terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Pico della Mirandola, dia de aniversário, 24 Fevereiro de 1463. Vida e obra. Texto melhorado no dia dos seus 560 anos.

                              
Neste suave fresco renascentista de Cosimo Rosseli, na igreja de S. Ambrósio, em Florença, de 1485, o jovem Pico encontra-se entre os seus dois grandes amigos e sábios, Marsilio Ficino e Angelo Poliziano.

Giovanni Pico della Mirandola, um dos primeiros seres a explicitar a Filosofia Perene subjacente e comum aos vários cultos e religiões, filosofias, teologias e mistérios, por alguns denominado o Anjo sábio da Renascença, nasceu a 24 de Fevereiro de 1463, em Mirandola, Itália, sendo o terceiro filho do Conde de Concordia. Dotado de agudo engenho e de uma capacidade de memória impressionante, por morte precoce do pai será a sua mãe Julia Boiardo que o destinará a uma carreira eclesiástica, começando muito novo a estudar música, latim, grego e teologia, e tal era a luminosidade do seu engenho que aos 10 anos foi nomeado protonotário apostólico.
Em 1477, aos 14 anos, é já estudante universitário de Direito Canónico em Bolonha, num ambiente onde se respira a influência libertadora e criativa dum notável humanista, e que será um dos destinatários das suas valiosas cartas, Filipo Beroaldo, um buscador da essência mais do que da forma, livre das amarras do conservadorismo, do escolasticismo. Todavia, quando também a mãe morre inesperadamente em Agosto de 1478, decide abandonar o Direito terrestre eclesiástico e  aventurar-se na demanda livre do conhecimento, da literatura e da religião universal, procurando realizar uma Pax Philosophica, através denodados estudos e diálogos de filosofia e teologia, procurando concordâncias, em sínteses ou mesmo sincretismos por vezes arrojados aos olhos dos seus contemporâneos. A sua frase «a filosofia procura a verdade, a teologia afirma-a e a religião possui-a», entre nós muito relembrada pelo nosso querido amigo e notável humanista José V. de Pina Martins, é significativa do reconhecimento de uma graduação ascendente no conhecimento da Verdade, a qual implica a demanda intelectual da Filosofia, a descoberta e afirmação doutrinal dogmática na Teologia e finalmente a interioridade da religião ou religação anímica e espiritual à verdade da Realidade e da Divindade.
Em 1479 vai para a Universidade de Ferrara, onde aprende não só melhor o grego e o latim, como conhece também uma plêiade de grandes almas, desde o seu professor Giovanni Battista Guarino a Aldo Manuzio, que se tornará o famoso impressor das edições Aldinas e inventor da letra itálica, tanto mais que se estava a realizar então um Concílio Ecuménico em Ferrara (para religar a Igreja do Oriente e a de Roma) e onde se encontram alguns sábios, tal o cardeal bizantino Bessarion (1403-1472), os quais lhe intensificam a busca da Sabedoria Divina, fazendo a sua primeira e rápida viagem a Florença, centro maior do Humanismo de então.
Em 1480 estuda em Pádua com Ermolao Barbaro, Elia del Medigo e Nicoletto de Vernia, aprofundando os conhecimentos de Averróis e dos Aristotélicos e Platónicos e até dos Mistérios do Médio Oriente. Quando estava em Paris, e estudando a escolástica, em Maio de 1482, por guerra, é forçado a regressar a Mirandola. Conhece então, em Regio d'Emilie, o frade austero Savonarola (1452-1498) e ambos sentem certa afinidade mística e profética.
Entre 1482-1483 está em Paris e depois em Carpi estudando e poetisando. É em meados de 1484 que chega a Florença e entra em plena amizade com Marsilio Ficino, Lorenzo de Medici, Angelo Poliziano, Cristoforo Landino e Girolamo Benivieni, membros da Academia Platónica de Careggi, fundada por Marsilio Ficino, o qual acabara de dar à luz a primeira edição latina da obra completa de Platão.
 Deixa de escrever poemas de amor e amizade (embora ainda venha a raptar uma jovem casada, Margarida, a pedido dela, infrutiferamente, e a compor um notável comentário a uma canção de Amor, de Girolamo Benivieni) e passa a estudar a Sabedoria Perene, a Prisca Teologia, nomeadamente a Platónica, Neo-Platónica, Orphica, Zoroástrica, Islâmica, Cabalista e Hermética.
Em 1485 decide  estudar na Universidade de Paris, a Sorbonne, a filosofia escolástica e tomista, numa época em que o livre diálogo vigorava, e inspira-se, face à discussão das teses públicas durante doze horas (denominada sorbónica), a redigir uma série de teses, não para discutir apenas num recanto universitário por mais importante que fosse, mas em Roma, e convidando todos os que quisessem discutir as suas 900 Conclusiones, quatrocentas das quais de outros pensadores (padres latinos, árabes, cabalistas, platónicos, peripatéticos, hermético-egípcios) e quinhentas dele próprio, nas quais ele considerava resumir-se todo o campo principal do cognoscível, o scibile.
Esta sua tentativa de discutir Novecentas teses filosófico-religiosas com os sábios de todo o mundo, não foi todavia bem vista pelo clero de Roma, onde chega em Novembro de 1486, e o Papa e alguns teólogos nomeados para uma comissão de inquérito, após um exame, para o qual aliás não estavam muito preparados, dado a novidade de muitas das fontes extra-católicas aduzidas por Pico della Mirandola, consideram heréticas treze das suas proposições, que “renovam os erros dos gentios e as perfídias dos judeus”.
Entre elas destacavam-se a sua defesa de Orígenes, que fora condenado pela Igreja em algumas das suas doutrinas, tal a que concluía que no fim do Mundo todos os seres estariam no Paraíso, salvos ou com a visão de Deus; a ainda  que negava que o crucifixo ou outra imagem qualquer religiosa deveria ser objecto de culto, e a que  afirmava que mais importante que rituais e sacramentos era a piedade e realização interior, algo que virá a ser também um dos estandartes de Erasmo, a docta pietas, a piedade douta, na sua Philosophia Christi, que tanto sucesso luminoso teve na Península Ibérica e na Europa, antes da Reforma Protestante e a reacção conservadora do Concílio de Trento: a trágica (pela Inquisição) Contra-Reforma.
                                                              
