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| Outrora numa parede do Hospital de São Luís onde Fernando Pessoa desincarnou. |
Para saudar o espírito de Fernando Pessoa, nos 90 anos da partida (30/11/2015) eis um texto escrito há uns anos para a editorial Caminho e agora alterado e melhorado.
Anjos e Arcanjos, na obra de Fernando Pessoa
A brisa diáfana, a canção angelical ou mesmo a presença angélica (do grego angelos, mensageiro, anunciador) perpassam espaçada e subtilmente a obra de Fernando Pessoa pois tanto o Cristianismo em que fora educado, como também a Tradição espiritual, tanto a pré-cristã como a iniciática das Ordens e Religiões que estudou, lhe permitiram aceitar e intuir estes seres intermediários entre a Humanidade e a Divindade, e que, imaginados, vistos ou pressentidos em todos os tempos e povos, emergem mais na literatura e no ocultismo e hermetismo dos últimos séculos, numa reacção ao positivismo materialista e ao vazio de transcendência, sendo acolhidos ou referidos por vários autores lidos ou conhecidos de Fernando Pessoa, tais como Swedenborg, Martins de Pascoal, William Blake («quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos»), Balzac, Victor Hugo, Eliphas Lévi, Papus, A. E. Waite, Yeats e Rilke, ou mesmo Camilo Pessanha, um dos mestres de poesia de Fernando Pessoa.
Contudo, pela ligação à civilização greco-romana e na sua fase neo-pagã, Fernando Pessoa preferiu evocar mais como intermediários os deuses e espíritos da natureza, tais as ninfas, fadas, elfos e silenos do que os anjos, por ele associados ao Cristianismo e ao misticismo e então combatidos. Assim, embora haja bastantes referências em poemas aos Anjos, as mais substanciais são poucas, surgindo em poemas de conteúdo espiritual e iniciático, tal na Iniciação, publicado na revista Presença em 1932, (e já hermeneutizada neste blogue) e no qual a alma é liberta da identificação com os corpos inferiores pela acção sucessiva dos Anjos, Arcanjos e Deuses, para receber, por fim, a injunção libertadora: - "Neófito, não há morte."
Na Mensagem, também os encontramos no poema dedicado a Dona Filipa de Lencastre: «Que enigma havia em teu seio/ Que só génios concebia?/ Que arcanjo teus sonhos veio/ Velar, maternos, um dia?»
Já nos textos de teorização e investigação sobre as hierarquias angélicas e os nomes de Deus, os planos do Universo, as sefirotes cabalistas e os graus dos sistemas das Ordens mágicas e herméticas, as referências abundam, em parte devedoras de fontes neoplatónicas, cristãs, gnósticas e cabalísticas. Fernando Pessoa enumera assim mais de uma vez as nove hierarquias celestiais descritas pelo pseudo-Dionísio Areopagita, e faz culminar a escala de níveis de interpretação, com os sentidos místicos, mágicos, alquímicos, angélicos e arcangélicos .
Noutros textos, em ensaios sobre a Iniciação, ecoando ensinamentos das ordens herméticas inglesas a que teve acesso, afirma que «a conversação com o Santo Anjo da Guarda é a mais alta obra de magia» e que esta conversação significa não só a intimidade interior mas o despir-se da inteligência pessoal e da personalidade, o abdicar-se delas, para que aconteça abertura ao nível supramental ou angélico.
Certamente que estes níveis mais elevados do Cosmos e estes seres tão subtis não são facilmente coaguláveis-fixáveis-definíveis- teorizáveis, sobretudo para quem os conheceu apenas por leituras, imaginação mágico-poética, ou já intuição fugaz, e por isso dirá, repetindo mais de que uma vez a glosada afirmação oculta «vi Anjos, toquei Anjos, mas não sei/ Se Anjos existem».
