domingo, 30 de novembro de 2025

Fernando Pessoa, e os Anjos e Arcanjos. Nos 90 anos da sua partida, breve contributo.

Outrora numa parede do Hospital de São Luís onde Fernando Pessoa desincarnou.

 Para saudar o espírito de Fernando Pessoa, nos 90 anos da partida (30/11/2015) eis um texto escrito há uns anos para a editorial Caminho e agora alterado e melhorado.          

                Anjos e Arcanjos, na obra de Fernando Pessoa

A brisa diáfana, a canção angelical ou mesmo a presença angélica (do grego angelos, mensageiro, anunciador) perpassam espaçada e subtilmente a obra de Fernando Pessoa pois tanto o Cristianismo em que fora educado, como também a Tradição espiritual, tanto a pré-cristã como a iniciática das Ordens e Religiões que estudou, lhe permitiram aceitar e intuir estes seres intermediários entre a Humanidade e a Divindade, e que, imaginados, vistos ou pressentidos em todos os tempos e povos, emergem mais na literatura e no ocultismo e hermetismo dos últimos séculos, numa reacção ao positivismo materialista e ao vazio de transcendência, sendo acolhidos ou referidos por vários autores lidos ou conhecidos de Fernando Pessoa, tais como Swedenborg, Martins de Pascoal, William Blake («quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos»), Balzac, Victor Hugo, Eliphas Lévi, Papus, A. E. Waite, Yeats e Rilke, ou mesmo Camilo Pessanha, um dos mestres de poesia de Fernando Pessoa.
Contudo, pela
 ligação à civilização greco-romana e na sua fase neo-pagã, Fernando Pessoa preferiu evocar mais  como intermediários os deuses e espíritos da natureza, tais as ninfas, fadas, elfos e silenos do que os anjos, por ele associados ao Cristianismo e ao misticismo e então combatidos. Assim, embora haja bastantes referências em poemas aos Anjos, as mais substanciais são poucas, surgindo em poemas de conteúdo espiritual e iniciático, tal na Iniciação, publicado na revista Presença em 1932, (e já hermeneutizada neste blogue) e no  qual  a alma é liberta da identificação com os corpos inferiores pela acção sucessiva dos Anjos, Arcanjos e Deuses, para receber, por fim, a injunção libertadora: - "Neófito, não há morte." 

                              
 Na Mensagem, também os encontramos no poema dedicado a Dona Filipa de Lencastre: «Que enigma havia em teu seio/ Que só génios concebia?/ Que arcanjo teus sonhos veio/ Velar, maternos, um dia?»
Já nos textos de teorização e investigação sobre as hierarquias angélicas e os nomes de Deus, os planos do Universo, as sefirotes cabalistas e os graus dos sistemas das Ordens mágicas e herméticas, as referências abundam, em parte devedoras de fontes neoplatónicas, cristãs, gnósticas e cabalísticas. Fernando Pessoa enumera assim mais de uma vez as nove hierarquias celestiais descritas pelo pseudo-Dionísio Areopagita, e faz culminar a escala de níveis de interpretação, com os sentidos místicos, mágicos, alquímicos, angélicos e arcangélicos . 
Noutros textos, em ensaios sobre a Iniciação, ecoando ensinamentos das ordens herméticas inglesas a que teve acesso, afirma que «a conversação com o Santo Anjo da Guarda é a mais alta obra de magia»  e que esta conversação significa não só a intimidade interior mas o despir-se da inteligência pessoal e da personalidade, o abdicar-se delas, para que   aconteça abertura ao nível supramental ou angélico.
Certamente que estes níveis mais elevados do Cosmos e estes seres tão subtis não são facilmente coaguláveis-fixáveis-definíveis- teorizáveis, sobretudo para quem os conheceu apenas por leituras, imaginação mágico-poética, ou já intuição fugaz, e por isso dirá, repetindo mais de que uma vez a glosada afirmação oculta «vi Anjos, toquei Anjos, mas não sei/ Se Anjos existem». 
Isto indica a fragilidade evanescente ou até ilusória da via mágica, sobre a qual Fernando Pessoa confessara: «não esqueçamos a advertência de um Mestre da Magia, «Já vi Ísis, já toquei em Ísis; não sei contudo se ela existe», donde a sua saudade da simplicidade da aproximação directa infantil, tal como diz no mesmo poema, mais à frente, que quem lhe dera «ser agora qual menino eu era/ dos mesmo anjos mais fiel vizinho». Podemos considerar  que provavelmente tendo aprendido  a Oração do Anjo da Guarda, poderá ter, com a sua imensa sensibilidade, intuído em jovenzinho a sua presença...
Fernando Pessoa reconhecerá que o ultrapassar dos condicionamentos psíquicos implica um trabalho persistente, o qual é no fundo a iniciação: o dissipar ou desvendar das trevas e ilusões, em parte resultantes da nossa dispersão mental e social, das nossas impurezas, da falta tanto da capacidade de concentraçã como de aspiração à luz e à verdade e ainda do olho espiritual não estar aberto, o que nos impede de vermos que os Anjos, pois «os Deuses não morreram: O que morreu foi a nossa visão deles. Não se foram: deixámos de os ver.» 
                                     
