domingo, 4 de agosto de 2024

Boas imagens para contemplação na "Pia Desideria", a famosa obra de emblemática amatória, seiscentista mas perene.

 A Pia Desideria, uma das obras de emblemata religiosa mais famosa, dada à luz em 1628, em latim, na vila de Antuérpia, da autoria de Herman Hugo e  ilustrada por Boetius Bolswert, contém entre os seus  46 emblemas ou imagens alguns que se destacam por  motivos artísticos, morais, psicológicos e espirituais e se considerarmos que a obra se destinava a facilitar as práticas de oração e contemplação, fornecendo textos e imagens que ajudavam a tal fim, devemos observá-los bem e escolhermos os que conservados de cor, ou no "cor-ação", poderão, com o tempo ou imediatamente, criar uma forma de pensamento indutora dum estado mental mais sereno e capaz de gerar a intensificação das ligações superiores ao espírito, ao mundo psico-espiritual, ao Divino.

                                        

  Antecedendo os quinze emblemas de cada um dos três capítulos ou livros em que a Pia Desideria está dividida, encontramos uma gravura inicial, a 0, e que em si mesmo ilustra e simboliza com simplicidade e claridade a alma na sua busca do espírito, do amor, do divino, já que mostra a jovem alma humana abrindo a camisa e fazendo sair do seu peito flechas de aspiração e de amor para o alto, para a misteriosa omniconsciência divina. É um dos emblemas que se fixará melhor no interior de pessoa e pode ser utilizado como molde configurador da nossa alma, do nosso campo energético psico-somático, ao começar a orar para melhorar e religar-se...
Os mais luminosos e unitivos emblemas não e
ncontramos no I livro pois, tal como o seu título, indica Gemidos da alma penitente, ele desenvolve em imagens e textos a necessidade de nos purificarmos, arrependermos e aperfeiçoarmos na relação com o mundo, os seres, os valores, embora um ou dois emblemas mostram já a alma contemplando o alto, tal como por exemplo aquele em que ela pede, recebe e contempla as energias purificadoras da água e da misericórdia divina:
                                    
No segundo II livro ou capítulo, Desejos da alma santificada, encontramos
mais gravuras que, contempladas, facilitam ou impulsionam o trabalho de controle dos pensamentos e criação de um ambiente anímico invocador do espírito e da adoração divina, e destacaremos a 16,  28 e a 29, tal como poderá ver em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/07/pia-desideria-o-ii-livro-e-os-seus-15.html

Persistir na concentração e na fé no Anjo da Guarda,  no Mestre, no Espírito, na Divindade Previdente.

Já no III Livro, intitulado Suspiros da alma amante, as gravuras apontarão movimentos e estados psíquicos da alma já purificada e unificada e logo capaz de não ficar presa horizontalmente e ser merecedora de um melhor contacto com o Divino, e nisso alguma delas destacam-se, tais as 36, 39, 42, 43 e 44. E se no II Livro víamos mais a alma a querer elevar-se, a tentar bater as asas e desprender-se da gravidade e dos pesos da Terra, agora no III Livro destaca-se  a descida das energias do céu, do mundo espiritual e divino. Veja em:  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/07/pia-desideria-ou-desejos-piedosos-o-iii.html

Vamos considerar e comentar todavia apenas o emblema 44, bastante valioso e sugestivo quanto ao  processo da graça, da contemplação, da visão, da adoração, da ligação entre a Terra e o Céu:

Observamos muitos raios de Luz divina que descem do alto do céu com um amplo  alcance sobre a alma mística que medita e aspira às bênçãos divinas e que sentada num monte alto, entre árvores e ravinas, exclama, em palavras extraídas dum salmo: - «Quão dilecto é o teu templo, ó Senhor das Virtudes. A alma ninha deseja ser conduzida ao adro do teu templo, mas desfalece, ajuda-me.» Podemos interrogar-nos como é que Deus, ou os seres celestiais do Templo cósmico nos podem ajudar? Do que depende, de que condições, e em que estado psíquico deveremos estar para as conseguirmos receber e alcançar?

