segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Fragmentos de um livro de subidas às Montanhas. Com fotografias do Gerês transmontano.

                                                   

Não haverá muitas melhores maneiras de conhecer a alma das pedras e penedos, cristais e fragas, vales e montes do que subir a uma montanha, escalá-la com a força das mãos e dos pés, da alma e do espírito e encontrar os apoios imensos que ela nos dá para não cairmos e para chegarmos onde queremos parar e sentir, orar e contemplar, e a alma expandir...

Cumprido o esforço ascendente, ela pode oferecer-nos cadeirões, em 1ª fila, de gigantescos anfiteatros donde avistamos o horizonte imenso, qual mundo desdobrado aos nossos pés, abrindo-se por sucessivos planos ao infinito. Já outras vezes elas são ao longe catedrais naturais nos seus recortes e cumeadas permitindo-nos, frente ao sol nascente ou poente, filtrado por nuvens de efeitos sublimes, sentirmos a adoração à Divindade cósmica e intuirmos e participarmos no templo espiritual da  Humanidade. 

Outras vezes abrem-se e desvelam-se em recantos inesperados, frondosos e frescos do arvoredo ou abruptos e dilacerantes do matagal, solitários ou com aves e animais que nos encantam. Mas testam-nos, obrigando-nos ao esforço, à atenção plena, seja nas subidas como nas descidas, e em que um pé em falso, uma distracção pode significar queda e aflição.  Isto e muito mais nos oferecem com muito amor as pedras, as fragas grandiosas, os trilhos e caminhos das montanhas, tal por exemplo, das que conheço melhor, do Gerês, Marão, Estrela...  

Mas muito mais nos transmitem se damos tempo a que os ventos soprados por entre elas limpem os nossos ouvidos e olhos, por vezes pedindo-nos mesmo para tirarmos os óculos, se os levamos, limpando-nos os ouvidos e os olhos algo até molhados e, sentados, oremos, meditemos e contemplemos o tempo suficiente para recebermos intuições, das árvores e penedos, nuvens ou horizontes, anjos e espírito...


É natural suspeitar-se da maior acessibilidade da vida invisível nestes altos e cimos de montes rarefeitos, entrecortados com anfiteatros e clareiras revestidas de árvores centenárias e de erva bem verde, quem sabe se para danças das subtis fadas e sílfides, rodeadas de sisudos e acerados penedos, os quais mesmo assim vão-se derretendo em grãos de mica e quartzo, esboroando-se ao longo dos séculos, para constituírem com mais alguma matéria orgânica o solo, o nutriente do reino vegetal e sobre o qual o animal e o humano se erguerão, alimentando-se e gerando novas formas de vida, mais livres e ricas de movimentos, de expressão, de qualidades.

 Como faces mudas e quedas emergem do solo,  poderosas e estranhas, meio humanas meio espíritos da natureza, em figurações de índios dos Andes, anões, budas. Mas não são apenas força e poder o que a almas das penedos nos sugere e transmite por associações interiores. Muitas vezes é fragilidade, suavidade, ligeireza, tais as pedras bolideiras, ovais quase a balançarem nos cimos, parecendo bocas abertas ao infinito, ou ovos que ecoam o Caos primordial ou as explosões vulcânicas que as projectaram remotamente e agora docemente se deixaram amestrar por uma mão que nelas se pousa e as faz oscilar, e até com palavras ou orações tremer e irradiar.

                                  

Dos cultos e ritos que as pedras proporcionaram ou ainda providenciam todos adivinhamos pela riqueza infinita de práticas que as anfractuosidades, covinhas, orifícios, regos, inscrições e picos permitem, e nelas podemos até colocar alguma estatueta portátil, ou ver os alinhamentos e interacções do Sol e da Lua em harmonia com elas. Mas também podemos trabalhar os elementos, tal a água que sorvemos ou o óleo que se derramou, ou o fogo nelas ateado, em chama que crepita e se ergue para o alto, por vezes com  tomilho, rosmaninho ou alecrim encontrado junto aos trilhos, ou trazido com incenso de antemão.

Algumas destas fragas, difíceis de se escalar, são verdadeiros cavalos onde nos encavalitamos e ora observamos as maravilhas envolventes e descobrimos novas faces ou facetas que nos são presenteadas, ora pressentimos as correntes telúricas que passam por nós e nos fortificam, ou apenas comungamos gratos com o que sentimos de imenso,  infinito, eterno.

                                   
Por vezes intuímos nas fragas, ou em árvores, faces sorridentes de gnomos e anões, divertidos por verem um humano a sondar a alma das pedras, ou os animais que elas nos sugerem, no fundo a alma do mundo que as sustenta. E assim figuras míticas, psico-mórficas ou imaginadas surgem do ambiente e da memória colectiva, tal o gato da Alice nos país das Maravilhas, ou o Dragão, a Serpente, o Urso, o Cão, o Sapo, o Lagarto e, graças a essa nossa capacidade receptiva plástica que abre as portas, ou usa a chave da receptividade empática, podemos ir mais fundo na comunhão com a Natureza e a sua pluridimensionalidade de seres e informação.

Há  fragas ou pedras que são tão ricas de formas e funcionalidades e que se abrem em grutas convidativas a nelas se penetrar e até mesmo deitar, pedindo-nos: - "Deita-te aqui amigo". E aí estamos nós presenteados com uma cama de colchão de relativa suavidade, com erva e giestas à mistura, com vista directa para o céu e por vezes travesseiro de musgo. Quantos animais ou seres ali se protegeram, descansaram e refrescaram? Que conversas ou ritos aqui se travaram?

E tudo oferecido gratuitamente apenas com a condição do nosso corpo espiritual vibrar com o subtil das pedras e gruta e, de algum modo osmótico, conseguirmos intensificá-lo e concentrar-nos.

Mas as forças anímicas que realizamos nestas fragas ocas, nestas trocas calmas, nestas aberturas para o céu, nestas meditações, com guardiões esfíngicos rodeando o nosso corpo, ligando o céu e a terra, são sempre um mistério, mas querido, apreciado e assimilado ainda que semi-conscientemente...


Por vezes descobrimos nos penedos pedras viradas para o Sol nascente e a contemplá-lo diariamente há milénios: são as pedras contemplativas, algumas já só cabeças, o resto  desagregado para os solos férteis dos arredores e até, com as chuvadas, dos vales mais distantes, elas só mantendo ainda certa comunhão com as alturas, as nuvens, as estrelas cintilantes e cadentes e, quem sabe, com os Devas e espíritos celestiais e solares...

Em cada subida a um monte ou uma montanha, através sobretudo das esforços e conseguimentos,  esculpimos o nosso corpo espiritual e não o deixamos mais apenas potencial adormecido mas antes o dotamos de alturas e relevos, cores, profundidade e infinitude,  e o que foi sendo trilhado e vencido, sentido e assimilado fica no graal do coração e estará sempre pronto a arder e a iluminar-nos e impulsionar-nos....

                             

2 comentários:

maria de f´tima dasilva coito de almeida disse...

Maravilhada!
Gratidão, Pedro!

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas, Fátima. Boas subidas, boas inspirações e realizações!