Figuras de Silêncio é uma obra publicada em Lisboa, em 1981, por Armando Martins Janeira dez anos após o seu seminal estudo, já por nós abordado, O Impacte Português na Civilização Japonesa, e que de certo modo o complementa, já que, como o seu subtítulo indica, A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, Martins Janeira partilha as suas vivências, estudos e reflexões de dez anos como diplomata português no Japão e amante entusiasta do encontro luso-nipónico.
É do escritor Shusaku Endo (1923-1996) o prefácio da obra, em que valorizando a pioneira ligação da civilização ocidental e do cristianismo com o Japão através dos portugueses e ainda os escritores "profundamente versados no Japão", Wenceslau de Morais e Martins Janeira, elogiando este como o embaixador mais querido de então, e a "atmosfera dum salão de cultura" que a sua casa tinha, considera-o um importante embaixador da cultura japonesa na Europa, dando como exemplos a introdução e divulgação que fez do teatro Nô e Kabuki, e dele próprio como romancista.
Na sua Confissão a servir de Intróito Armando Martins Janeira justifica-se: «Este livro vem procurar tornar conhecida em Portugal uma grande herança construída por dois povos que tão afastados, rasgaram um caminho comum e pela primeira vez na História realizaram o verdadeiro encontro entre o Oriente e o Ocidente», embora mais à frente do livro relembre o encontro ainda mais pioneiro ocorrido entre Alexandre, o Magno e a Índia, reflectido na arte Gandhara, do séc. I ao VI. Poderia ter talvez mencionado o realizado em geral pelos portugueses na Índia, e em especial na corte mogol de Akbar, onde desde 1579 jesuítas e representantes das várias religiões discutiram mais ou menos ecumenicamente.
Nesta sua «luta combatida e vivida num fervor de cruzada, não para
ressuscitar um legado histórico mas para inserir a História na vida de hoje e amanhã», confessa ter ajudado a erguer quinze monumentos comemorativos da grande obra portuguesa, dois museus, uma escola infantil, um cortejo histórico, pilares, cruzes, inscrições, além da divulgação dos livros de Wenceslau de Moraes, e deseja que tal obra passe à cultura geral portuguesa, com significado moderno e de amor entre os dois povos. E se foi nos dez anos "no Japão que passei os dias mais felizes da minha vida", e na longa profissão de diplomata aprendeu a ser cidadão do mundo nunca deixou secar as suas raízes transmontanas, confessando mesmo que andou sempre com três pedras trazidas da serra do Roboredo e um cântaro de barro de Felgar, do mesmo município de Torre de Moncorvo.
Ora na Parte I, O Passado e o Presente, Armando Martins Janeira, medita com originalidade a necessidade «de formar uma consciência clara dos valores da nossa cultura» que inspirarão e animarão os portugueses, até para criar novos valores, e que alimentarão os laços com os países da lusofonia. E observando lucidamente que no encontro com o Japão as igrejas foram também e sobretudo centros de divulgação das artes e ciências e seria esse o seu mais valioso contributo para o Japão moderno e potência mundial, aprova o malogro da cristianização pois seria «uma grande perda para a cultura universal se as religiões e culturas da China e do Japão tivessem sido substituídas pela religião e cultura cristãs. Se pensarmos nos inestimáveis tesouros de arte que o alastramento do cristianismo destruiria - sobre isto os exemplos do começo não admitem dúvidas -, teremos de concluir que a cristianização daqueles países implicaria uma das maiores perdas para o património artístico da humanidade». E meditando os contrastes entre Jesus e Buda pondera que era essas "estremadas e fascinantes diferenças de ideias e criações", que os missionários procuravam suprimir, iriam certamente contra o desígnio divino de tal "riqueza de diversidades".
Este universalismo dialogante de Armando Martins Janeira, tão presente na sua obra, e por isso por vezes desagradando a algum mais intolerante, nacionalista ou fanático, leva-o mesmo a lamentar não só a inépcia natural da evangelização impossível, como até colonialismos e imperialismos ocidentais: «E não é ainda - ai de nós, Ocidente! - nos países cristãos que o homem se tem mostrado mais justo e menos cruel, nas guerras que levou a toda a parte, em hecatombes como a história nunca antes conhecera».
Feito no seu O Impacto Português na Civilização Japonesa o «escorço histórico da acção dos missionários, marinheiros e comerciantes portugueses no Japão durante um século de contacto, e do condicionalismo político, social e cultural nipónico em que tal se desenvolveu», através deste seu novo livro Figuras de Silêncio. A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, quer «lançar na circulação cultural portuguesa alguns valores fundamentais, esquecidos hoje, mas ainda vivos e palpitantes no passado», pois continuam a ser valorizados e estudados por muitos estrangeiros e japonese, lamentando como apesar da «história portuguesa no Oriente ser a mais rica de todos os países ocidentais, somos o único país da Europa que não possui uma escola ou verdadeiro instituto de estudos orientais e asiáticos» não se acompanhando ainda a historiografia nipónica ou europeia sobre o assunto. Sabemos que terminada a sua carreira diplomática Armando Martins Janeira veio contudo a dar aulas e criar, ou co-fundar, instituições nesses sentidos, tal o Instituto dos Estudos Orientais, hoje Instituto Oriental, sito na Universidade Nova de Lisboa, e a Associação de Amizade Portugal-Japão.