Pico della Mirandola tem que assinar a sua rendição ou retracção em Março de 1487 mas, corajoso, defende-se e responde-lhes com a Apologia das Treze Questões, as que tinham sido consideradas heréticas, mas não aceitam e é forçado a submeter-se e a prometer  não editar as teses, que são mesmo proibidas e condenadas em todo o seu conjunto de 900 teses, embora entre os comissários houvesse quem as considerasse defensáveis. Pico não se rende e dá à luz pública a sua Apologia, em Nápoles, no fim de Maio de 1487 e é então considerado como criminoso de rebelião e perjúrio e citado para o tribunal inquisitorial.
Foge então em direcção a Paris, mas é preso em Janeiro de 1488 em Lyon, e a luta pela sua libertação, seja por parte do rei de França seja de Lorenzo de Medici, força o papa Inocêncio VIII a aceitar que Pico della Mirandola, após alguns meses de cativeiro no castelo de Vincennes, regresse a Florença, para uma bela vila ou casa posta à sua disposição pelo magnífico regente da cidade  Lorenzo de Medici,  onde vai estabilizar, descrevendo mesmo numa carta o seu dia a dia: «de manhã aplico-me assiduamente na concordância de Platão e Aristóteles, as horas da tarde são para os amigos, e a recreação do espírito através da leitura de obras literárias, e as horas da noite reparto-as entre o estudo dos textos sagrados e um breve sono».
Gera então várias obras mais ortodoxas (mas sempre recebidas com desconfiança pelo Papa, sendo a sua condenação por perjúrio somente retirada em 18 de Junho de 1493, já pelo Papa Alexandre VI, um Borgia sábio), nomeadamente especulações sobre o Ser primordial e a conciliação entre Platão e Aristóteles, no De Ente et de Uno, sobre os sete dias da Génesis, no Heptaplus,  ou ainda tanto os religiosos Comentários aos Salmos, como os Commento alla Canzone d' Amore, de Girolamo Benivieni, escrevendo em 1489 uma obra, Disputationes adversus astrologicam divinatricem, não publicada em vida, contra as pretensões dos astrólogos de quererem profetizar acontecimentos futuros, embora Pico admitisse que os astros influenciassem os seres humanos. Deixará a Terra por febre em 17 de Novembro de 1494, com  32 anos de vida, apenas, mas tão bela, sábia e ardente que o seu fulgor jamais se apagará... 
                           

A influência de Pico della Mirandola nos homens do Renascimento é imensa, nomeadamente em Erasmo e, sobretudo, em Thomas More, e nos portugueses dos Descobrimentos é mais visível especialmente em Frei António Beja (1493-1547) que, a propósito da Astrologia e na corte da rainha D. Leonor, utiliza o texto de Pico amplamente no seu Contra os juizos dos astrologos, impresso por Germão Galhardo em 1525, em Lisboa, mas também em Garcia de Horta, o sábio dos Colóquios dos Simples e das Drogas, escritos e impresso em Goa, que cita Pico Mirandulano a propósito dos Reis Magos que certa tradição apontava como vindos da Índia ou Ceilão, e que noutra se diziam enterrados na bela catedral de Colónia na Alemanha, onde já  o nosso D. Pedro das Sete Partidas fora em peregrinação. O teólogo místico dos Agostinhos Descalços Frei Sebastião Toscano, no sermão pregado na transladação dos ossos (se vieram mesmo) de Afonso de Albuquerque para a igreja da Graça em Lisboa  em 1566, comparou estes dois seres, Giovanni Pico della Mirandola e Afonso de Albuquerque, como universais, pelo menos no valor e fama das suas ideias e obras.
Nos nossos dias José Vitorino de Pina Martins foi um admirador, estudioso e amante do Humanismo, e de Pico, mas também bastante de Erasmo, Camões, Sá de Miranda e Thomas More (este, o mais estimado), tendo realizado valiosos estudos sobre a tipografia quatrocentista e quinhentista e sobre a história das ideias e imagens da época. Convivi vários anos com ele, fazendo mesmo, sob o olhar de Pico, na belíssima pintura quinhentista que Pina Martins possuía, uma catalogação resumida da sua magnífica biblioteca, da qual três das salas tinham os ícones de Pico della Mirandola, deThomas More e de Erasmo protegendo os valiosos manuscritos e livros inspiradores dos grandes mestres da sabedoria da Humanidade que recolhera, e que hoje, nos 560 anos do nascimento de Pico se encontram na biblioteca da Universidade de Letras de Lisboa.
 

