| Fernando Leal, provavelmente, no seu último ano de vida terrena. Fotografia de Alves de Sousa. |
Fernando Leal, criado com seus pais em Assolnã, estuda particularmente línguas, filosofia e matemática, alista-se como cadete no regimento de Artilharia de Nova Goa e inscreve-se na Escola Matemática Militar, tendo recebido sempre o primeiro prémio nos seis anos do curso. Ofereceu-se como voluntário e foi despachado como Segundo-Tenente na expedição enviada pelo Governo de Goa contra o Bonga da Zambézia.
É em Fevereiro de 1869, com 23 anos, que chega a Lourenço Marques como ajudante de campo do seu tio, na época o Governador Geral da Província de Moçambique. Anos mais tarde dedicar-lhe-á a sua primeira obra poética, os Reflexos e Penumbras: «À memória do meu tio, o coronel Fernando da Costa Leal, que determinou a foz do rio dos Elefantes, explorou os sertões de Huíla, Quipungo, Gambos e outros; que construiu, com Sá-da-Bandeira, a carta de Angola; enérgico promotor da prosperidade de Moçâmedes, repressor do gentio de Mandombe e Nano, soldado valente em Torres-Vedras, em Ourém, nas linhas do Porto, em África; cidadão benemérito e imaculado, que morreu pobre depois de três governos no Ultramar - saudosamente consagro este livro».
É então que as suas qualidades de investigador, explorador e cientista vêm ao de cima e assim, ao fim de alguns meses com o tio, parte de Lourenço Marques para o Transval como secretário da missão diplomática de delimitação e acordo dos limites territoriais e amizade com os Boers, por caminhos duros e complexos até chegar em Dezembro de 1869. Já o regresso fá-lo, não no percurso normal com os outros colegas da missão, mas com o naturalista alemão Carl Mauch (o redescobridor das ruínas de Zimbaué), numa longa peregrinação do Transval às águas suaves da baía de Lourenço Marques por caminhos até então não percorridos pelos europeus, onde chegam em 8/12/1870 (Cândido Figueiredo regista 8-8). As suas viagens contribuem não só para a confirmação da presença e soberania portuguesa em Moçambique, na arbitragem internacional de Mac-Mahon, de 1875, como também para descobertas científicas nas áreas da Geologia e Botânica, tendo identificado uma nova planta, a Arbol Botella, um arbusto com belas flores brancas e que receberá o seu nome, Pachypodium Lealli, e que ele explicará numa judiciosa nota inserida na tradução que fez dum livro passado na Índia, do francês Méry. A viagem foi publicada no Boletim Oficial de Moçambique de 1870-1871 e pouco depois no Boletim da Índia.
Permaneceu alguns anos em Portugal, como oficial do Exército provavelmente em certo quartel (investigar...), publicando os seus escritos, traduções e poesias, e convivendo com notáveis escritores como Antero de Quental, João de Deus, Rafael Bordalo Pinheiro, Eça de Queirós, Cândido Figueiredo, Gomes Leal, Moniz Barreto, Frederico Ayala, Santos Valente, etc.
Em 1876 publicou em Lisboa num in-4º de 80 páginas o livro Elefantes e Monstros, episódio da insurreição Indiana de 1857, por Méry. Versão e notas por um Índio, uma tradução de um excelente romance pela intensidade emotiva e com três notas suas em dez páginas, bem esclarecedoras de aspectos históricos, etnográficos e botânicos. Uma reimpressão obteria provavelmente algum sucesso...
Em Dezembro de 1876, publica um opúsculo Lettre à mademoiselle Marie Denis sur l' immoralité parisienne por Rouget de la Presqu'ile (seu pseudónimo), sobre aspectos do Teatro, onde analisa a metodologia crítica: «Mas para ferir alguém ou alguma coisa, é indispensável ter essa coisa ou esse alguém, ali, muito perto de nós, ao alcance do braço ou do tiro. Aí está a razão porque a própria imoralidade deve aparecer no teatro (ou no romance ou no poema): apenas para ser pateada, escarnecida, sovada».
«Fernando Leal conhece bem a sua língua, conhece igualmente a história; e de mais, tem num alto grau o golpe de vista sintético peculiar aos espíritos superiores, sobranceiros e largos horizontes, e pulsa-lhe no coração, com uma intensidade fremente, a nobre fibra do entusiasta. Os Reflexos e Penumbras são, em suma, um dos mais apreciáveis livros de versos que entre nós se tem dado recentemente à estampa.»
