domingo, 23 de novembro de 2025

Vladimir Soloviev. Breve biografia. Os Fundamentos Espirituais da Vida. A Oração, o Pai-Nosso, o nome de Deus e o faça-se a Vossa vontade,

Vladimir Soloviev, moscovita, filho de um dos mais importantes historiadores russos, Sergei Soloviev, viveu apenas 48 anos (28/1/1853-13/8/1901) mas deixou um rasto de luz perene não tanto na filosofia especulativa ou discursiva, como na filosofia idealista e religiosa, mística e soteriológica, onde desenvolveu bastante a ideia da Igreja Universal, o papel da Rússia profunda e tradicional, e a Sofianidade, ou Sofiologia, pois cedo, aos 11 anos, fora tocado pelo Divino sob a visão da sua face feminina, Sophia. Passando a fase juvenil  de maior abertura gnóstica, coincidente com as suas viagens e estadias em Inglaterra e no Egipto,  aprofundou o Cristianismo, tentando unir a Igreja  e doutrina ortodoxa e a católica, mas com forte ênfase em Sophia, a Sabedoria Divina. Sabedoria Divina, que é representada no seguinte ícone famoso de Novgorod, do século XV, o primeiro a representá-la:

Já formado em Filosofia e como professor distinguiu-se por artigos e livros, amigos e conferências,  tendo até a alegria de ver assistirem à sua conferência sobre a obra de Dostoievsky (1821-1881) tanto o próprio como Tolstoi (1828-1910), embora ambos não se tivessem encontrado. Ao contrário da relação com Dostoievsky, da qual foi bastante amigo e confidente, em S. Pertersburg, o relacionamento com Tolstoi foi difícil, pois este, ainda que profundamente cristão, era contra certos dogmas anti-naturais do Cristianismo, tal a ressurreição da carne ou em corpo de Jesus, conhecendo-se  a carta que Soloviev lhe dirigiu tentando provar a necessidade da sua existência. 

                   

A sua vasta obra, que desde cedo atraiu o interesse de intelectuais alemães e franceses, e até Rudolfo Steiner conferenciou sobre ele, não foi concluída em alguns projectos, tal a tradução da opera omnia de Platão, pela sua morte precoce. Os companheiros ou discípulos mais importantes foram Sergei Trubetskoy (1862-1905), Pavel Florensky (1882-1937), Sergei Bulgakov (1871-1944) e Nicholas Berdiaev (1874-1948). Em Portugal está editado A Verdade do Amor, pela Guimarães Editora, um excelente livro.

Pavel Florensky e o padre Sergei Bulgakov, por Mikhail Nesterov, da Tetryakoy Gallery.
Tendo publicado um texto e vídeo sobre Soloviev: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2023/05/vladimir-soloviev-vida-e-obra-santa.html, neste artigo gostaria de apresentar alguns ensinamentos dos Fundamentos Espirituais da Vida, que irei transcrever da 2ª edição francesa, de  1949,  num in-4º peq. de 192 páginas, escrito quando tinha 30 anos,  entre 1882 e 1884, e onde cingiu com grande força especulativa, teológica e de fé  a essência da religião, do caminho espiritual e do Cristianismo, bem preparado como estava pelos estudos de teologia cristã e de filosofia platónica, e que ainda hoje nos pode ensinar e impulsionar, pesem alguns erros de falta de conhecimento ou de desvalorização das outras religiões, e da  excessiva valorização dos escritos da Bíblia  e das concepções que se fizeram, tal a de Jehová, a do homem como pecador e do mundo dominado pelo mal, para além  da ressurreição corporal.

                                                        

 Após o prefácio do arcebispo Michel d'Herbigny, na 1ª parte, na Introdução,  trata brevemente da Natureza, Morte, Pecado, Lei e Graça, seguindo-se três capítulos sobre a Oração, o Sacrifício e a Esmola, e o Jejum. Na 2ª parte aborda no 1º cap. o Cristianismo enquanto revelação da Luz e do sentido universal (logos) do Cristo, e depois A Igreja e o Estado e a Sociedade segundo o Cristo

É do 1º cap., sobre a Oração e o Pai Nosso que selecionamos o texto transcrito, uma boa aproximação a Deus como a fonte do Bem, e uma boa justificação da necessidade da oração, a que se segue um resumo por mim do que ele diz da oração do Pai Nosso. Possa este texto  melhorar a eficácia da oração, sem contudo menosprezarmos outras fórmulas ou expressões da oração-aspiração à Divindade, seja mesmo no modo de rezar o Pai Nosso, que pode ser realizado apenas por partes, ou mesmo ser orado mais demoradamente numa das suas petições, ou até parafraseado-transformado pela nossa própria alma e aspiração...

«Nós acreditamos no Bem, mas sabemos que em nós não está o [verdadeiro] bem.  [Aqui Soloviev não afirma a existência em nós do espírito imortal em si mesmo e que é Bom,ou a nossa ligação consciente a ele,  pois acredita ter havido a queda]. Devemos então dirigir-nos ao Bem real, entregar-lhe a nossa vontade, oferecer-lhe um sacrifício espiritual, devemos dirigir-lhe a nossa  oração. Aquele que não ora, ou seja não se associa pela sua vontade à vontade suprema, ou falta-lhe a fé Nele, não crê no bem ou então pensa ser ele próprio possuidor absoluto do bem, considerando a sua vontade própria como perfeita e toda poderosa. Não acreditar no bem, é a morte moral. Crer que se é a  origem e a fonte do bem é a demência. Acreditar na fonte divina do bem, dirigir-lhe as orações e abandonar-lhe em tudo a sua vontade [limitada], é a suprema sabedoria e o princípio da perfeição moral.