No seu Discurso sobre a Dignidade Humana (e o título já é póstumo, sendo provavelmente o intencionado Oratio ad Laudes Philosophiae) escrito em 1486, uma parte dele publicada na Apologia, a outra apenas impressa após a sua morte, circulando até então manuscrito, e que antecederia como preâmbulo o texto, num estilo ou ossatura algo escolástica, com as  900 Conclusões ou Teses, Pico mostra a sua alta concepção do ser humano e o ardor optimista de elevação à verdade, numa obra que será considerada como uma das mais belas e significativas do Renascimento, e na qual a posição ímpar do ser humano no universo, capaz de união com o Ser Divino ou de degradar-se ao nível sub-animal, é transmitida com intensidade, beleza e mística qualidade, apoiada nas diversas tradições e metodologias espirituais. 
Pico exorta-nos na Oratio a trilharmos o caminho do auto-conhecimento, da purificação dos instintos e dos costumes, e do desenvolvimento das capacidades intelectuais e das unitivas que o Amor proporciona, nomeadamente para a Divindade e em analogia com os Espíritos celestiais posicionados na proximidade divina conforme as suas potências ardentes de Amor e caridade (os Serafins), de esplendor da Inteligência (os Querubins) e de firmeza do Discernimento, os Tronos...
Oiçamos algumas partes então da sua Oratio:
Princípio: “Li, padres colendissímos [de colendu-respeito], nos monumentos [livros] dos árabes, que o sarraceno Abdallah interrogado, sobre o que, nesta quase cena mundana, via com mais admiração, respondeu que nada via de mais admirável de que o homem. Sentença esta que está conforme com aquela de Mercúrio [Hermes Trismegisto]: «Grande milagre, ó Asclépio, é o homem».
Cogitando a razão deste dito não se me fazia suficiente o que por muitos foi referido da prestância [superioridade] da natureza humana: esse homem internúncio das criaturas, familiar dos superiores, rei dos inferiores, intérprete da natureza pela perspicácia dos sentidos, a indagação da razão e a luz da inteligência, interstício entre a estável eternidade e o fluxo do tempo e, como os Persas dizem, cópula ou mesmo himeneu [vínculo] do mundo e, como testemunha [ou diz] David, pouco menos que os anjos”
Que invada a nossa alma aquela ambição sagrada de não nos contentarmos com as coisas medíocres e que aspiremos pelas maiores (...)»

A sua ligação e sabedoria angélica era grande e aconselha-nos com bastante originalidade em relação aos Arcanjos: «Invoquemos Rafael o médico celeste, a fim de que ele nos liberte pela moral e a dialéctica, como por remédios salutares. Então, nos que formos restaurados, habitará doravante Gabriel, a força de Deus, que nos conduzirá através dos milagres da natureza: ele mostrar-nos-á por toda a parte a virtude e a potência de Deus, e por fim levar-nos-á a Miguel, o sacerdote supremo, para que, tendo-nos alistado ao serviço da filosofia, nos cinja, como duma coroa de pedras preciosas, do sacerdócio da teologia».
                                         
 Transcrevo agora, das 900 teses, as respeitantes a Plotino, com tradução e comentário meus, algo sucintos e mais na linha espiritual do meu caminho do que num domínio da terminologia filosófica em causa.
1 - Primum inteligibile non est extra primum intelectum

2 - Non tota descendit anima quum descendit

3 - Omnis vita est immortalis

4 -Animae quae peccavit vel in terreno vel in aereo corpore, post mortem brutam vitam vivit

5 -Anima irrationalis est idolum animae rationalis ab ea dependens sicut lumen a sole

6 - Ens, vita, intellectus in idem coincidunt

7 - Felicitas hominis ultima est cum particularis intelectus noster totali primoque intelectui plene coniungitur.

Tradução, comentada:
1 - «O Inteligível Primeiro não está exterior ao Intelecto Primeiro».
Comentário: Ou seja, é no seio do Intelecto Divino que se dá a primeira inteligibilidade ou ideia, e assim cada um de nós deve assumir responsabilidade pelos seus pensamentos e deve saber retroceder a sua auto-consciência intelectual até à Fonte e Intelecto Divino.
2 - «A alma não desce toda quando desce».
 