Em 1882, a 29 de Março no Jornal da Noite, escreve um artigo sobre Victor Hugo e pouco depois, sua linha forte de activista social e cultural, como o eram seus inspiradores e amigos Gomes Leal e Antero de Quental, a propósito do bombardeamento de Alexandria pela esquadra do Almirante inglês Seymor, ergue a voz em fortes quadras:
Teve o marujo inglês fácil vitória.
Mas não pode fazer calar a História,
Amordaçar a boca da ironia".
Em 1888 traduz, prefacia e anota os Soldados da Revolução, do historiador idealista francês Michelet, tão apreciado também por Antero de Quental. Sobre esta obra escreverá um longo e valioso artigo, no Jornal do Comércio, de 27-IV-4-1889, a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho: «vertido para português por um poeta de muito talento - o snr. Fernando Leal, - é originalmente firmado pelo nome quase divino de Michelet, o santo, o sonhador, o entusiasta, o crente, que viveu na conveniência estreita dos heróis e dos mártires, sem que a derrota de uns ou o suplício dos outros apagasse na sua alma a fé e o ardor dos prosélitos...»
Ele bem sabia, o santo, o humano, o consolador Michelet, ele bem sabia que, apesar de Bonaparte, como apesar de Bismarck e de Moltke, apesar de Iena como de Sedan, apesar da violência, apesar do êxito, apesar das traições, das cobardias do destino, apesar de tudo, há sempre, no firmamento moral, alguma coisa que fulgura, que se não deixa empanar por toda a glória das batalhas, por todo o esplendor das vitórias. Essa coisa, que tem longos eclipses para a multidão idólatra dos triunfadores do momento, mas sempre e bem visível para alguns, através do fumo da pólvora, da poeira dos triunfos, das nuvens do incenso, através das brumas da história, essa coisa terrível, ineluctável, imanente, chama-se a Justiça», nestas últimas linhas tanto lembrando o seu amigo Antero de Quental.
Dos que o elogiam na Imprensa nomeemos Luiz Botelho, Rodrigues Velloso, Teófilo Braga, Maria Amália Vaz de Carvalho, Reis Damaso, Cândido Figueiredo e Guiomar Torrezão.
Após publicar em 19 de Maio de 1889, n' A Voz do Operário, em Lisboa, uma tradução de Victor Hugo, O Sapo, regressa à terra natal, a Índia, provavelmente no Outono, já que no Verão passara alguns dias em Vila o Conde com Antero de Quental, seguindo o conselho que ele lhe dera: «regresse à Índia e case-se com a mulher que o ama...»
Que encantadoras noites se passavam em casa de Costa Paulino, onde a poetisa Florência de Morais [ler: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2023/10/sete-sonetos-camoneanos-de-florencia-de.html,] Visconde de Castelões e Fernando Leal se juntavam a "virtuoses" como a snra. D. Helena da Cunha Pereira e outras damas e cavalheiros, pondo em tudo uma tal nota de arte que eram noites de sublime prazer intelectual!
"A notícia da morte de Costa Paulino traz-nos à memória aqueles tempos distantes, cuja simples recordação faz bem ao espírito torturado pelas misérias dos tempos presentes»....
Um dos filhos de Higino da Costa Paulino e de Maria Helena Noronha, e sobrinho de Fernando Leal, o capitão António Noronha, testemunha no seu livro Relembrando Goa: «Morávamos então numa velha e grande casa apalaçada do engenheiro Assa Castelo Branco, que foi casa solarenga, nos antigos tempos, dos Távoras, e onde hoje, dizem, foi construído o belo Hotel Mandóvi. Deram-se lá belas festas, «serões» e bailes que marcaram na sociedade de Goa desse tempo. Recitava-se, cantava-se, tocava-se e bailava-se também animadamente. Recitavam-se versos dos poetas Osório de Castro, Álvaro de Castelões, Fernando Leal e da poetisa Florência de Morais. E também do meu pai, que «dizia» maravilhosamente».
O outro dos seus sobrinhos que nos dá indicações sobre Fernando Leal é o já mencionado capitão António de Noronha Paulino, fomentador da Educação Física em Goa, que no seu livro Relembrando Goa (Lisboa, 1963) refere a amizade do tio com João de Deus, Gomes Leal e D. João da Câmara, e conta histórias passadas com ele: «A grande casa da Administração, onde moravam, ficava debruçada sobre o romântico rio-Sal, todo bordejado de frondosos salgueiros. Que lindos passeios nós [Fernando Leal e ele] dávamos, aos domingos, em cómoda jangada, pelo rio abaixo, até à foz, à calma e poética Betul!»