Se orarmos, se meditarmos, se elevarmos as mãos e as energias anímicas à fonte divina, e se merecermos, os Anjos e Arcanjos que vivem nesses planos e que participam na vida cultual e teofânica cósmica abrem asas e alas para os influxos divinos e deixam derramar-se sobre nós que estamos num estado de aspiração, receptividade, amor e adoração, as correntes divinas luminosas. Pode-se dizer que quem medita na Divindade, se recebe um influxo energético forte facilmente pode reconhecer que não aguenta mais dada a magnitude divina, dadas as limitações do seu coração e cérebro, pelo que o emudecimento, o silêncio, o apofatismo são resultados naturais.
Sintomaticamente por vezes encontram-se ex
emplares das  edições da Pia Desideria  com gravuras cortadas ou desaparecidas,  e assim  há anos encontrei num alfarrabista, separada do seu livro mater, a versão francesa de 1686,  a mesma gravurinha 44, com pequenas diferenças da versão original latina de 1624, e arrancada por alguém que terá privilegiado a sua contemplação regular independente em vez  de estar limitada ou encerrada no livro. Ei-la:
                                          
A impressão da gravura na edição france
sa está invertida em relação à original e é menos cuidada, tanto nos pormenores da vegetação como sobretudo na corte celestial, com os anjos menos perfeitos no seu relevo, asas, instrumentos e faces. Jesus, ou o Amor divino, tem um ceptro e uma coroa, mas  a gravação não é tão perfeita como o original em que o Menino Amor divino está representado com asas, e sobre a coroa a cruz da ligação dos mundos. Também a legenda ou a letra é bem diferente já que a alma francesa, talvez mais sensual ou realista, exclama: "O Excesso de prazer transporta-me, quando do Céu se me abre a porta»,  que se compreende pois em certas vivências místicas ou graças do Céu ou mundo espiritual pode gerar-se grande alegria ou prazer, nomeadamente quando a visão espiritual ou mesmo a porta do templo divino, ou que seja do seu adro, se nos abre, na contemplação.

Passados 33 anos da 1ª edição de 1624, em 1657, Henricum Aertissens fazia sair dos seus prelos a  4ª edição e seja porque as chapas de cobre se tinham desgastado seja por outras razões tanto o frontispício como algumas gravuras eram novas, e o caso da numerada como 44 que temos considerado e que reproduzimos nesta versão posterior e menos ciudada:

Nesta 4ª edição, tanto o mar como os anjos musicais desapareceram e o que se destaca mais são as aureolas do Divino Amor, os Anjos a derramarem o que parecem pétalas de flores perfumadas, provavelmente aludindo à existência de uma natureza subtil bela nos planos espirituais, e finalmente o espaço-canal de ligação da Luz divina com a alma humana ser delimitado pela abrangência das mãos dela, o que nos remete para o orar com os braços abertos, ou como a soror Isabel do Menino Jesus  afirmava no começo do séc. XVIII: «o amor de Deus é mar sem fundo, rodeia e abraça o mundo todo; pois tudo isto tem uma alma que está unida com Deus: que como tem em seu coração esta grandeza do amor Divino, tem braços para abraçar o mundo, e um mundo inteiro; isto é, com orações.»

Podemos interrogar-nos quantos, dos milhares ou milhões de pessoas ao longo dos séculos, ao contemplar e rezar com maior intencionalidade estes emblemas e ícones de religação do ser humano ao Amor, a Jesus e Cristo, ao mundo espiritual e ao seu Templo Divino, beneficiaram de harmonização interna, de abertura da visão espiritual e de descida de bênçãos divinas, mas teremos de ser nós a concentrar-nos com alguma regularidade nestas imagens e suas ideias-forças, com os olhos abertos ora fechados,  para  beneficiarmos de melhores campos psico-mórficos e das bênçãos espirituais e divinas, tanto na sua imanência como na transcendência.

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