Comentário: Certos níveis da alma não estão acessíveis à consciência terrena do comum dos mortais. Para se chegar aos níveis superiores é necessário um trabalho intelectual, devocional e espiritual. De qualquer modo, é importante uma prática metódica ou  regular na tentativa de apropriação consciencial pela alma do que é mais espiritual, o que se alcança pelo desenvolvimento da nossa capacidade de amar com sabedoria, numa expansão supra-corporal de universalidade e numa interioridade meditativa cardíaca, ígnea e divina.
3 - «Toda a vida é imortal».
Comentário: Todo o ser vivente é imortal, em especial o ser humano. Quanto aos animais, a vida que perpassa neles é imortal, mas não está individualizada, como acontece com o ser humano dotado de uma centelha individual, ou mónada, imortal, com a qual durante a vida terrena, se forma um corpo espiritual. Contudo, é possível que em alguns animais, muito próximos do ser humano e que desenvolveram umamais forte relação afectiva, haja como que uma individualização, talvez não agraciada com uma mónada imortal mas com alguma imortalidade temporária...
4 - «A alma que peca no corpo terreno ou no corpo aéreo (ou subtil), na vida depois da morte vive uma vida bruta, ou embrutecida».
Comentário: - O que é pecado, o que é mais ou menos pecaminoso, são questões bem difíceis de se clarificar. De qualquer modo, tudo o que fazemos tem consequências no além, pelo que sofremos tanto cá como lá pelos danos que fizemos nos nossos corpos físico e ao subtil ou aéreo, seja obscurecendo-o, seja tornando-o escravos ou dependente de vícios,  e ainda paralizando-o, quando em relação à sobrevivência no além se a nega.
5 - «A alma irracional é uma imagem da alma racional, dela dependendo assim como a luz do sol».
Comentário: - O problema desta derivação é que a parte irracional pretende dominar a vontade e o corpo, apropriando-se incorrectamente da força motriz do sol espiritual, ou pouco ligando à voz da consciência ou da razão, da alma racional.
Ou seja, o Logos, a inteligência-amor deve estar presente nos nossos actos, sentimentos e pensamentos, por uma atenta e perseverante auto-consciência.
6 - «Essência, vida e intelecto coincidem em si mesmos».
Comentário: - No nosso ser estão em conjugação ou unidos a essência primordial espiritual, a vida cósmica e energética e o intelecto luminoso ou capacidade de inteligir e de compreender correcta e unitivamente
7 - «A felicidade última do ser humano é portanto unir plenamente o nosso intelecto particular com o Intelecto primordial, primeiro, Divino».
Comentário: - Tornemos a nossa mente e seus múltiplos pensamentos mais estáveis e unificados numa intelecção pura, para que o Logos ou Intelecto divino esteja mais presente em nós, ou se reflicta mais luminosamente.

Mais algumas Conclusões de Pico, a partir de Outros, também valiosas:
6. 5. Ideo angelus est obstinatus et impenitens, quia substracti sunt ei divini impetus speciales.
«O anjo (caído) é obstinado e impenitente, porque ímpetos (forças) divinos especiais lhe foram subtraídos».
Comentário: E, tal como eles, assim as pessoas, infelizes, frustradas, violentadas, manipuladas, e logo exudando  tanta violência....
6. 7. Superior angelus illuminat inferiorem non quia ei vel objectum presentet luminosum, vel quod in se est unitum illi particulariset et dividat, sed quia inferioris intelectum confortat et fortificat.
6. 7. «Um anjo superior ilumina um inferior não porque lhe apresente um objecto luminoso ou aquilo que sendo em si uno particulariza e divida, mas porque conforta e fortifica o intelecto do inferior».

Comentário: Eis uma boa visão da relação de mestres e discípulos, o fortalecimento dos intelectos pelos laços de amizade e de estímulo, de estudo e de discernimento, do amor e da compaixão, bem longe dos laços hierárquicos, por exemplo dos Estados Europeus e de muitas organizações, baseados talvez ainda demasiado frequentemente na esperteza e arrogância, no servilismo e medo, na opressão e corrupção.  A tese apela também a não esperarmos sempre a luz que vem do alto, mas sentirmos na unidade interior a comunhão fortificadora com os seres ou níveis mais elevados.
Traduzamos ainda as sete primeiras das dez Conclusões segundo a prisca doutrina do egípcio Hermes Trismegisto:
1- Onde haja vida, aí está alma; onde haja a alma, aí está a mente [mens, com sentido amplo até ao intelecto divino].
2 - Tudo o que é movido é corporal, tudo o que move é incorporal.
3 - A alma no corpo, a mente na alma, o verbo na mente e o pai destes, Deus, a Divindade.
4 - Deus está cerca de tudo e por entre tudo; a mente cerca da alma, a alma cerca [ou à volta, em latim circa] do ar, o ar cerca da matéria.
5 - Nada há no mundo sem vida.
6 - Nada no universo é passível de morte ou de corrupção. - Corolário: ubíqua é a vida, ubíqua é a providência, ubíqua a imortalidade.
7 - De seis modos Deus denuncia ao homem o futuro: por sonhos, portentos, aves [voo], as estranhas [examinadas], o espírito e a Sibila.
                                       
Sabermos desenvolver o amor e a compaixão, e estarmos mais nele, e mantermos a ligação de aspiração ao Anjo, ao Arcanjo e à Divindade, é então fundamental para irradiarmos luz e amor horizontalmente na sociedade e ambiente, e para que a Humanidade melhore no seu nível de harmonia, felicidade e religação Divina. E nestes tempos de opressivas narrativas oficiais e oligarquias e elites tão egoístas e sem honestidade nem fraternidade, muito temos que trabalhar...
                   
Vitória, por Bô Yin Râ.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Maria Amália Vaz de Carvalho, "Pelo Mundo Fora" (1º cap.) e a homenagem-crítica à morte de Antero de Quental.