Por estas razões Fernando Pessoa afirmará a sua ligação à Tradição primordial do Um e das suas emanações de estados múltiplos de ser, e do retorno ascensional a Ele, nomeadamente na famosa carta a Adolfo Casais Monteiro, de13/1/1935, uns meses antes de morrer: «Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo». 
Relembremos ainda, destes seres mediadores ou níveis intermediários, o Arcanjo de Portugal, citado como o «Espírito da Nação na sua alma recôndita» que sabe os segredos mas não os revela facilmente,  bem como as referências aos Arcanjos    em vários escritos sobre a Trindade, o Demiurgo e a tradição da Queda dos Anjos e dos Homens. 
                                                  
 Não encontramos todavia em Fernando Pessoa uma Angeologia  realizada e estruturada pois na sua vida poética fluíram provavelmente mais (embora não as tenha contado)  as brisas, o vento, o eco, os pressentimentos de fadas e elfos do que as intensificações do numinoso divino, reveladas pelo seu mensageiro por excelência, o Anjo, ainda que existam alguns textos e poemas do final da vida bem significativos. 
 Assim, num curto escrito que aponta (pelo papel e tinta) para ser do último ano da sua vida, crítico da divisão da psique humana segundo a teoria freudiana, relaciona originalmente o que poderei chamar o supramental com os níveis angélicos: «Os herméticos admitem estas duas divisões do espírito [consciente e sub ou in-consciente] – a primeira puramente humana, a segunda obscuramente animal, mas acima delas estabelecem a existência de uma terceira divisão – a sobrehumana, esboçada, embrionária, incompleta, tida por a qualidade que liga o homem às existências superiores, designando-as frequente e porventura simbolicamente, por anjos, arcanjos e a outros nomes assim». Anote-se uma certa originalidade na síntese esboçada distinta  da freudiana e da  junguiana,  preferindo a designação de plano sobrehumano onde vivem as  existências superiores, designadas tradicionalmente pelos nomes simbólicos de anjos e arcanjos...
                                                                 