Isto indica a fragilidade evanescente ou até ilusória da via mágica, sobre a qual Fernando Pessoa confessara: «não esqueçamos a advertência de um Mestre da Magia, «Já vi Ísis, já toquei em Ísis; não sei contudo se ela existe», donde a sua saudade da simplicidade da aproximação directa infantil, tal como diz no mesmo poema, mais à frente, que quem lhe dera «ser agora qual menino eu era/ dos mesmo anjos mais fiel vizinho». Podemos considerar que provavelmente tendo aprendido a Oração do Anjo da Guarda, poderá ter, com a sua imensa sensibilidade, intuído em jovenzinho a sua presença...
Fernando Pessoa reconhecerá que o ultrapassar dos condicionamentos psíquicos implica um trabalho persistente, o qual é no fundo a iniciação: o dissipar ou desvendar das trevas e ilusões, em parte resultantes da nossa dispersão mental e social, das nossas impurezas, da falta tanto da capacidade de concentraçã como de aspiração à luz e à verdade e ainda do olho espiritual não estar aberto, o que nos impede de vermos que os Anjos, pois «os Deuses não morreram: O que morreu foi a nossa visão deles. Não se foram: deixámos de os ver.»
Por estas razões Fernando Pessoa afirmará a sua ligação à Tradição primordial do Um e das suas emanações de estados múltiplos de ser, e do retorno ascensional a Ele, nomeadamente na famosa carta a Adolfo Casais Monteiro, de13/1/1935, uns meses antes de morrer: «Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo». Relembremos ainda, destes seres mediadores ou níveis intermediários, o Arcanjo de Portugal, citado como o «Espírito da Nação na sua alma recôndita» que sabe os segredos mas não os revela facilmente, bem como as referências aos Arcanjos em vários escritos sobre a Trindade, o Demiurgo e a tradição da Queda dos Anjos e dos Homens.
Não encontramos todavia em Fernando Pessoa uma Angeologia realizada e estruturada pois na sua vida poética fluíram provavelmente mais (embora não as tenha contado) as brisas, o vento, o eco, os pressentimentos de fadas e elfos do que as intensificações do numinoso divino, reveladas pelo seu mensageiro por excelência, o Anjo, ainda que existam alguns textos e poemas do final da vida bem significativos.
Assim, num curto escrito que aponta (pelo papel e tinta) para ser do último ano da sua vida, crítico da divisão da psique humana segundo a teoria freudiana, relaciona originalmente o que poderei chamar o supramental com os níveis angélicos: «Os herméticos admitem estas duas divisões do espírito [consciente e sub ou in-consciente] – a primeira puramente humana, a segunda obscuramente animal, mas acima delas estabelecem a existência de uma terceira divisão – a sobrehumana, esboçada, embrionária, incompleta, tida por a qualidade que liga o homem às existências superiores, designando-as frequente e porventura simbolicamente, por anjos, arcanjos e a outros nomes assim». Anote-se uma certa originalidade na síntese esboçada distinta da freudiana e da junguiana, preferindo a designação de plano sobrehumano onde vivem as existências superiores, designadas tradicionalmente pelos nomes simbólicos de anjos e arcanjos...
Numa visão mais simbólica, iniciática e hermética, o Anjo da Guarda, humanamente e na identificação interna, pode ser visto como o Espírito, o Mestre da alma, e sabemos, graças aos estudos de Henry Corbin, Louis Massignon e Paul Ballanfat, que muitos iniciados designam o Anjo como o Segredo mais íntimo, o Mestre do coração, nomeadamente na Tradição sagrada do Irão xiita, com raízes nas entidades angélicas femininas denominadas fravartis, companheira e guia de cada ser, sobretudo após a desencarnação, e nesse sentido Fernando Pessoa interrogou-se intimamente: «A alma da alma é um homem à parte de cada homem e isto é o Mestre, um Anjo da Guarda. A alma desta alma é Deus. (Ou é isto apenas no génio e inspiração». Já noutro texto, sobre esta questão da identificação ou da identidade angélica e espiritual, concluirá certas interrogações sobre ensinamentos duma ordem mágica, aceitando que «a fórmula Santo Anjo da Guarda corresponde ao Eu Superior, e exprime a verdade. O Espírito da nossa Alma, sendo a substância de nós, é apesar de tudo distinto de nós neste mundo e é outrem. A fórmula Santo Anjo da Guarda está portanto correcta.». E num valioso mas menosprezado poema, meses antes de morrer, ondula à volta do mistério do Anjo: «Meu coração também/ É o túmulo do Bem/Que a minha Alma não tem.// Mas há um anjo a me ver/ E a meu lado a dizer/ Que tudo é outro ser».