Embora Antero de Quental e Maria Amália Vaz de Carvalho nunca se tivessem encontrado, creio eu pois não há qualquer registo, Maria Amália, quando os Sonetos foram publicados em 1886, escreveu um ensaio acerca deles, onde alterna entre a admiradora da sua forma poética e da sua sinceridade com a crítica determinada da inacção e do budismo, do pessimismo e culto da morte que o poeta desenvolvera.
Tal livro serviu de ensejo a Antero de Quental agradecer numa simpática carta,  valiosa em especial para a compreensão das antevisões filosófico-espirituais que Antero via ou nutria em relação ao futuro da Humanidade, nessa época de Fevereiro de 1889.
Em 1896, no Pelo Mundo Fora,  Maria Amália Vaz de Carvalho publicará tal carta, antecedida pelas suas reflexões sobre a morte de Antero de Quental e as eventuais causas que a tinham provocado, desenvolvendo a sua argúcia psicológica...
Tal valiosa homenagem-crítica a Antero de Quental foi escrita em dois curtos capítulos e segue digitalizada, para já só no 1º capítulo, e anotada brevemente por mim no próprio exemplar, embora acrescente algumas reflexões nesta apresentação.
A origem do suicídio é vista pela escritora no domínio das ideias, da metafísica e na dolorosa incapacidade de equilibrar os vários pontos de vista contraditórios acolhidos ao longo da sua vida, bem como na sua atracção pela morte.
O texto mostra  compaixão e amor, tanto mais que ela nos diz que ficou muito impressionada pela sua morte e que só um mês depois é que conseguiu escrever. Mas também continua a mostrar a mesma grande incompreensão do Nirvana, do Budismo, do transcendentalismo ou da realização espiritual que Antero de Quental procurara, não discernindo bem os diversas realidades espirituais em causa.
É para reflexão todavia um bom texto, porque pioneiro na aproximação crítica ao Budismo em Portugal, e com alguns aspectos valiosos quanto aos sentimentos e ideias, perigos e seguranças para os que procuram a Verdade, tal como Antero de Quental.
Certamente que nos nossos dias temos muito mais facilidade de discernir as linhas de força que estão a unir a ciência, a filosofia, a religião e a mística, algo que Antero estoicamente demandou muito pioneiramente entre nós, sobretudo fora da religião católica, ou heterodoxamente.
Neste texto Maria Amália Vaz de Carvalho considera que ele falhou e que se suicidou por causas transcendentais, filosóficas, enredado no vazio e no pessimismo.
Todavia pelo que ele foi dizendo e escrevendo cremos que não foi assim pois ele suicidou-se por ter o corpo muito desgastado, sobretudo neurologicamente, e por estar desiludido em relação ao seu projecto esperançoso de se instalar nos Açores com as duas filhas de Germano Meireles, suas pupilas e a quem se afeiçoara. E não pela descrença da vida,  a agonia intelectual dilacerante e o amor da Morte que tanto desenvolvera...
Algumas das descrições ou caracterizações que traça do Antero metafísico são quase risíveis: «A ilusão, o vazio universal, que encarava ao sair das suas vertiginosas contemplações metafísicas, faziam-no recuar pávido e tremente». p. 175
Ou «a sua dor era uma destas dores de ordem aristocrática e rara, que não se originam como as da maioria dos homens no coração, mas que emanam do espírito cansado de cogitar em vão no mistério impenetrável das coisas...
Querem ver os espectros que enchiam de pavor sagrado as suas noites? Ouvi este soneto...». E transcreve os Espectros, como se tal não fosse mais que uma expressão literária decadentista e fantasmagórica:
«Espectros que velais, enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus sonos curtos e cansados
Me encheis as noites de agonia e susto!...» 

Mais ainda de assustar é a caracterização que dá do Nirvana a partir de extractos de referências em poemas de Antero, embora no último parágrafo se redima compreendendo-o um pouco melhor: «Aspirava ao Nirvana, à paz inconsciente; queria cair naquele oceano tenebroso onde na imobilidade indefinida termina o ser inerte, ocioso; e ao mesmo tempo a compreensão atávica da eternidade católica torturava-lhe em horas de luta e inquieto espírito.
Que aspiração intensa no ideal, a deste formoso espírito aliado! Que sublimes tormentos os seus, procurando sem descanso a verdade e a luz». p. 179.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Aniversário de sri Ramakrishna Paramahansa, grande místico indiano (n. 1836).

                                           Sri Ramakrishna Paramahansa...
Em Karmapur, Bengala, nasce no dia de 18 de Fevereiro de 1836 (mas em 2015, pelo calendário lunar indiano acontece a 20 de Fevereiro, às 5:15 a.m.) Ramakrishna, um dos últimos grandes mestres da Índia, por muitos considerado um avatar, (do sânscrito avat, descida) uma manifestação maior da Divindade. Sacerdote no templo de Dakshineswar, em Calcutá, cheio de espírito e alegria, percorrerá em vivências interiores e por vezes até exteriores os vários yogas e religiões para em todos encontrar, com nomes diferentes, a Divindade única. 
Dirá: «Há muitos que falam do Conhecimento Divino, mas permanecem ocupados em coisas inferiores ou menores como a casa, o dinheiro, a fama, os prazeres. Enquanto permanecerdes em baixo do monumento apenas vereis os transeuntes, os carros, as casas, mas quando subis ao cimo dele, contemplareis apenas o céu expandindo-se no infinito, e então não vos satisfareis com as pequenas coisas em baixo, que surgem como pequenos insectos... Quanto mais vos aproximardes de Deus, mais obtereis Paz (Shanti), Paz, a Suprema Paz».
                                                    