A este testemunho da convivência serena de semanas entre Caetano Gonçalves e Fernando Leal, acrescentemos de novo o do seu sobrinho António de Noronha, sobre os seus últimos anos de vida:"Esse meu tio como poeta que era, tinha - além de um génio exaltado - as suas manias. E uma delas: o de estar sempre com um terrível calor e por via disso trazia, à sua ilharga, o criado mouro, o Soliman, com uma grande ventarola em punho para o abanar constantemente... Até quando de machila (meio de transporte), lá ia o pobre Soliman, correndo ao lado, a dar à ventarola. Depois do almoço e do jantar, meu Tio, sentava-se por momentos, pachorrentamente, num cadeirão de braços, junto à larga janela, que dava para o rio, procurando talvez inspiração para os seus versos, de olhos semi-cerrados... Quando não cantava, em voz submissa, qualquer cantiga brejeira - o que muito arreliava, minha Tia, toda beata... E lembro-me duma delas: "Tenho pena da menina/ Ser tão linda e dormir só/ Tenho pena, meu amor, tenho pena/Tenho pena, meu amor, tenho dó..."
Outras vezes eram lindos «mandós» em concanim, língua que ele dominava perfeitamente, gostando mais do concanim falado em Salcete, do que o de Bardês. Um desses mandós, com uma música lindíssima, dizia assim: "Sacani uttom combo, Mãi/Sad galita/ Toch combo, Mãi, toch combo, Mãi/ Pejek uttaita», repetindo-se estes dois últimos versos...»
Quanto à "atitude dos Ranes" referida no início da transcrição, trata-se da chamada Revolta dos Ranes, nascida da recusa dos soldados maratas do Exército de em 1895 partirem para Moçambique sem as suas mulheres, e a consequente deserção ou saída dos quartéis, gerandoa movimentações de tropas e negociações, mas sem haver mortes.
Neste caso Fernando Leal esteve de sobreaviso ou a sua familiaridade com os soldados terá mesmo contribuído para o diálogo que se estabeleceu e no qual o conde de Mahem e o visconde de Bardez foram os escolhidos pelo Governo para diplomatas adequados às negociações que se entabularam junto a Sanquelim? Pouco depois chegava ao rio Mandovi vindo de Portugal uma expedição comandada pelo infante D. Afonso que acabou por cancelar o despacho que punha em causa a vida familiar dos soldados maratas.
Relembremos a sua tríade literária principal: primeiro, os Reflexos e Penumbras de 1880, de composições originais, cheias de idealismo revolucionário e lirismo, e traduções francesas de Victor Hugo, dedicado saudosamente "à memória de meu tio, o coronel Fernando da Costa Leal". Em segundo, os Relâmpagos, já de 1888, impresso num in-8º de 268 págs., no Porto, na Livraria Civilização, e em terceiro, a sua última obra, o Livro da Fé, 1906, que inclui, como foi habitual, poemas originais seus e traduções, e teatro e textos em prosa.
Depois de regressar à Índia deu à luz em 1891, em Lisboa, na Typographie Franco-Portuguaise, Corymbe Exotique, [Inflorescência exótica], num in-4º de XVII-38 páginas, escrita toda em francês, com uma extensa introdução muito crítica da Inglaterra, com um nota trágica mas valiosa a assinalar a morte de Antero de Quental, nos Açores, em Setembro de 1891, e com poemas em francês, entre os quais o do bombardeamento de Alexandria pelos ingleses e que tanto o indignara. O primeiro poema é auto-biografico do amor que o une à sua mulher, e muito belo.
E em 1897 publica o Relatório acerca da administração geral dos campos nacionaes de Assolnã, Velim, Ambelim, Talvordá, Nuém e Ragibaga, relativo a 1897 pelo administrador, o major Fernando Leal. (In-4º de 19 págs.) É um testemunho dos seus dotes de cientista e agricultor e nesse sentido Sérgio de Castro, in Homens de Letras e Flores, 1926, refere os seus conhecimentos de Botânica expressos por João de Deus, outro amante da jardinagem, numa carta, patentes também numa das suas notas juntas à tradução que fez da obra de Méry, Elefantes e Monstros.
