É notório muitas cartas e postais conterem valiosos ensinamentos, afectivos, literários, históricos, pelo que não os devemos deitar fora, ou olvidar numa gaveta qualquer, sem os examinar bem, tanto mais que nos nossos dias se tornaram muito raros, suplantados pelos mios de comunicação digital.
Irei assim salvar, do anonimato e quem sabe da fatal destruição das cartas e papéis - minhas e de muitos - que poderá ocorrer um dia, um postal do Padre Mário Martins, distinto religioso e medievalista, com vasta obra publicada em livros, opúsculos, e artigos, em especial na revista Brotéria, e que conheci nos anos 80 através da escritora portuense e grande amiga Dalila Pereira da Costa, que o estimava muito, e com quem eu convivia bastante, pois dava aulas de Raja Agni Yoga, no Porto, e tinha bastante tempo para dialogar com ela, tal como o prof. Sant'Anna Dionísio, o último elo vivo do magistério fulgurante de Leonardo Coimbra.
Visitei duas vezes o padre Mário Martins no centro da revista Brotéria, com sua biblioteca, e residência da Sociedade de Jesus, na Lapa, Lisboa. Encontrei-o também na Academia das Ciências, de que era membro, (como também da Academia Portuguesa de História), quando era seu Presidente o prof. José V. de Pina Martins, meu grande amigo. Já transcrevi no blogue outro postal dele, dirigido à Dalila e que ficara em meu poder e referi-o a propósito do livro dela em que ambos colaboramos com bibliografia e diálogos, Místicos portugueses do século XVI.
Não está datado este postal mas creio ser de Dezembro de 1986. Mário Martins era uma alma bem disposta, e as histórias divertidas ou irónicas que recolheu nos seus livros retratam algo disso. A cara era levemente sanguínea e sofria de asma. Licenciara-se em Filologia e História e especializara-se na Bélgica na época medieval e chegou a ensinar metodologia histórica na Faculdade de Filosofia de Braga. É dessa época a sua valiosa Introdução Histórica à Vidência do Tempo e da Morte, em dois volumes, 1969, Braga. Era um excelente conhecedor, com grande capacidade comparativa, da história religiosa medieval, da mística, do ciclo do santo Graal e arturiano, das peregrinações e do Caminho de Santiago (Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média, 1957), do culto mariano, que tanto ele como a Dalila eram devotos, enquanto que eu, que estivera na Índia em aprendizagens yogis, valorizava mais uma mística de realização espiritual e divina íntima e não sujeita a dogmas. Como ele dirigia a biblioteca da Sociedade de Jesus na Lapa, volta e meia fazia um desbaste e vendia alguns livros ao livreiro alfarrabista António Silva, que geria a livrariazinha S. António, na rua Garcia da Orta, também na Lapa, que os disponibilizava a preços acessíveis, entremeados com conversas valiosas sobre o esoterismo, que era uma das suas especialidades, e onde por vezes encontrava e dialogava cm o Alberto Castro Ferreira. Na sua generosidade, o P. Mário Martins deu-me um dia um 2º volume de uma valiosa obra sobre o misticismo, em francês, do padre Marechal que li e ainda conservo, certamente estará agora em diálogos, nas bibliotecas dos mundos espirituais, com a Dalila Pereira da Costa, ou mesmo com o António Silva. Muita luz e amor divinos neles!
«Saudações luminosas.
Meu bom amigo, recebi a sua carta, e escrevo-lhe poucochinho por estar em retiro espiritual - uns grandes oito dias de concentração. Sim, sabedoria continua madura e o silêncio é uma grande palavra a desabrochar como uma flor de nenúfar dentro de nós.
Muito obrigado pelo que me disse acerca da asma. De facto, sofro muito de obstipação, não posso escolher a comida, e sobretudo, trabalho de mais - como se o comboio estivesse a partir. Vou ver se me descontraio um pouco mais. Já me tinham dito para fazer respirações profundas. É só questão de tempo. Mas de vez em quando olho para o voo das gaivotas - e posso aproveitar esse momentos de contemplação para respirar fundo e libertar estes pobres pulmões aflitos do ar já gasto que deve estar lá no fundo do fundo da árvore respiratório.
Mando-lhe esta Nossa Senhora, no meio da terra florida e sem limites. Senhora da Paz, dessa paz interior que todos procuramos e raramente encontramos. Se um dia puder, leia S. João da Cruz ou Santa Teresa Talvez o primeiro, no Cântico Espiritual, aos menos os versos). Mas leia só o que puder saborear. Boas Festas. Mário Martins.»
Que realçar no postal para além da Terra Florida e sem limites, dessa utópica Terra transfigurada, em que nós devemos estar, sob a égide da Paz profunda e da Senhora da Maçã vermelha (símbolo do conhecimento do mundo espiritual e da imortalidade) e do Menino (Christos em nós) que tanto encantou ou encanta a alma mística portuguesa?
Será mais o silêncio, como o fruto da meditação e da sabedoria amadurecida e que desabrocha como uma flor de nenúfar ou lótus no nosso coração, inspirando e exalando o amor Divino?
Será o contemplar das gaivotas, como um momento de não pensamento discursivo, e de sossego e descontração da aspiração de incessante labor na seara do Senhor?
Será o lermos apenas ou em especial o que conseguirmos saborear, sentir, amar, desfrutar, e assim irmos gerando raízes amadas para o que vamos pensar, dialogar e escrever?
Eis alguns dos conselhos que o sábio Padre Mário Martins tão fraterna e singelamente me deu há já umas décadas e que afinal, nestes tempos do opressivo desumanismo ou transhumanismo que nos tentam impor, ainda pude partilhar e talvez frutificar luminosamente...
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