Uma das características mais valiosas de Ramakrishna Paramhansa (1836- 1886) era a sua capacidade de sentir intensamente e mesmo chegar a ver pelo seu olho espiritual a Presença Divina em todos os seres, ou mesmo em tudo...
Por muitos modos ele explicou o que via e vivenciava, nomeadamente Deus:
"Como é Deus tudo, ou como está em tudo? - É a Divindade que está dentro de nós como a Consciência Pura, a Inteligência Pura.. Neste nível nós somos como a casa e Ele o morador...."  Eis uma boa proposta de meditação.....
Sri Ramakrishna considerava a mera busca intelectual insuficiente, pois o mais importante era a inquietação ou desassossego por Deus, a aspiração (mumuksha) que culmina no amor, na visão, na união...
Um dos aspectos modernos ou, melhor, perenes de Ramakrishna era o de cantar versos tradicionais e dançar, criando à sua volta, com os devotos e amigos, grande entusiasmo místico e alegria...
                                                      
Ramakrishna considerava que este mundo tinha sido criado por Deus para seu prazer ou jogo (lila), e salpicara-o de atractivos para manter as pessoas envolvidas nele mas à medida que os desejos fossem sendo cumpridos e o ego dissolvido a vontade de retornar a Deus crescia nas pessoas e então elas conseguiam-no amar e ver, e libertavam-se das malhas de maya, do jogo ilusório da manifestação.
Vivendo nos arredores de Calcutá, como sacerdote do templo de Kali em Dakshineswar, teve muitos discípulos, um dos quais redigiu quase o dia a dia do mestre, numa obra que se tornará o famoso e belíssimo livro O Evangelho de Ramakrishna traduzido em todas as línguas, em Portugal existindo ainda apenas através da tradução e impressão brasileira, embora eu tenho estado em em 1996, seis meses em Calcutá, a meditar e a dialogar, tendo sido iniciado pelo presidente da Ordem Swami Ranganathananda (1908-2005), e a estudar e a traduzir textos indianos com Satchitananda Dhar, no Instituto de Cultura da Ordem de Ramakrishna, tendo traduzido partes do Evangelho de Ramakrishna que se conservam em manuscrito, talvez à espera de alguma alma caridosa ou engenhosa que as queira computorizar...
                                             
                                           
Ramakrishna tinha grande intuição em reconhecer nas faces ou mesmo formas das pessoas as qualidades interiores, e conta-nos uma história interessante nesse sentido, quando ele era um jovem que estava a começar o seu caminho espiritual: "Alguns dias depois de ter a minha primeira experiência de samadhi (um estado de unificação beatífica espiritual ou divina), em Dakshineswar, uma mulher de família brâmane veio cá, e tinha muitos traços belos. Logo que pusemos uma grinalda de flores à volta do seu pescoço e a queimarmos incenso diante dela, ela entrou em estado de samadhi (ou ainda, êxtase ou inebriamento). Uns momentos depois ela sentiu uma felicidade tão grande que as lágrimas saltavam dos seus olhos. Eu saudei-a e perguntei-lhe: Mãe, será que eu vou conseguir? Sim, replicou ela."
Neste pequeno acontecimento temos vários aspectos valiosos para reflectirmos: a intensificação espiritual de uma pessoa que se pode fazer ungindo-a de incenso e de flores, algo que em geral no Ocidente se faz apenas para os mortos e que julgo ter causado da parte deles algum reparo irónico, já nos seus corpos psico-espirituais: "Nunca nos deram uma flor em vida e agora é que o fazem..." Saibamos então presentear melhor os seres que amamos ou que o merecem com flores e incensos, bons sentimentos, pensamentos, energias...
Voltando aos ensinamentos do episódio da vida de Ramakrishna, vemo-lo em seguida a ter intensificado o estado espiritual (bhava) da visitante, humilde e sinceramente ver nessa mulher a Mãe Divina, algo que é um arquétipo interno de toda a mulher, mas que naquele momento de elevação espiritual mais se concretizava, e perguntar-lhe o sucesso seja da sua profissão de sacerdote ou da realização espiritual futurante, aceitando-a como uma sibila, uma voz oracular...
A influência de Ramakrishna no reconhecimento da Religião Universal ou da Unidades das Religiões é muito importante, não só pela sua experiência das várias religiões por experiência directa, como pelo seu pioneirismo e pelos que, a partir dele, têm ora experimentado internamente ora aprofundado comparativamente as semelhanças e pontos comuns entre as várias religiões e tradições, ou ainda finalmente os que místicos ou iniciados têm experimentado ou vivenciado a Divindade única, a Fonte Primordial, o Sol do Amor Divino...
A descrição da sua passagem intima pelo Islão e pelo Cristianismo tem certamente interesse em ser relembrada, e utilizaremos alguns excertos das traduções feitas no Ramakrisna Institute of Culture, em Calcutá, em 1996:
"O conhecimento pessoal das diversas práticas de cada religião e da essência dos seus fundadores foi sendo paulatinamente revelada a Ramakrishna. Pouco depois da sua iniciação com Tota Puri [um mestre advaita Vedanta, ou seja da Unicidade Divina], um faquir muçulmano chegou ao oásis no deserto que era Dakineswara, parou a sua caravana, e entregou-se às suas práticas no bosque, asseguradas que estavam as suas refeições pela generosidade da organização de Mathur [o superintendente do templo de Ramakrishna].
Govinda Rah, assim se chamava, não passou despercebido ao olhar arguto do mestre e revelou-se n verdade um companheiro de Deus. Quase que imediatamente Ramakrishna sentiu vontade de praticar a sadhana [os exercícios e metodologias psico-espirituais] islâmica sufi, ou seja, as práticas desses místicos que constituem o centro mais puro da religião islâmica.
Iniciado por Govinda, começou a vestir-se e a comer como os muçulmanos, obrigando um cozinheiro árabe a explicar ao cozinheiro bramane como devia fazer a comida e passou a rejeitar espontaneamente as divindades hindus e a repetir o nome de Allah e a dizer o Namaz [as orações preceituadas pelo Islão] as três vezes ao dia. Após três dias neste bhava [sentimento, modulação ou onda interior], Ramakrishna teve uma visão de uma homem luminoso e impressionante, com uma barba longa, e depois viu-realizou a Divindade com atributos e por fim a Divindade pura sem atributos."...
"Pouco depois de ter conseguido realizar a adoração da Mãe Divina pura, Ramakrishna veio a conhecer pessoalmente a religião Cristã. Costumava por vezes visitar um vizinho do templo que era cristão e que tinha na parede uns quadros religiosos em que Jesus surgia. De um deles, criança, ao colo de Maria. Um dia que o examinava cuidadosamente, surgiram como que raios que o trespassavam e o alteravam completamente, fazendo com que as suas impressões hindus fossem como que encerradas num cantinho do cérebro. Algo assustado por não estar a conseguir relacionar-se com a sua religião, pois agora eram outras impressões as que submergiam a sua mente, Ramakrishna orou profundamente à Mãe divina: "Oh Mãe, que mudanças estranhas me estás a causar", mas infrutiferamente. Pelo contrário, imagens de padres e fiéis em oração e adoração profunda, oferecendo incenso, luz e corações ardentes a Jesus nas igrejas surgiam, ao mesmo tempo que uma grande fé e reverência por Jesus e a sua religião o inundava.
Durante três dias este estado manteve-se, sendo-lhe impossível entrar no templo de Kali e por fim ao passear no bosque sagrado viu um homem de compleição bela e profundamente espiritual, ainda que com o nariz levemente achatado, avançar para ele sorridente.
Do seu peito brotaram então as palavras: "Jesus, Jesus o Cristo, o grande Yogi, o amoroso filho de Deus, um com o Pai, que deu o sangue do seu coração e se entregou à morte por tortura para libertar os seres humanos da dor e da miséria. Jesus então abraçou-o e introduziu-se dentro do seu corpo e Ramakrishna entrou em extâse, realizando Deus com atributos e não tendo mais qualquer dúvida em ele ser uma incarnação divina"...
                                                 