O itinerário iniciático de Fernando Pessoa, que não foi mistificação ou ambiguidade tal como muitos pessoanos quiseram ou querem, embora fosse limitado pela sua dispersão psíquica, enfraquecimento somático e afectivo, e menor associação-ligação-invocação com os seres e energias mais luminosos, tais mestres e santos, o Anjo, Jesus Cristo, a Divindade, continua naturalmente ainda hoje longe de ser compreendido, sobretudo nas influências, na originalidade e nas realizações internas, e não é fácil conseguir-se transmitir tal hermenêutica mais acertada.
Um exemplo de textos que questionam superficiais ou tendenciosas aproximações ou interpretações do ocultismo, esoterismo e misticismo de Fernando Pessoa é aquele em que ele nos diz ousadamente que «a iniciação é a admissão à conversa dos Anjos. Alguns ouvem, outros ouvem e veem... A essência da doutrina oculta é que não há comunicação com Deus (Martins Pascoal a Saint-Martin). A essência do misticismo é procurar esta comunicação, quebrar os limites da pluralidade. (1) Conhecimento e conversação com o Anjo da Guarda, (2) Conhecimento dos outros anjos, (3) Caminho para Deus» , afirmações esta escritas nos últimos meses da sua vida e que marcam a sua crescente compreensão do valor da ligação directa mística salvífica ou do coração espiritual com o anjo, o mestre, o Cristo e a Divindade. Certamente muitas das actividade tradicionalmente reconhecidas ou atribuídas aos Anjos estão presentes na sua obra, tais como manifestarem o esplendor divino, intensificarem o júbilo adorativo ao nascer e ao pôr do sol, guardarem a memória, interpretarem os sonhos, sustentarem o esforço e a ascese no Caminho, ajudarem a ver os outros como espíritos filhos de Deus e a pensar com discernimento, protegerem no invisível, advertirem e apoiarem nas dificuldades, curarem, mostrarem-se aos que merecem, acompanharem e
transmitirem intenções e orações nos mundos subtis, religarem-nos a
Deus, serem psicopompos na hora da desincarnação, surgindo de facto explícita ou implícitamente na obra de Fernando Pessoa não tão poucas vezes como se pensaria. |
| Smirnov Rustzek. Anjos Guardiões |
Demos ainda exemplos, tal o de poderem ser o espírito protector e inspirador de uma igreja ou local de culto:
O anjo da sua capela
conhece quem ela ama.
A brisa passa por ela,
Mas ela não a chama.
Descerem, relembrarem, religarem, e escrito um ano exacto antes da sua morte:
Que anjo, ao ergueres
A tua voz
Sem o saberes
Veio baixar
Sobre esta terra
Onde a alma erra
E com as asas
Soprou as brasas
Do ignoto lar?
Finalizemos esta breve homenagem a Fernando Pessoa, aos Anjos, Arcanjos e ao Arcanjo de Portugal, com o final de um dos mais belos poemas de Fernando Pessoa, e que publiquei em Poesia Profética, Mágica e Espiritual, em 1989:
«Mãos do meu Anjo da Guarda,
Que bem guiais, como dois,
O meu ser que teme e tarda,
Postas firmes nos meus ombros
Sem de que eu saiba de quem sois!
Vou pela noite infiel
Sentindo a aurora raiar
Por traz de alguém que me impele
Mas já adiante de mim
Vejo a luz a se espelhar.

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