quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Da Divindade trascendente e imanente no Irão: Ahura Mazda, Saoshyant, Madhi, Fravashi. Da Terra lúcida. Pequenos contributos.

Ao Irão, que na antiguidade, sob o nome de Pérsia, se estendia por vastos territórios e com sucessivos reinos e impérios de grande brilho na história da civilização, devemos bastantes aspectos espirituais valiosos que qualquer estudioso da Humanidade e particularmente da religião, da arte, da ética, da filosofia e da espiritualidade deverá conhecer minimamente.
Este pequen
o texto é um convite ao estudo da religiosidade e espiritualidade de tal histórica civilização e da sua população, e abordará, breve e quase superficialmente, dada a complexidade e subtilidade do Mazdeísmo ou Zoroastrismo, escassos aspectos: a concepção da Divindade na sua transcendência, imanência e qualidades, a visão da sua manifestação, ou descida à Terra ou avatarizaçã0, e a presença dos espíritos celestiais entre nós. Embora muitos séculos tenham passado, desde que os hinos, textos, diálogos e ritos brilharam na sua génese, transformações e esplendor, pois o Madzeísmo é uma das religiões históricas mais antigas, nascida provavelmente entre o III e o II milénio a. C., consideramos que sempre que, numa demanda sincera, estudamos, pensamos e meditamos a Divindade com aspiração e amor, e a partir duma boa concepção, alguma abertura ou ligação entre Ela e nós se restabelece, o que é muito benéfico, por entre a superficialização e dispersão do dia a dia moderno, tanto para nós espíritos imortais como para a Humanidade.
                                      

Os Persas alcançaram uma
visão, ou chegaram a uma concepção, de Deus ou da Divindade Suprema, denominada Ahura (Senhor) Mazda (Sabedoria), para alguns melhor traduzida por a Sabedoria Sublime,  também chamada Hormazd, e exprimiram-na em vários hinos e textos, sobrevivendo bem expressa num dos gathas, ou hinos de Zoroastro, ou de quem escreveu em seu nome:
 Quando eu Te concebi, ó Mazda,
Como o Primeiro  e o Último,
Como o mais Adorável,
Como o Progenitor do Bom Pensamento,
Como o Criador da Lei eterna da Verdade e da Luz,
Como o Juiz Senhor das nossas acções na Vida,
Abri espaço  então na minha visão para Ti
Gathas: Yasna, ou cap. 31-8.
Discerniram também que Ahura Mazda tinha o seu aspecto ou espírito santo ou bondoso, Spenta (benéfico, incrementador)  Mainyu (espírito), e era criador e preservador duma ordem cósmica (Asa, ou asha), que assentava em certos princípios e qualidades suas, os Amesha Spenta, explicitados como mente boa (vohu mana), rectidão (asha), auto-controle  ou domínio (khshatra, donde os kshatryas na Índia, o outro ramo indo-europeu, a casta dos guerreiros, e donde a forte presença duma cavalaria espiritual no Irão), serenidade (armayti), plenitude (hauvartat) e imortalidade (ameratat, igual à amrita indiana). Estes Amesha Spenta tanto se podem identificar portanto como seis qualidades divinas como ainda grandes espíritos celestiais  individualizados, crendo-se que judeus e cristãos formaram deles a noção de Arcanjos.
Será só mais tarde, não estando mencionadas nos hinos ou gathas primordiais de Zoroastro, que se acrescentará na Providência Divina na Terra a participação da contraparte celestial de cada ser humano, a Fravashi.
 Na origem, o Zoroastrismo não era uma religião dualista e só mais tarde é que se considera que à Divindade, com as emanações da luz e do bem, se opunha um ser e estado mental denominado Angra Mainyu, ou Ahrimam, pelo que a vida devia ser assumida como uma luta entre o bem e o mal, nos céus, mas não tanto com Ahura Mazda, mas entre Spenta e Angra, e mais ainda, tal como é evidente, na Terra entre os seres maldosos e os justos ou bondosos, entrando então em acção essa espécie de Anjo da Guarda, Fravashi.
Não é pois de estranhar que os iranianos nunca tenham gostado nem aceitado a designação com que o imperialismo norte-americano ou ocidental os presenteou: o eixo do mal. Para eles, por  motivos fundamentados e constantemente provados, a fonte do mal na Terra é a ignorância, arrogância, ambição e violência, e nos últimos tempos sobretudo o imperialismo ocidental,  que tanto conflito e sofrimento tem causado.
                                    
