Das principais contribuições da espiritualidade e filosofia da Índia para a Humanidade foram as tentativas de conhecimento e caracterização do do verdadeiro eu, chamado também espírito, e em sânscrito denominado Purusha, Atman ou Jivatman, e que em si mesmo teria ou manifestaria três qualidades ou atributos principais, chamados Sat Chit Ananda, significando Sat - Ser verdadeiro, Chit - Consciência ou inteligência e Ananda - Bem-aventurança ou beatitude. Eles corresponderiam a qualidades e atributos que o ser humano discernia em Deus...
Embora esta visão e compreensão tenha sido gradualmente alcançada pelos rishis (videntes) e yogis védicos, como podemos ver nos antigos textos, ela incorporou-se e desenvolveu-se por alguns darshanas ou sistemas filosóficos da Índia, especialmente o Yoga Vedanta, bem como pelos contributos de yogis que a conheceram, meditaram e partilharam, mas com o tempo e devido aos contextos crescentemente complicados e artificializados de vida, muitas das pessoas esqueceram ou perderam ligação e consciência das primeiras e terceiras qualidades ou níveis, e muito mais tal aconteceu fora da Índia porque esta visão da realidade foi bastante sepultada ou manipulada por influências religiosas e filosóficas contrárias ou diferentes, pelo que é importante demandarmos tais qualidades ou atributos e procurar viver mais ligados a este fundo do nosso ser mais íntimo, e em especial com a qualidade ou atributo de bem-aventurança, ananda, que poderemos até chamar de amor no cerne de sua identidade.

Como sabem os estudiosos e praticantes da espiritualidade indiana, um dos seus últimos grandes representantes, Gurudev Ranade (1886-1957, e a quem já dediquei alguns artigos), foi um ser muito especial, pois sua vida era ao mesmo tempo a de um jnani yogi, com estudos filosóficos profundos, um bhakta, com muita devoção, um karmin, bem activo na sociedade e um raja yogin, pelas concentrações e meditações, e assim tornou-se um professor e filósofo proficiente, e um verdadeiro guru, iniciando e impulsionando muitos discípulos e deixando semeados ou disseminados nos seus livros sinais de verdades valiosas para os peregrinos no caminho da auto-realização, e religação com Deus.

Guru Ranade, nascido em uma família de devotos, fora iniciado em 1901 por Shri Bhausaheb de Umadi, que por sua vez fora iniciado por Sri Nimbargi Maharaj (1790-1885), e seu mahasamadhi, ou lugar de desincarnação ou de união final na terra, está em Nimbal, um centro ainda hoje activo e peregrinado. E podemos ver tão valiosa linhagem de mestres na fotografia.
Ora B. R. Kulkarmi, um devoto discípulo do gurudev Ranade, no seu livro Aspectos Críticos e Construtivos da Filosofia do Prof. R. D. Ranade, Belgaum, 1974, refletiu, meditou e resumiu alguns dos seus ensinamentos, pelo que, naturalmente, a base ou íntimo da consciência como beatitude, ananda, é bem abordada, na página 127 afirmando mesmo: «Mas a contribuição distintiva do Prof. Ranade ao pensamento metafísico-ético é sua doutrina do Beatificismo. Na verdade, essa doutrina diz respeito às experiências místicas e tem implicações metafísicas e éticas. É importante lembrar que o subtítulo de seu livro proposto, O Caminho para Deus, Patway to God, seria A Filosofia do Beatificismo. Ranade considerou a concepção idealista da autoconsciência como o ponto central da existência e mostrou que não é a autoconsciência humana, mas sim a autoconsciência divina que deve ser a realidade básica. E dando um passo adiante diz mesmo que esta realidade central não é apenas consciência, mas também bem-aventurança. A concepção axiológica de bem-aventurança e a concepção metafísica de Brahman são as mesmas. A identificação da bem-aventurança com a realidade é o beatificismo. Em vez de a autoconsciência ser o centro da realidade, a bem-aventurança torna-se o centro. Em vez do idealismo, temos o beatificismo.»
Neste parágrafo valioso sobre a visão de Gurudev Ranade sobre a essência da consciência humana e a Divina constatamos a não aceitação da identificação dos seres humanos como simples animais superiores dotados de consciência (proveniente do cérebro e neurónios), antes afirmando que a consciência já é Deus dentro de nós mesmos e que a sua essência é a beatitude, ananda, denominando mesmo esta doutrina como o Beatificismo...
Nos dias de hoje, algo toldados pelos conflitos e genocídios, violências e opressões, em que constantemente somos atemorizados ou violentados, não é este nível beatífico em nós um activo importante a ser reconhecido e mais vivido por nós?
Neste sentido, não se contentando com um reconhecimento ou compreensão intelectual, o Guru Ranade, como um verdadeiro sadhak, ou uma alma praticando sadhana, caminho espiritual e meditação, com bhakti (amor-devoção-aspiração), pede, exorta-nos e ensina-nos e realizarmos mais, pela devoção e meditação a verdadeira essência do eu e de Deus: beatitude, ananda, shukam, alegria, felicidade.