Se aspiramos verdadeiramente a uma vida livre e perfeita,  devemos confiar-nos e submeter-nos Àquele que nos pode libertar do mal e dar-nos a força de fazer o bem, e que possui por toda a eternidade a liberdade e a perfeição. A nossa alma  tem só a aptidão de tornar-se livre e perfeita, mas não possui por ela própria nem liberdade, nem perfeição; ela só tem a possibilidade [ou potencial] de uma e de outra.

Esta aptidão virginal da nossa alma pode tornar-se fecunda duma vida nova que será a nossa salvação; mas, para este fim, para que haja a eclosão verdadeiramente duma vida nova, é preciso que entre em actividade um princípio que traga em si mesmo um certo poder criador e seja como que o gérmen dessa vida nova. A nossa alma está apta a receber Deus, mas esta aptidão deve-se entregar sem reserva ao Seu libertador e senhor, Pai duma nova vida; de modo que ela não permanece infecunda, mas torna-se mãe-matéria duma nova vida espiritual que lhe permite agir e criar em liberdade. Entregando-se a Ele na fé, a pessoa une-se a Ele na oração; também, este é o primeiro acto de fé, no qual Deus e o ser humano agem unidos.

"A fé sem obras é a morte”, a oração é a primeira dessas obras e o começo da actividade sobrenatural. Crendo em Deus, nós devemos acreditar que Nele reside todo o bem, em plenitude e perfeição (pois de outro modo não seria Deus) e se em verdade, todo bem reside em Deus, nós não podemos, por tal facto, estabelecer por nós próprios nenhuma obra boa e verdadeira. Nós não temos, senão o poder de não agir contra o bem e a graça, que vêm do céu, de cooperar com a graça, não agindo contra ela, mas dando-lhe o assentimento [ou anuimento]. A graça divina volta-nos para Deus e nós apenas consentimos pela nossa vontade tal espécie de conversão. 

Eis a essência da oração; ela é já uma certa obra boa e justa, pela qual nós agimos sobre Deus e Deus age sobre nós. Ela é já o começo duma vida espiritual nova, na qual experimentamos em nós o primeiro movimento. Nós sabemos que esta vida está em nós e constitui o melhor de nós, mas também que ela não provém de nós (...) mas vem do Pai (...)». 

Donde a importância do Pai-Nosso para Soloviev, que tentará elucidar no sentido que o Pai das Luzes ou o Pai que está no Céu não é a fonte das doenças, pecados e morte, mas que Ele é, e  nele residem, o Bem, a Verdade, a Vida. E portanto se acreditarmos verdadeiramente Nele, deixamos para trás todo esse passado doente e desgraçado e desejamos acima de tudo, ou de todo o coração e forças, a Deus.

Para Soloviev o desejo pode ser de aparecer: 1º  algo que não existia, 2º algo que já existe, e 3º  de modificações ou melhoramentos. No caso de Deus, «devemos desejar, antes de mais, que Ele se revele a nós, e que nos diga o Seu nome, que Ele nos comunique a concepção, a ideia pela qual o conheceremos. [Importante esta receptividade confiante a que o Divino se pode manifestar em nós, como ao longo dos séculos tantos seres mais devotos ou místicos sentiram. Na Índia chama-se a tal revelação interna divina Ishta devata,  a divindade íntima e pessoal de cada um].

 E em seguida, tendo-o conhecido, nós devemos receber em verdade a Sua revelação ou reconhecer o Seu nome (…) e devemos depois conformar-nos com Ele, a fim que que o seu Nome seja santificado.»

Quanto ao "Venha a nós o Vosso Reino", Soloviev aponta num sentido tradicional; devemos desejar que Deus não reine somente na intimidade do nosso coração, mas também dum modo visível nas outras almas. O obstáculo a tal vinda são as vontades humanas que não querem que os seus mundos sejam o Reino de Deus, ou estejam abertos ou em conformidade  com a Vontade divina, a qual  poderá ser mais discernida, aplicando-se como regra de consciência no dia a dia,  interrogando-nos qual seria a vontade do mestre Jesus Cristo, face a cada indecisão ou opção a fazer-se

Pão nosso de cada dia é visto como um pedido confiante de realização nos  dois níveis de alimento, o espiritual e o físico. Reconhecendo a necessidade de perdoarmos, alerta para as forças negativas  profundas em nós que se rebelam contra a vontade divina ou a harmonia das leis naturais e da fraternidade multipolar, e que podem tentar-nos triplamente, nomeadamente com a sensualidade (que é vencida pela pureza),  o orgulho (pela humildade) e o poder (a ser vencido pela paciência e desprendimento). A petição final "livrai-nos do mal", é uma nova afirmação de abertura a Deus e às forças superiores para nos ajudarem nas adversidades, sem contudo menosprezarmos o jejum e a oração que serão os meios mais eficazes de purificação e religação.

Eis um breve apanhado de sabedoria acerca do valor e do modo de orar, de um dos mestres principais da filosofia e espiritualidade russa e europeia, que valerá a pena ser lido e aprofundado. 

A Alma do povo russo, por Mikhail Nesterov, um excelente pintor simbolista.   Oh  Sancta Russia, ora pro nobis...

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