Num dos parágrafos mais paradigmáticos do escopo da obra, pondera que «o passado representa para Portugal a consciência da sua capacidade de vencer adversidades e descobrir caminhos, significa garantia e auto-confiança para novos empreendimentos, constitui uma força que dá forma ao futuro. No presente confuso e triste em que os altos valores humanísticos, a limpidez de intenção, a coragem e a aspiração à altura, e a imaginação construtiva transitoriamente se apagam, é ao passado que temos de ir procurar as constantes da nossa criatividade. Uma nação e um povo podem haurir no presente a energia colectiva para construir com indomável determinação e visão lúcida o edifício do futuro, mas é no passado que os povos encontram a sua identidade. Que esta sondagem do passado, onde os japoneses descobriram tantas veias vitais, merecedoras de ser trazidas ao presente, possa inspirar alguns portugueses ambiciosos de renovar e criar e lhe comunique uma inquietação profunda. Mais fraternas formas de convívio e liberdade não sairão apenas da nossa esperança, mas do esforço duro e persistente e da lucidez de visão do futuro, que no passado encontram a justificação, a coragem e as certezas». Mas, bem lúcido, lembra que há sempre nesse passado ideais dinâmicos e vivificadores e ideais retrógrados ou já mortos e que há que escolher os que contém sementes de vida e forças de progresso e corajosamente abandonar as tradições e hábitos inertes.
E neste diálogo de povos e civilizações, mostra alguns contrastes que nos deveriam estimular: «O Japão é o único país do mundo onde não existe uma só ruína. Os japoneses desconhecem a saudade da história, esse morbo, que a nós, Portugueses, rói a vontade e paralisa. Ali o passado vive no presente. O moderno e contemporâneo existem no Japão ao lado do antigo e do medieval; a a industrialização e a tecnologia não mataram o artesanato primitivo, e as artes tradicionais do chá e das flores são ensinadas às operárias nas fábricas ultra-modernas. O operário japonês é o mais produtivo do mundo, e o único que na fábrica, faz meditação zen. Foi salva a continuidade duma antiga herança que guarda à vida a serenidade e o encanto que a mecanização e produção em massa varreram de todos os países. Refere ainda como «o Japão possui os mais antigos e mais belos jardins do mundo» e poderia ter ainda mencionado o culto e protecção das árvores antigas ou mais notáveis, atadas mesmo com cordas sagradas de palha de arroz ou de cânhamo, shimawa, e que tanta falta faz em Portugal, já que há demasiadas câmaras e juntas de freguesia arboricidas...
Os sub-capítulos seguintes da I Parte da obra tratam ainda de: Os Portugueses na Pintura japonesa (a arte Namban, isto é, representando os "bárbaros do sul"), Temas portugueses na cultura japonesa de hoje, onde escreve sobre a influência geral e ainda no romance, teatro, cinema, danças e outras artes tradicionais, com uma apreciação crítica final à participação portuguesa na Expo de Osaka de 1960, que teve grande sucesso e com muitas manifestações adjacentes mas em que o pavilhão português na sua arquitectura e
acessos deixou muito a desejar.
Nas Figuras de Silêncio, Armando Martins Janeira continuava assim uma fervorosa tentativa de
despertar os portugueses para os valores que foram demonstrados no séc.
XVI, sentindo que a tarefa não era fácil. E embora tendo o bom
exemplo do Japão que conseguiu unir frutuosamente o passado e o
presente, erguendo bastantes monumentos ou memórias ao encontro, ou
mesmo festas e pequenas indústrias, no caso português, e em Portugal, não haverá tanta
facilidade, fora dos estudos e comemorações dos missionários e dos seus
contributos, para valorizar o encontro luso-nipónico, lamentando mesmo que nem uma estátua em homenagem ao grande poeta Basho se tenha erguido em Portugal.
Será nas partes seguintes, ilustradas, da obra: II, As Cidades, e III, As Figuras, que Armando Martins Janeira mostrará o muito que se fez para perenizar e vivificar o encontro luso-nipónico, seja nas treze cidades e vilas onde tal mais aconteceu, seja por oito notáveis individualidades portuguesas (uma basca), às quais ele próprio se poderia acrescentar:«O capitão-do-mar Jorge Álvares. Francisco Xavier, sonhador duma grande empresa malograda. O descobridor literário do Japão: Fernão Mendes Pinto. O Introdutor da medicina ocidental no Japão: Luís de Almeida. Um grande clássico por descobrir em Portugal: Luís Fróis. Um precursor da Sociologia: João Rodrigues. Um mártir: Diogo de Carvalho. O último dos grandes aventureiros lusíadas: Wenceslau de Moraes.» Esperamos brevemente apresentar resumidamente as partes II e III desta valiosa obra.
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