Tal demanda é inegavelmente, um grande desafio a ser aspirado, desejado, querido e sentido, com perseverança, e por isso, só por si mesmas, as palavras Sat Chit Ananda podem constituir um bordão, um apoio, um bom mantra, pois quando o repetirmos e meditarmos, podemos receber do nosso próprio Atman, dos Mestres, da Divindade ou Brahman algumas bênçãos ou graças em nossa consciência, nomeadamente a beatitude, ananda..
Consubstanciando a sua linha de pesquisa, B. R. Kulkarni apresenta-nos alguns textos nos quais gurudev Ranade encontrou essa identidade, tal como no Bhagavad Gita, VI, 28, onde o fruto do puro vairagya ou desapego, e da constante consciência de Deus (brahma-sansparśham) criam ou dão origem a shukam (prazer-alegria), o conceito incipiente de Ananda: "O iogue auto-controlado, ao unir o eu com Deus, torna-se livre da contaminação material e, estando em constante contacto com o Supremo, alcança o mais alto estado de felicidade perfeita."
De forma retórica são imaginadas em seguida as quantidades ou medidas de felicidade alcançadas pelo homem, o Anjo (Gandharva) e o Brahman, para nos tornarmos mais dedicados à auto-realização do atman-Brahman, pois a união do espírito com o Ser Divino, é a verdadeira felicidade, que supera todas as outras em milhares...
Também dos tão fundamentais Brahma Sutras, 1.3.8, refere a menção a Brahman como sendo Bhunam, ou seja, Bem-Aventurança infinita, o que para gurudev Ranade é mais um sinal ou prova de não há uma supremacia de Chit (inteligência-consciência) sobre Ananda na caracterização do Atman, como sri Shankaracharya nos seus comentários escrevera, pois ambos estão unidos.
Além disso, gurudev Ranade sugere que os dois tipos de meditação, Pratikopasana, a meditação num símbolo de Deus, e Gunapasana, aquela onde Deus é pessoalmente sentido e adorado como qualidades (ou através delas, explicando que isso significa ou implica viver em cada dia alguns actos com as qualidades de Deus que adoramos e queremos desenvolver em nós), atingem o seu nível mais alto ou terceiro tipo de meditação em Ahamgrahopasana, a meditação unitiva, na qual o mantra So Ham (Eu sou Ele) é vivenciado na unidade ou união do Eu Espiritual e do Divino, gerando em nós sentirmos a bem-aventurança infinita, Ananda.
Certamente para se alcançar esses níveis mais elevados de comunhão, bem-aventurança e unidade, devemos desenvolver perseverança na prática devocional e na auto-consciência e, em seguida, receber as graças subtis, as quais gurudev Ranade confirma também pelas suas próprias experiências internas, falando, por exemplo, de ver o olho espiritual, o ponto ou bindu de luz, o vastu ou spiriton (um nome cunhado por ele para o espírito), bem como cores, e também ouvir sons, etc.
Na realidade, essas graças que descem sobre nós dos planos espirituais e do guru para o nosso bhava, ou sentimento interno, pelo japa, as orações-mantras e pela meditação dão-nos a bem-aventurança e permitem-nos realizar mais a nossa verdadeira essência de Satchitananda e cooperarmos melhor com o Bem comum e espiritual da Humanidade numa sociedade equitativa mulripolar, harmoniosa.
Que este pequeno ensaio, como uma pequena gota do grande Oceano de Brahman e Sat Chit Ananda, a fim de nos despertar mais para a bem-aventurança interior, um potencial tão valioso, realizado apenas na autoconsciência perseverante, aspiração, discernimento, amor e unidade...
Om Sri Gurabe namah

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