Em 1898 publica duas traduções de Victor Hugo no jornal Era Nova, Carta aos ateus, e Aos pés dum crucifixo, em 2 e 10 e Março e pouco depois dá à luz a Homenagem ao Ex. e Rev. Sr. Dom Matheus de Oliveira Xavier, bispo de Cochim, no dia da sua sagração em Goa.
Em 1899 em Margão, escreve Dieu garde le Tsar! a propos du Congrés de la Paix, que se celebrara em Haya, «uma franca homenagem (...) endereçada ao Imperador da Rússia em aplauso às suas nobres tentativas de paz universal» e uma forte crítica aos norte-americanos e ingleses.
Esta plaquette ou opúsculo de 21-IV páginas, e que foi logo reeditado, é elogiado por Rodrigues Veloso, n' A Aurora do Cávado, de 20-XII-1899: «Com que veemência íntima e sincera não aplaudo esse azorragar tão vigoroso e lategante quão merecido, do eminente poeta sobre os orgulhosos opressores de Cuba e das Filipinas, da Irlanda, da Ásia e do Traansval. Com o ouro e os couraçados que possuem em demasia, e com a nenhuma vergonha e brios que lhes restam, entendem que todo o mundo é seu e que dele podem dispor a seu talante!...»
Destes tempos do findar da presença cultural e convivial portuguesa na Índia fala-nos o capitão António de Noronha, que os sentia nostalgicamente, no seu Relembrando Goa: «E outros pensamentos surgiam agora como dobres a finados.... como aqueles queixumes, ditos em versos por homens bons e sábios da portuguesíssima têmpera que eu muito admirava e que se reuniam de quando em quando em casa de meus pais, em amenos serões, tais como o velho Barão de Combarjua, tão acertado no seu dizer, o literato Visconde de Bucelas, o escritor e historiador Frederico de Ayala, os poetas Fernando Leal e Alberto Osório de Castro, Dr. Fragoso, tão original na suas teorias e meu pai [Higino da Costa Paulino]... e mais tarde, o romântico e célebre Visconde de Castelões, Álvaro de Castelões, que provocou o falado "ultimato", a poetisa Florência de Morais... e neles, nesses versos, traduziram a mágoa que lhes ia na alma por todo aquele abandono para o qual não viam remédio, nem esperança...»
De Fernando Leal:
Sobre ti, Goa, um Sol sinistro cai.
Cidade que Albuquerque prezou tanto,
Seu grande sonho que em solidão se esvai."
E ainda este do mesmo poeta:
Por a espada cristã partir o mouro alfange...
Mas Goa é morta já!
Não mais repicas, sino; agora oh sino, dobras....Goa é negra mansão de feras e de cobras,
Deserta Goa está!"»
Na pagela que lhe foi dedicada transcrevia-se a tradução que ele fizera do poema de Victor Hugo, no Pedestal dum Crucifixo:
Vinde, vós que sofreis, pois cura a sua graça;
Vinde, vós que tremeis, a Ele que sorri;
Vinde, vós que passais, a Ele - que não passa."
É na nossa literatura, quase apagada e triste, um raio de sol da resplandecente Índia, onde a bela Lakshmi nasceu radiante de um mar todo de leite no largo cálice de um lótus, a bela flor azul!...
Receba Fernando Leal estas linhas como um preito ao seu talento, ao seu carácter excepcional, à sua alma de ouro, - dado por um homem cujas mãos estão mais acostumadas a traçar frases amargas e penosas do que a mover o incensador ante o nariz das divindades».
Saudemo-lo também nós, e aos seus amigos e familiares, passados estes anos todos...

Lakshmi, uma das faces femininas da Divindade mais cultivada na Índia, brotando do lótus da devoção...
São quarenta páginas com informação valiosa, mas quem quiser saber mais de Fernando Leal terá de socorrer-se de outros autores, nomeadamente dos seus sobrinhos já referidos, tal Caetano Gonçalves. E ainda de Sérgio de Castro, Homens de Letras e Flores, 1926; Cândido de Figueiredo, Homens e Letras, 1881; Mayer Garção, Homens Esquecidos, 1924; e ainda de José Julião do Sacramento Almeida, A imprensa portuguesa chorando a morte do grande poeta do século XIX Fernando Leal. Bombaim, 1911.













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