário e cronista (Akbarnama)
Abu-l Fazl, de quem o Padre Monserrate dissera «que o acume do seu engenho superava o de todos os seus contemporâneos»: «uma alegria sublime tomou posse do seu organismo corporal. A atracção da cognição de Deus lançara o seu raio».  
Já o historiador Badaoni (Abdul Qadir Badayuni) diz-nos que, após tal experiência mística, tendo determinado acabar essa caçada e libertando todos os animais que estavam a ser encurralados, Akbar poetizara assim: «Tende cuidado, pois a graça divina vem de repente// Vem de repente, à mente do ser sábio.» 
A partir de 1580 sabemos que na linha dos ensinamentos das litanias ou repetições de sons dos zoroastrianos ou parsis, dos hindus (japa) e dos sufis (zikr)  começou, como nos conta Baudani, «a repetir o nome do Sol à meia-noite para atrair as inspirações e bênçãos para as suas aspirações». Por outras fontes sabemos que faria uma certa tomada de consciência verticalizante com a Divindade três vezes ao dia.
Fez traduzir importantes livros religiosos de sânscrito para persa, desde o Atharva Veda ao Ramayana e Mahabaratha, tendo na sua corte vários sábios hindus a ajudá-lo e convidou e recebeu mestres famosos como Tulsidas, Dadu e Surdas, com quem dialogou e aprendeu. 
Akbar observa Tansen aprendendo com swami Haridas, músico e místico famoso.
  A partir de 1582 proclamou, depois de uma assembleia com vários religiosos, pandits e yogis, havendo algumas oposições, o seu desejo já maturo de haver uma paz universal sulh-i kul, no seu império, a par de uma religião, que não era a do Islão ou do Hinduísmo predominantes mas Tawhid Ilahi, a Unidade divina, também conhecida depois como Din-i Ilahi, a  Fé divina, ou a Religião divina, a qual congraçava princípios e práticas de várias religiões existentes ao mesmo tempo que se libertava de mistificações e superstições, opressões e limitações delas, recusando a infalibilidade de ditos tradicionais e advogando a tomada de decisões, mesmo sobre matérias teológicas, pela razão.
Através de uma valorização da justiça, pureza e paz, e a aspiração a Deus, Akbar e os seus discípulos e aderentes, que não foram muitos, reverenciavam a Divindade como Luz, em especial no Sol, no Fogo ou mesmo manifestada noutros modos naturais ou artificiais, tais como velas ou lâmpadas, sendo um momento celebrado diariamente aquele em que se acendiam os candelabros da corte. Sobre esse momento de transição (sandya), Akbar deu um dito que se tornou famoso: «Quando o disco do Sol se vai embora, o que podemos fazer senão acender luzes?»
A auréola com que será em geral representado pode aludir tanto à ligação iluminativa que teve ou tinha, ou ao espírito, ou ainda ao fogo do Sol do Amor, ou mesmo ao Ser Divino...
 Havia uma cerimónia de iniciação de entrega plena do discípulo ao mestre e na qual Akbar era considerado como vice-regente divino e guru, transmitindo poder e um mantra  Allahu Akbar, que tanto significa "Deus é grande" como "Akbar é Deus". Este é um mantra ainda hoje muito usado no Islão, melhor ou pior...
Mas Akbar não procurava converter pessoas à Tawid Ilahi, «mesmo aquelas que confessavam terem recebido energia espiritual do trono da sua Majestade», como narra Abu'l Fazl, o notável cronista, filho do sheik Mubarak. Era sobretudo um grupo de seres mais despertos e iluminados, próximos dele, que lideravam esse movimento de paz e ecumenismo universalizante mas que se sabia utópico...
Abu'l Fazl ibn Mubarak, o sábio autor da crónica de Akbar..
 No  dia de aniversário deveriam organizar uma festa e dar presentes e esmolas. Deviam abster-se de carne o mais possível, nisto seguindo yogis e jainas e contra os hábitos dos islâmicos. Deviam dormir com a cabeça para Oriente e os pés para o Ocidente, uma das orientações certamente recomendadas, a outra sendo a da cabeça para o Norte...
Entre o que foi legislado para todos, destacaremos que não se deviam construir mais mesquitas. Alho, cebola e carne de vaca eram proibidos, tal como pelos hindus, o alho e a cebola pelos yogis que consideravam esses alimentos "rajasicos" (predominância da guna rajas), demasiado estimulantes e portanto perturbadores do controle das vagas de pensamento, essencial na meditação. O jejum do Ramadão e peregrinação a Meca foram proibidos. O estudo e exegese do Corão foram desapoiados e o uso do alfabeto arábico abandonado. A morte na fogueira das viúvas hindus, sati, e os casamentos em idade menor foram também condenados ou atalhados. Deixou de praticar a caça e de a recomendar, ao mesmo tempo que proibia a prisão das aves em gaiolas, algo também muito típico dos Jainas, que surpreenderam os portugueses quando chegaram à Índia, como nos relata Duarte de Barbosa, no seu Livro, face a um hospital para animais.
Akbar, apesar do entusiasmo inicial dos jesuítas em converterem-no tendo em conta a sua natureza mística e até devocional, a sua apreciação de Jesus, de Maria e dos símbolos e rituais cristãos que lhe apresentaram, negou-se a aceitar a divindade especial de Jesus, considerando ainda os milagres de Jesus como resultantes dos seus conhecimentos e poderes de cura. 
Pouco depois de morrer, um dos jesuítas que mais convivera com ele, o Padre Jerónimo Xavier, escrevia «que Akbar nem morreu mouro nem morreu cristão, mas na fé gentia que abraçara», admitindo até que tivesse sido envenenado pois na véspera de morrer estava muito alegre e em animada conversa, de modo algum disposto a confessar-se, antes tendo a seta da sua alma apontada  por alguns mantras aspiracionais para os mais elevados mundos espirituais. Quem sabe se o Allahu Akbar,  se os nomes do Sol, ou mesmo o Aum...
O seu bisneto Dara Shikoh será quem retomará o  facho luminoso, dedicando-se à espiritualidade e a estudos comparativos e traduções de textos valiosos, tais como os Upanishads, que pelas vias (sânscrito>persa>latim) chegarão ao conhecimento do Ocidente, havendo algumas das suas obras traduzidas e comentadas em português por mim no youtube, nomeadamente a sua Majma'-Ul-Bahrain, Conjunção [ou Confluência, Mistura] dos Dois Oceanos, de 1655.
 Com Asoka, Dara Shikoh, Sant Prannath, Sai Baba de Shirdhi, Ramalinga, Ramakrishna e Gandhi, Akbar foi das mais notáveis individualidades, ou mahatmas, que procuraram mostrar e fomentar a unidade das religiões, a convivência ecuménica e o aprofundamento harmonizador da espiritualidade perene... 
 
Bibliografia principal: MACLAGAN, Sir Edward. OS JESUÍTAS E O GRÃO MOGOL. Porto, Livraria Civilização,1946. 
ROYCHOUDHURY, Makhanlal. THE DIN-I-ILAHI or the Religion of Akbar. Calcutta, University, 1941. 
SMITH, Vincent A. AKBAR the great Mogul, 1542-1605. Delhi, S. Chand, 1962. 

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