Numa visão mais simbólica, iniciática e hermética,  o Anjo da Guarda, humanamente e na  identificação interna, pode ser visto como o Espírito, o Mestre da alma, e sabemos, graças aos estudos de Henry Corbin, Louis Massignon e Paul Ballanfat, que muitos iniciados designam o Anjo como o Segredo mais íntimo, o Mestre do coração, nomeadamente na Tradição sagrada do Irão xiita, com raízes nas entidades angélicas femininas denominadas fravartis, companheira e guia de cada ser, sobretudo  após a desencarnação, e nesse sentido Fernando Pessoa interrogou-se intimamente: «A alma da alma é um homem à parte de cada homem e isto é o Mestre, um Anjo da Guarda. A alma desta alma é Deus. (Ou é isto apenas no génio e inspiração». 
Já noutro texto, sobre esta questão da identificação ou da identidade angélica e espiritual, concluirá certas interrogações sobre ensinamentos duma ordem mágica, aceitando que «a fórmula Santo Anjo da Guarda corresponde ao Eu Superior, e exprime a verdade. O Espírito da nossa Alma, sendo a substância de nós, é apesar de tudo distinto de nós neste mundo e é outrem. A fórmula Santo Anjo da Guarda está portanto correcta.». E num valioso mas menosprezado poema, meses antes de morrer, ondula à volta do mistério do Anjo: «Meu coração também/ É o túmulo do Bem/Que a minha Alma não tem.// Mas há um anjo a me ver/ E a meu lado a dizer/ Que tudo é outro ser». 
O itinerário iniciático de Fernando Pessoa, que não foi mistificação ou ambiguidade tal como muitos pessoanos quiseram ou querem, embora fosse limitado pela sua dispersão psíquica, enfraquecimento somático e afectivo, e menor associação-ligação-invocação com os seres e energias mais luminosos, tais mestres e santos, o Anjo, Jesus Cristo, a Divindade, continua naturalmente ainda hoje longe de ser compreendido, sobretudo nas influências, na originalidade e nas realizações internas, e não é fácil conseguir-se transmitir tal hermenêutica mais acertada.
Um exemplo de textos que questionam superficiais  ou tendenciosas aproximações ou interpretações do ocultismo, esoterismo e misticismo de Fernando Pessoa é aquele em que ele nos diz ousadamente que «a iniciação é a admissão à conversa dos Anjos. Alguns ouvem, outros ouvem e veem... A essência da doutrina oculta é que não há comunicação com Deus (Martins Pascoal a Saint-Martin). A essência do misticismo é procurar esta comunicação, quebrar os limites da pluralidade. (1) Conhecimento e conversação com o Anjo da Guarda, (2) Conhecimento dos outros anjos, (3) Caminho para Deus» , afirmações esta escritas nos últimos meses da sua vida e que marcam a sua crescente compreensão do valor da ligação directa mística salvífica ou do coração espiritual com o anjo, o mestre, o Cristo e a Divindade.
Certamente muitas das actividade tradicionalmente reconhecidas ou atribuídas aos Anjos estão presentes na sua obra, tais como manifestarem o esplendor divino, intensificarem o júbilo adorativo ao nascer e ao pôr do sol, guardarem a memória, interpretarem os sonhos, sustentarem o esforço e a ascese no Caminho, ajudarem a ver os outros como espíritos filhos de Deus e a pensar com discernimento, protegerem no invisível, advertirem e apoiarem nas dificuldades, curarem,  mostrarem-se aos que merecem, acompanharem e transmitirem intenções e orações nos mundos subtis, religarem-nos a Deus, serem psicopompos na hora da desincarnação, surgindo de facto  explícita ou implícitamente na obra de Fernando Pessoa  não tão poucas vezes como se pensaria.
Smirnov Rustzek. Anjos Guardiões

 Demos  ainda  exemplos, tal o de poderem  ser o espírito protector e inspirador de uma igreja ou local de culto:

 O anjo da sua capela 
conhece quem ela ama. 
A brisa passa por ela,
Mas ela não a chama. 
Descerem, relembrarem, religarem, e escrito um ano exacto antes da sua morte: 
Que anjo, ao ergueres
 A tua voz 
Sem o saberes 
Veio baixar 
Sobre esta terra
Onde a alma erra 
E com as asas 
Soprou as brasas 
   Do ignoto lar? 
Finalizemos esta breve homenagem a Fernando Pessoa, aos Anjos, Arcanjos e ao Arcanjo de Portugal, com o final de um  dos mais belos poemas de Fernando Pessoa, e que publiquei em Poesia Profética, Mágica e Espiritual, em 1989
«Mãos do meu Anjo da Guarda,
 Que bem guiais, como dois, 
O meu ser que teme e tarda,
Postas firmes nos meus ombros 
Sem de que eu saiba de quem sois! 
 
Vou pela noite infiel  
Sentindo a aurora raiar 
Por traz de alguém que me impele 
Mas já adiante de mim 
Vejo a luz a se espelhar. 

                                                        

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