"No seu quarto teve sempre ao lado das imagens hindus, uma estátua em pedra de Mahavira, o último tirtankara Jaina e uma imagem de Cristo na parede, e oferecia-lhes incenso todas as manhãs."
Se quiser meditar mais no dia 20, e nos seguintes conforme o programa, certamente que estará em maior sintonia com ele e com os milhares de devotos ou amigos no mundo....
                                                      

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

"Tese e Antítese nos Sonetos de Antero", por António Sérgio. 1937.

António Sérgio, nascido em Damão, na Índia, em 3.IX.1883, filho do então Governador-Geral da Índia Portuguesa, e morrendo em 12.III.1969, foi um pedagogo, livre-pensador e democrata, com vasta obra publicada, tendo sido preso várias vezes e exilado pelo regime de Salazar, mas mesmo assim a sua obra era lida, discutida e sentida como uma luz na obscuridade política e do livre-pensamento nas décadas de 30 a 70 no século vinte. Foi um grande propugnador dos princípios do cooperativismo em Portugal, fazendo pequenas publicações de divulgação. O movimento da Seara Nova e a sua revista devem-lhe muito, e as suas tertúlias literárias eram fecundas. Os seus estudos de história e os vários volumes dos Ensaios foram contributos importantes para equilibrar a mitificação exagerada da História de Portugal, embora por vezes sofrendo dum excessivo pendor positivista, como aconteceu, por exemplo, nas polémicas acerca do Sebastianismo e do Messianismo e mais tarde acerca de Leonardo Coimbra. Os seus comentários tecidos à História Trágico-Marítima foram dedicados «À memória do Infante D. Pedro, de D. Francisco de Almeida, de D. João de Castro, de Diogo de Couto, de Luís Mendes de Vasconcelos, contrários à ideia de fazer conquistas, de multiplicar fortalezas», e ilustram os seus desejos ou aspirações de um entendimento pacífico e lúcido e de uma sociedade cooperativa e equitativa. Editou os Sonetos de Antero, amplamente comentados, e foi quem mais tentou caracterizar e fundamentar uma polaridade apolínea e dionisíaca existente em Antero de Quental.
Em 1937, na importante Revista de Portugal, fundada por Vitorino Nemésio e Alberto Serpa, e que durará até 1940, publicou um valioso texto que vamos partilhar. Se houver comentários logo se fará diálogo, agora apenas transcrevendo a conclusão de Antero e de Sérgio:
«Todo o dialecta há-de pensar com Antero [citado das suas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XX], que «o Universo, análogo no fundo ao espírito, só pelas suas ideias imanentes existe e se governa» e que «a evolução, vista desta altura, não é somente o processo mecânico e  obscuro da realidade: é o próprio processo dialéctíco do ser, tem as suas raízes, comuns com as raízes da razão, na inconsciente mas fundíssima aspiração da natureza a um fim soberano, a consciência de si mesma, a plenitude do ser e a ideal perfeição»...