Embora se reconheça mais o impacto nas três Religiões do Livro (Judaísmo, Cristianismo e Islão), também a sempre em transformação religião Iraniana influenciou o Budismo Mahayana, efectivando-se nos primeiros séculos na zona dos reinos indo-citas, no Irão oriental, e de lá estendendo-se ao Turquestão chinês, China, Coreia e Japão.
Os primeiros tradutores de textos budistas para chinês foram os Partas, da Pérsia, e por influência deles a figura de Sakya Muni (Budha, o sábio silencioso do clã dos Sakya) diminui e em contrapartida cresceu a dos seres luminosos e futuros Budhas,  os bodhisatvas, tal o Budha Amitaba, da Luz Infinita e que preside ao paraíso do ocidente, sukhavati, semelhante à terra de Luz ou lúcida do Maniqueísmo, a religião que sucedera ao Zoroastrismo.
Ora será outro bodhisatva Maitreya ou Ajita que vai corresponder ao Mitra invictus, o Sol invencível, e sobretudo ao Saoshyant do Zoroastrismo, aquela manifestação divina que há-de vir trazer a Luz plena à Terra, algo que judeus e cristãos, com a ideia do Messias, e islâmicos, com a vinda final do profeta, sendo especialmente os shiias, maioritários no Irão e no Iraque, os que mais acreditam em tal vinda, através da desvelação do 12º imam ocultado, o Madhi.
 A vinda do enviado divino prometida por Zoroastro tinha uma correspondência nos seres humanos, e nada racista mas universalista, tal como ele bem explicitou, na Yasna 48, 12:
«Os salvadores (Saoshyants) que virão dos povos
são os que, pelo bom pensamento (vohuman),
se comprometem pelos seus actos a realizar
os deveres que vós, Mazda, Sabedoria Sublime,
transmitistes enquanto justiça verdadeira. »
Capa de livro trazido da Índia quando estive em Bombaim em diálogo com um sacerdote madzeísta ou parsi: Zoroastro resplandecente
Este aspecto da avatarização ou descida da Divindade, na dimensão do Zoroatrismo iniciático e da Sabedoria Perene, e que toca ou compete a todos nós, foi explicitado  num modo ainda mais espiritual por um notável estudioso e conhecedor da sacralidade do Irão, Henry Corbin, pela seguinte frase e ideia:
«O laço que une cada crente ao Saoshyant a vir, o laço que faz dele também um Saoshyant neste mundo, resulta de ele realizar ou cumprir a escolha pre-existencial [na emanação primordial ou antes de incarnar] da sua fravarti ou fravashi (a sua contraparte angélica, o seu Eu celeste): fazer manifestar-se, ou ser, o mundo de Luz.» 
- Ó Fravashi, Fravashi...
Quantos de nós somos fiéis ao chamamento, às inspirações, às iluminações do nosso anjo da Guarda, da nossa Fravashi, do nosso Eu espiritual, da face (ou concepção) divina que mais amamos e adoramos? Quantas vezes durante o dia cultivamos estas ligações, pela oração, a respiração, o dar graças,  meditar, sacrificar, amar?
Sejamos mais lúcidos no que nos forma e desinforma, lutemos mais criativamente pela Luz, o Bem e a Verdade e irradiemo-las  corajosamente nos encontros com as forças da ignorância, da mentira, do ódio, da crueldade e logo do Mal, que tanto nos rodeiam actualmente, para podermos merecer sentir a presença ou ligação espiritual, celestial e Divina no nosso coração e verdadeiro ser, e assim gerarmos solidária e multipolarmente mais Terra lúcida, pacífica e amorosa na Humanidade e no Cosmos...

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