Um pouco difícil de ler... Logo que possa, fotografo de novo...íí

                         
Escreve António Sérgio, e repetimos: «Todo o dialecta há-de pensar com Antero que «o Universo, análogo no fundo ao espírito, só pelas suas ideias imanentes existe e se governa» e que a evolução, vista desta altura, não é somente o processo mecânico e obscuro da realidade: é o próprio processo dialéctico do ser, tem as suas raízes, comuns com as raízes da razão, na inconsciente mas fundíssima aspiração da natureza a um fim soberano, a consciência de si mesma, a plenitude do ser e a ideal perfeição»...
Eis algumas afirmações correctas e outras incorrectas, que nos desafiam a cogitarmos com calma, pois nem Antero nem Sérgio estão aqui a ver ou a admitir a descida do espírito à natureza, algo materialistas vendo o espírito apenas numa medida idealista, na qual se compraz António Sérgio, vendo-a implícita no materialismo dialéctico, ainda que estes não se considerassem idealistas. Ora o espírito é tão real como uma coisa e não é uma simples ideia. E tem de ser experienciado interiormente por cada um de nós...

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Da morte e da amizade e espiritualidade imortalizadoras. Despedidas num cemitério...

Ommm  A morte de uma pessoa amiga é sempre um momento especial na vida dela e, logo, quando podemos acompnahá-la, também na nossa. Assim partimos para o cemitério dos Olivais, uma parte de Lisboa ainda com oliveiras e um monte donde as almas se transformam ou se reconhecem (mais ou menos...) em fogo e luz da vida...
As nuvens são sempre anunciadoras, mensageiras, nem que seja da existência do firmamento, Aditi, na tradição védica a mãe de todos os deuses, os Adityas, tais como Surya, o Sol, e Varuna, a água..., e é uma das melhores realidades e imagem da Divindade, imensa e matriz de tudo...
Os cedros apontam ao céu e são árvores sagradas consagradas à imortalidade, porque estão sempre verdes e se dispõem em forma cónica e piramidal, manifestando a sua natureza poderosamente ígnea. As nuvens, essas, em cima de um cemitério e crematório, certamente que assumem formas  por vários motivos, ou conforme as subjectividades observadores e modeladoras...
Um pequeno dragão (ryu, na tradição nipónica bem referida pelo nosso Wenceslau de Moraes) lança uma labareda, ou não estivesse um corpo a ser queimado e as suas energias a alimentarem os mundo subtis e a consciência a encaminhar-se para o mundo espiritual...
Nos muros que rodeiam os jardins, também chamados "cercas" à volta dos conventos, quem se avista com frequência são as aves  (aqui dois melros) saltitantes e livres, para as quais não há fonteiras e lembrando-nos que também nós somos cidadãos dos dois mundos e em nenhum deles nos devemos fechar ou limitar mas na Unidade Divina (Tawid, na mística Islâmica) nos assumir...
Poucos mas bons: a Suzana, o António e o Xucha, mais invisíveis Carlota e eu, debruçados sobre a sebe separadora, ainda banhada pelo sol, após a curta celebração e oração pela partida luminosa da alma amiga desfalecida corporalmente, renascida espiritualmente...
Os augúrios ou auspícios tirados pela direcção para onde corre o fumo do corpo a arder, sobretudo se há orações ou mantras a elevarem-se para os céus, muito provavelmente aconteceram nas margens do Ganges como aqui nas do Tejo ("o Ganges também passa pela rua dos Douradores", Fernando Pessoa, Livro do Desassossego), quando o vimos subitamente, no meio do nosso diálogo sobre a convergência das religiões, a erguer-se direito, atraído para o alto...
A Brihadaranyaka Upanishad, que o António Barahona acabara de traduzir ou transcriar, para as Publicações Maitreya, e que eu levara para eventuais leituras-orações, na longa espera até nos entregarem as cinzas, passou de mãos em mãos até o António a dedicar...
Uma bela imagem deste poeta e espiritual, com o lenço da causa Palestiniana, após um longo e variado percurso espiritual,  hoje sendo um islâmico, sufi com o seu Pir ou Sheikh, e pai de nove filhos e dezenas de livros, poemas e traduções...
Imagens de horizontes simples mas muito cósmicos e imortalizantes...
Umas pequenas flores coloridas e odoríferas, brotando da relva verde e humilde da esperança, os muros e fronteiras entre os mundos e as árvores, que ligam a terra e o céu e são eixos do mundo, tal como nós nas nossas colunas vertebrais e aspirações espirituais...
Já de novo no centro de Lisboa, a grata sensação de levar uma alma em cima da aura, sobre o vaso com as cinzas que levo na mochila às costas (posteriormente serão depositadas  nas raízes de uma árvore) e, subitamente, uma nuvem bela a aparecer sobre um vaso-urna, e o fogo da aspiração a religar os mundos, qual raio celestial bem flamejante...
Assim, que a alma da Maria João, ser bem sensível e bondoso, esteja luminosa, desperta e a avançar para os melhores estados possíveis nos mundos espirituais, com as bênçãos dos Mestres, Anjos e da Divindade... Lux!